Nos últimos anos, habituámo-nos a viver com a existência das plataformas digitais em várias esferas das nossas vidas. Recapitulemos: em menos de uma década, actos tão banais como apanhar um táxi, mandar vir comida para casa, arrendar casa por uns dias, entre muitos outros, passaram a ser mediados por serviços digitais que, graças a mecanismos informáticos avançados (vulgarmente designados de algoritmos), associam potenciais clientes na procura de um serviço e potenciais prestadores desse mesmo serviço.
Como é sobejamente conhecido, este modelo assentou e continua a assentar em práticas de concorrência desleal e violações ostensivas dos direitos dos seus trabalhadores. Não obstante, e apesar de sucessivas decisões de tribunais que atestavam de forma inequívoca o recurso sistemático a práticas ilegais por parte das plataformas, a postura da generalidade dos governos à escala mundial (com honrosas excepções) era de que se devia criar legislação para trazer estas práticas para o «lado certo» da lei. Dito doutra forma, que se devia normalizar o que até agora tinha sido – e bem – considerado ilegal e inadequado. Este era o imperativo colocado pelo «progresso disruptivo» e a «inovação», ainda que pelo caminho se sacrificassem direitos arduamente conquistados. Mas nem isso importava muito, afinal de contas, esse era o preço do progresso a pagar pela chegada do futuro: a chamada «destruição criativa».
«a «acomodação» legal da Uber (e por maioria de razão das outras plataformas) é feita em conluio com governantes de vários países (dentro e fora da Europa) e dirigentes da União Europeia, tudo gente que – não obstante as suas altíssimas responsabilidades – os principais responsáveis da empresa tratam com o desdém de quem controla um funcionário submisso»
Mas seria realmente assim? Uma investigação jornalística à escala internacional que veio a público nos últimos dias responde claramente que não. O alvo destes jornalistas de mais de 40 países foi nada menos que um dos grandes gigantes do sector: a Uber. O que agora se divulga confirma da pior forma o que já se adivinhava, nomeadamente que:
1) a conduta da empresa é reconhecidamente ilegal, mas que a lei é para ignorar olímpica e orgulhosamente, até que os decisores políticos cedam à vontade da empresa;
2) no processo para fazer água chegar ao seu moinho, isto é, garantir que a desregulação fosse normalizada tanto quanto possível em cada contexto, a Uber decidiu de forma consciente usar os seus trabalhadores como agentes de pressão social e política, mesmo quando isso implicava expô-los a situações de alto risco e potencial violência – como foi o caso inclusive em Portugal;
3) a «acomodação» legal da Uber (e por maioria de razão das outras plataformas) é feita em conluio com governantes de vários países (dentro e fora da Europa) e dirigentes da União Europeia, tudo gente que – não obstante as suas altíssimas responsabilidades – os principais responsáveis da empresa tratam com o desdém de quem controla um funcionário submisso. Neste particular, o actuais presidentes francês e norte-americano, Emmanuel Macron e Joe Biden, saem muito mal na fotografia, mas estão longe de ser casos únicos. De resto, isto deixa claro como estamos em presença de um problema estrutural de falta de independência do poder político face aos grandes poderes económicos, mais do que um ou outro caso pontual.
Claro que a Uber se apressou a dizer que não é bem assim e, sobretudo, que o que lá vai, lá vai, uma vez que os documentos agora revelados como parte deste Uber Files vão só até 2017. No entanto, mesmo que faltem as provas documentais, quem acompanha o sector dificilmente pode acreditar nesta redenção de última hora; se há algum indício é precisamente do oposto - que tudo continua mesma e que, muito provavelmente, a Uber está longe de estar sozinha na forma como opera.
«podemos estar perante mais uma inexplicável cedência aos interesses das plataformas que, de novo, verão os seus interesses e práticas ilegais e ilegítimas prevalecerem sobre os direitos dos trabalhadores. Dificilmente se pode achar que tal opção por parte do Governo resulte de ingenuidade, mas se os Uber Files provam alguma coisa é que as grandes plataformas se movem unicamente pelo seu interesse próprio, e não pela criação de emprego, dinamização da economia ou qualquer objectivo bondoso que lhe queiram colar»
Isto seria sempre razão para que se reavaliasse o enquadramento legal desta plataforma, fazendo um balanço da sua consolidação, mas em Portugal e na União Europeia, este é um momento particularmente crítico. Em ambos os âmbitos, nacional e comunitário, está aberto o processo de regulamentação da situação dos trabalhadores das plataformas digitais. Se, no que diz respeito aos desenvolvimentos na UE, há demasiadas questões em aberto para que se faça um comentário consequente a esta altura, por cá as coisas são mais claras. Depois de um início pretensamente auspicioso do processo, em que se prometia resolver a incorrecta classificação de milhares de trabalhadores como empregados a título individual, o Governo português parece estar prestes a dar uma pirueta legislativa e criar condições para que tudo fique na mesma, graças a um expediente legal que dificilmente terá outro efeito além de criar confusão no sector e, ainda assim, deixar os trabalhadores desprotegidos. Tragicamente, aquilo a que assistiremos se o Governo se insistir neste caminho é, tão simplesmente, o que seria relativamente simples dada a moldura legal já existente no Código do Trabalho.
Assim, podemos estar perante mais uma inexplicável cedência aos interesses das plataformas que, de novo, verão os seus interesses e práticas ilegais e ilegítimas prevalecerem sobre os direitos dos trabalhadores. Dificilmente se pode achar que tal opção por parte do Governo resulte de ingenuidade, mas se os Uber Files provam alguma coisa é que as grandes plataformas se movem unicamente pelo seu interesse próprio, e não pela criação de emprego, dinamização da economia ou qualquer objectivo bondoso que lhe queiram colar. Por isso, o tempo é de criar condições para uma vida melhor para os trabalhadores, não de cair em promessas que já se provaram não ser para cumprir. Ao contrário do que cantam os Ornatos Violeta, o monstro (das plataformas) não precisa de amigos.
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