Por estes dias, as agendas estão a chegar às últimas folhas. As velhas agendas em papel. Um ano inteiro de compromissos, de afazeres, de aniversários, de pequenas notas, tantas vezes indecifráveis para quem não conhece o contexto ou não consegue interpretar a caligrafia.
Pode demorar tanto tempo. Assim nos dizem as diferentes experiências em diversas cidades do mundo. Os combates pela memória podem desenrolam-se num tempo longo. Para muitos, demasiado longo. Por estes dias, em Berlim. A notícia é de 2 de dezembro de 2022. Finalmente, depois de um processo de décadas, os nomes de uma praça e de uma rua foram alterados. Da evocação de figuras do colonialismo alemão, transformam-se num tributo aos que resistiram na Namíbia e nos Camarões. Agora ostentam o nome de Praça Manga Bell e Rua Cornelius Fredericks. Nomes dos que lutaram e dos que resistiram – relembrando acontecimentos do início do século XX na África que os alemães colonizaram. Da violência e barbárie em África. Execuções em agosto de 1914. Um campo de concentração em 1906. As mortes. E lemos na notícia que algumas das vítimas foram decapitadas e que os seus crânios foram levados para a Alemanha, de modo a permitir que «cientistas raciais» os estudassem. Para muitos ativistas, este é apenas o primeiro passo de uma tarefa muito maior, que querem levar a cabo na cidade de Berlim. Temos nas mãos matéria viva e pulsante. Memórias que não se apagam. Que foram fracas, mas que ganham voz. São presente. E as mesmas preocupações existem além desta cidade. Como sabemos, esta procura de justiça não se limita ao caso alemão. Há momentos na história recente de Portugal que podem ser relembrados, quando pensamos nesta dinâmica de apagamento e de inscrição. Ou de memória e de esquecimento. Após a revolução republicana de outubro de 1910, existiu uma significativa alteração na toponímia – feita no contexto da mudança de hino, de bandeira, de moeda, de dias feriados. O poder republicano marcou o espaço. Libertou-se do que remetia para topónimos monárquicos ou de pendor religioso. Aí estão as avenidas ou as praças da República; aí estão as avenidas ou praças 5 de Outubro. Ou, talvez, um dos exemplo mais paradigmáticos: a mudança do nome da Avenida D. Amélia para Avenida Almirante Reis, em Lisboa. De uma rainha, a última rainha, para um conspirador, um dos mais importantes organizadores militares do 5 de outubro. «Há momentos na história recente de Portugal que podem ser relembrados, quando pensamos nesta dinâmica de apagamento e de inscrição. Ou de memória e de esquecimento.» Podemos convocar ainda um outro momento: a revolução de 25 de Abril de 1974. As letras da ponte Salazar a serem retiradas, caindo por terra – quase que conseguimos ouvir aquele som. Os nomes das ruas a serem alterados. A vontade de mudar, de transformar, de apagar. Riscar nomes do que se rejeitava. Vontade de começar, de um espaço novo. As ruas que passavam a lembrar os opositores ao regime, os que lutaram pela democracia. Lugar da morte, passa a ser lugar de evocação: a Rua Dias Coelho, em Lisboa. Mas, em muitos locais, as cidades acumulam as diferentes camadas toponímicas, que, na verdade, também são as marcas dos diferentes tempos e momentos históricos que se decide relembrar no espaço. Nem todos os nomes das ruas foram alterados. A toponímia ainda mantém estes traços. Não é difícil encontrar, quer o nome do ditador, quer de outros homens do regime, pelas ruas das nossas cidades e vilas. De uma notícia atual, sobre Berlim, para uma notícia de maio de 1974, no Diário de Lisboa. A um canto de página, mesmo ao lado da programação da televisão – um pouco abaixo a da rádio. Entre atividades do quotidiano e a irrupção de um gesto político na cidade. A fotografia da placa toponímica da Rua António Maria Cardoso, na sua versão oficial, que conhecemos. Ainda é a mesma. Abaixo foi colocada uma outra placa. Pela fotografia não identificamos o material. Onde se pode ler: «Avenida dos mortos pela PIDE». Em maiúsculas. Não oficial. Há força nesta vontade de inscrição. Em baixo uma legenda: «O Povo nunca mais esquecerá a sinistra instituição chamada primeiro PIDE e depois DGS, sob cuja acção, destinada a servir e defender o fascismo, ainda não se sabe (e talvez nunca venha a saber-se exatamente) quantos Portugueses perderam a vida. Conhecidos ou anónimos, os mortos estão agora lembrados numa placa, feita por mãos populares, que dá um novo nome à rua onde aquela organização tinha a sua sede e perpetrou os seus últimos (espera-se) crimes, na tarde de 25 de Abril». «Mas, em muitos locais, as cidades acumulam as diferentes camadas toponímicas, que, na verdade, também são as marcas dos diferentes tempos e momentos históricos que se decide relembrar no espaço.» Não foi esta a única sugestão para o nome desta rua. O certo é que o nome não mudou. Ali está a placa. Segura. Durável. Mas não se perdeu a memória da vontade de inscrever um outro nome. Talvez, em certo sentido, as placas imaginárias, sonhadas existam também. Pode demorar tanto tempo. Décadas. Passaram décadas até os nomes serem alterados em Berlim. Podemos olhar para os mapas das nossas cidades como uma espécie de exercício, um convite à reflexão. Podemos ler, cuidadosamente, os nomes das ruas. Alguns podem ser-nos desconhecidos. Outros, conseguimos reconhecer, talvez com um leve sorriso. Quem é relembrado nas ruas, nas praças, nas avenidas? Que lutas se travaram – e se continuam a travar – em torno desse poder de nomear, de inscrever? O que nos diz sobre nós, enquanto sociedade, a nossa escolha? Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Da memória
Contribui para uma boa ideia
Por estes dias, com o ano civil a chegar ao fim, faz-se o balanço do tempo que está prestes a acabar, constroem-se vertiginosas listas do melhor e do pior. Escolhem-se os acontecimentos mais relevantes e significativos, em afã de cronista. Ficam de fora, tantas vezes, os pequenos gestos, acontecimentos que se perdem na poeira dos dias, o que parece apenas do mundo quotidiano. Ficam de fora, tantas vezes, aqueles eventos que só mais tarde se tornarão inteligíveis, com o seu desenrolar. Aqueles que, com o renovado olhar do nosso presente, se constituem – ou que nós os construímos – como peças, como partes, como fios de um processo. Afinal, o passado pode sempre ser presente.
Escrever a última página de uma agenda, não significa, assim, na verdade, encerrar o tempo passado. Esquecidas, guardadas em gavetas, no fundo de caixas ou mesmo deitadas fora, pertencem a um tempo que foi, mas que continua de alguma forma a tecer ligações com o presente. Há anos que não nos saem da pele. Há anos que não nos saem da memória. Que não acabam nunca.
Acontecimentos que partilhamos como fundadores do nosso tempo. Dias de revolução. Que quebraram a regularidade dos dias, dos que pareciam sempre iguais. Aqueles que na vida individual e na sociedade marcam um antes e um depois. Felizes e faustos. E ainda os outros, desventurados e desventurosos.
«El tiempo es bastante amable con nosotros, sus fugaces pasajeros, y nos da permiso para creer que hoy puede ser el primero de los días, y para querer que sea alegre como los colores de una verdulería»
Eduardo Galeano
O que foi o ano de 2022 continuará a entrar-nos por 2023 adentro. As nuvens adensam-se. Sentimo-lo, apesar da quadra que se quer festiva. Sentimo-lo, mesmo que sem desesperança.
Galeano, no Los Hijos de los dias (Os filhos dos dias), um calendário muito particular de tudo o que é humano, escreveu sobre o primeiro dia de janeiro. Titulou-o como Hoje e lembrou-nos:
«Hoy no es el primer día del año para los mayas, los judíos, los árabes, los chinos y otros muchos habitantes de este mundo.
La fecha fue inventada por Roma, la Roma imperial, y bendecida por la Roma vaticana, y resulta más bien exagerado decir que la humanidad entera celebra este cruce de la frontera de los años.
Pero eso sí, hay que reconocerlo: el tiempo es bastante amable con nosotros, sus fugaces pasajeros, y nos da permiso para creer que hoy puede ser el primero de los días, y para querer que sea alegre como los colores de una verdulería».
Voltar a Galeano para nos recordarmos que o nosso tempo não é, necessariamente, o tempo de todos, o tempo universal. Que existiu e que existe uma outra forma. Outras formas. Recordamos que quem classifica, quem ordena, também nos restringe.
De todas as imagens que guardo, esta é a imagem que quero preservar. Porque o resultado das eleições no Brasil não foi um fim. Para muitos, este domingo foi dia de ter os olhos postos no Brasil, carregados de receios e expectativas, no dia da segunda volta da eleição presidencial, na qual se enfrentavam dois homens que defendem ideias políticas e valores significativamente diferentes. Não nos é indiferente o que se passa ali, porque o que está em jogo não se resume apenas ao que pode ser visto de forma restritiva como uma dinâmica da política brasileira. O ali também é aqui – provavelmente, podemos fazer esta afirmação para, se não todas, pelos menos para uma parte muito significativa, das questões que enfrentamos. Este acontecimento em concreto, a eleição presidencial no Brasil, que estamos a acompanhar, surge-nos como parte de um processo mais lato, em que articulamos os diferentes tempos, entre os antecedentes, o passado, e as diferentes possibilidades ou consequências do que nos surge como uma bifurcação no caminho. Trata-se de uma batalha pelo futuro. E esta implica escolhas políticas. Sem prejuízo da necessária reflexão sobre o contexto da política brasileira, que requer tempo, podemos tecer breves considerações sobre este processo, em torno de acontecimentos que nos surgem como ultrapassando a sua singularidade. Há imagens que nos ficam gravadas na memória, momentos que guardamos porque, de alguma forma, romperam a tessitura do quotidiano e se constituem como extraordinários, por trazerem em si o desassossego, a inquietação, a alegria ou o pavor. Momentos que nos interpelam. Abril de 2016. O deputado Jair Bolsonaro, na votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff, evoca a memória de um torturador do DOI-CODI, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. E diz: «(...) o pavor de Dilma Rousseff.» Bolsonaro foi aplaudido pela sua fala e pelo seu voto, mas também ouvimos as vaias na sala. Existiram, de imediato, variadíssimas posições de condenação e repúdio contra a evocação de Ustra – com tudo o que significava de tortura e morte –, mas as palavras foram ditas. E com elas, para todos os que foram torturados, o reavivar de uma ferida que, em rigor, talvez nunca tenha sarado. Neste domingo, os brasileiros vão às urnas. O candidato de esquerda, Lula, pode ganhar num país que está cada vez mais desigual e em que nem nos seus governos se conseguiu pôr em causa o poder dos muito ricos. «Eu quero saber do meu marido, eles [os polícias] não querem dar informações. Não querem deixar passar, não deixam as pessoas fazerem nada. Estou com bebé de uma semana», disse, à versão brasileira do site Intercept, assustada, uma moradora do Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, com uma criança ao colo. Segundo a pesquisa Datafolha divulgada esta segunda-feira, 26% dos brasileiros afirmam não ter comida suficiente em casa para alimentar os familiares. Desempregados e mais pobres são mais afectados. O resultado do levantamento realizado pela Folha de S. Paulo é revelador da insegurança alimentar no país sul-americano e pode estar relacionado com factores como agravamento da inflação, diminuição do rendimento da população e desemprego. A este propósito, o Portal Vermelho comenta que «nos últimos anos, sob o governo Jair Bolsonaro e com o quadro de pandemia, a fome se espalhou». «O cenário de insegurança alimentar está em alta desde que o Datafolha passou a pesquisar esse tema, em Maio de 2021. Mesmo com os refluxos da crise sanitária e a reabertura da economia, a falta de alimento nos lares brasileiros não retrocedeu», acrescenta. De acordo com a pesquisa agora realizada, apenas 62% dos brasileiros afirmam ter comida suficiente, enquanto 12% disseram que nas suas casas há comida de sobra. Segundo o estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mais de metade dos domicílios brasileiros vivencia algum nível de insegurança alimentar. Cerca de 19 milhões de pessoas passam fome no contexto da pandemia do coronavírus no Brasil. Uma pesquisa realizada em Dezembro de 2020 mostra que, nos três meses anteriores à recolha de dados, mais de 116 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar, não tendo acesso pleno e permanente a alimentos. Isto significa que mais de metade dos domicílios brasileiros sofreu algum tipo de privação. De acordo com o estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), a percentagem de famílias nesta situação era de 55,2%. Destes, refere a pesquisa, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam a passar fome (insegurança alimentar grave). No relatório apresentado, afirma-se que «a fome no Brasil é um problema histórico, mas houve um momento em que fomos capazes de combatê-la. Entre 2004 e 2013, os resultados da estratégia Fome Zero, aliados a políticas públicas de combate à pobreza e à miséria, se tornaram visíveis». Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, registou-se «uma importante redução da insegurança alimentar em todo o país», sendo que, em 2013, «a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2%» – levando a que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) excluísse o Brasil do Mapa da Fome que divulgava periodicamente. A observação é de Kelli Mafort, dirigente do MST, que analisa o agravamento da crise no Brasil e fala do ano que termina, sublinhando que a «prioridade é salvar vidas». A perda de rendimentos das famílias brasileiras e o agravamento da fome no país devem fortalecer a luta pela reforma agrária em 2021. Esta é a avaliação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que este mês lançou o seu Caderno de Formação n.º 53, intitulado A luta de classes no campo e a luta por reforma agrária popular. «Não é uma questão de escolha. É uma questão de necessidade», destaca Kelli Mafort, que faz parte da direcção nacional do movimento. «Com o fim do auxílio de emergência, os índices ligados à pobreza extrema devem aumentar, com a falta de perspectiva de trabalho e rendimento, e a reforma agrária virá com muita força no ano de 2021», prevê a digirente em declarações ao Brasil de Fato. O MST reconhece que a pandemia continua a condicionar a organização popular, uma vez que impede as aglomerações e impõe a necessidade de distanciamento social. Em 2020, as ocupações de terras levadas a cabo pelo movimento foram interrompidas, de modo a evitar a propagação do novo coronavírus entre os camponeses. «Para nós, a prioridade é salvar vidas, aquelas que estão sendo desprezadas pelo governo brasileiro numa campanha negacionista, antivacina», declara Mafort. «Estaremos com os movimentos na rua assim que a vacina [da Covid-19] nos assegurar essa possibilidade», acrescenta. O MST participou em duas disputas frontais com o agronegócio que tiveram repercussão nacional no ano que agora finda. A primeira ocorreu em meados de Agosto, com o despejo violento de duas áreas do acampamento Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio (estado de Minas Gerais), onde viviam sete famílias. A região é ocupada há mais de 20 anos por 450 famílias camponesas, que se notabilizaram pela produção do Café Guaií, um dos líderes da produção agroecológica do MST, informa o portal brasileiro. O principal beneficiário do despejo foi João Faria da Silva, dono da marca Terra Forte e um dos maiores exportadores de café do mundo. «Essa disputa tem uma simbologia interessante, porque são duas produções de café com relações sociais completamente distintas», analisa Mafort. «Por um lado, trabalho análogo à escravidão, expropriação de terras, de direitos. Por outro, o Café Guaií, que representa a agroecologia, que brota de uma luta pela divisão de terras, contra o machismo». O MST considera que o governador Romeu Zema (Novo), que autorizou o uso da força contra o acampamento, representa os mesmos interesses de Bolsonaro, e que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais foi subserviente ao projecto do agronegócio ao autorizar o despejo em plena pandemia. O segundo episódio de grande repercussão foi protagonizado pelo secretário de Assuntos Fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Nabhan Garcia. A Força Nacional foi enviada para assentamentos do MST no Sul da Bahia sem a autorização do governador do estado, Rui Costa (PT), e voltou sem alcançar o seu objectivo, depois de questionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). «Na prática, o que eles tentam é dividir e cooptar as famílias», avalia Mafort. «Dessas duas acções, ficou a lição de muita resistência e organização da nossa base e de muita mobilização da sociedade brasileira, com forte apoio internacional nos dois episódios», disse. O ano de 2020 fica também marcado pela solidariedade, sendo que o MST doou quase 4000 toneladas de alimentos da agricultura familiar para famílias em situação de vulnerabilidade social. Só no estado do Paraná (Sul do Brasil), foram doadas 442 toneladas de alimentos, oriundos da produção de 52 acampamentos e 121 assentamentos da reforma agrária. «A solidariedade se impôs como uma necessidade, e os movimentos populares foram os primeiros a perceber isso, antes do Estado ou de qualquer empresa», lembra a dirigente do MST. «Os nossos alimentos encontraram panelas vazias, numa situação desesperadora», sublinhou. Plano Emergencial da Reforma Agrária Popular, lançado pelo MST em Junho, estabelece como medida urgente, por exemplo, a expropriação de terras de evasores fiscais para assentamento de famílias camponesas. O documento também propõe o uso de terras próximas a centros urbanos, em parceria com municípios, para produção de alimentos, garantindo terra, trabalho, tecto e alimentos saudáveis para famílias empobrecidas e criando um «cinturão verde» em torno das cidades. Em 9 de Dezembro último, o MST registou uma Acção de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF, em que questiona a paralisação dos 413 processos de desapropriação e aquisição de terras para reforma agrária ao início do governo Bolsonaro, e pede a destinação de terras públicas para a reforma agrária, como previsto na Constituição brasileira. «O ano de 2021 vai ser muito difícil, do ponto de vista dos embates que teremos. E, com certeza, a sociedade brasileira poderá contar com o MST, seja nas acções de solidariedade – que não pararam por nenhum dia e vão continuar –, seja nos trabalhos de base, organizando o povo para lutar e derrotar esse projecto de morte», afirmou Mafort. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Mas o êxito alcançado na «garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável foi anulado», revela o estudo. «Os números actuais são mais do que o dobro dos observados em 2009», precisa. O retrocesso mais acentuado deu-se nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018, a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8% ao ano. Entre 2018 e 2020, a aceleração foi ainda mais intensa: a fome aumentou 27,6% ao ano. De acordo com a pesquisa, que abrangeu 2180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, a insegurança alimentar cresceu em todo o Brasil, com especial incidência nas regiões Norte e Nordeste, que registam índices de insegurança alimentar acima dos 60% e 70%, respectivamente. Já a insegurança alimentar grave (fome) esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste. Renato Maluf, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especialista em segurança alimentar e coordenador Rede PENSSAN, afirma não existirem indícios de que a situação melhorou este ano. «Temos todas as razões para achar que nesses primeiros meses do ano a situação se agravou», disse, em declarações ao Brasil de Fato. Para o especialista, nenhum dos factores que influenciam a segurança alimentar das famílias melhorou nos últimos meses, nomeadamente a garantia de emprego e o rendimento, cada vez mais debilitados. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em Janeiro havia cerca de 14,3 milhões de pessoas desempregadas no Brasil, o que significa um aumento de 19,8% num ano. O país sul-americano iniciou 2021 atingindo um número recorde de desempregados. No trimestre encerrado em Janeiro, eram 14,272 milhões, mais 211 mil em relação a Outubro de 2020, mas com um acréscimo de 2,35 milhões (19,8%) face a igual trimestre do ano anterior, quando o desemprego atingia 11,9 milhões de brasileiros, segundo o IBGE. Os dados foram divulgados esta quarta-feira e fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do instituto referido. Embora a taxa de desemprego (14,2%) tenha ficado praticamente estável por comparação com o trimestre anterior, encerrado em Outubro, cresceu três pontos num ano e é a mais elevada para este período – um trimestre até Janeiro – alguma vez registada pelo Instituto. O organismo responsável pelas estatísticas indicou igualmente que o contingente de pessoas com trabalho aumentou 2%, alcançando agora 86,025 milhões. Por comparação com o trimestre encerrado em Outubro, foram mais 1,725 milhão de pessoas integradas no mercado de trabalho, informa o Brasil de Fato. Segundo a fonte, esse aumento verifica-se sobretudo em função da população com vínculo informal, ou seja, de pessoas que trabalham de forma autónoma ou sem contrato de trabalho. O número de trabalhadores empregados nestas condições no sector privado cresceu 3,6% no trimestre encerrado em Janeiro face ao trimestre imediatamente anterior, o que representa um aumento de 339 mil pessoas. Já os trabalhadores por conta própria aumentaram 4,8% no mesmo período (mais 826 mil pessoas). Assim, segundo os dados divulgados pelo IBGE, a taxa de trabalhadores informais no Brasil no trimestre encerrado em Janeiro foi de 39,7%. O número de desempregados desencorajados – trabalhadores que não procuraram trabalho, mas que estão disponíveis para trabalhar – foi estimado em 5,9 milhões, o maior número registado desde o início da série histórica da pesquisa, em 2012. Em relação a igual período do ano passado, registou-se um aumento de 25,6% de desempregados desencorajados (mais 1,2 milhão). Ainda segundo o IBGE, os subutilizados (pessoas que gostariam de trabalhar mais) são agora 32,380 milhões. A taxa de subutilização é de 29%, face a 29,5% no trimestre anterior e a 23,2% há um ano. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. «Outro indicador indirecto é verificar como aumentaram as manifestações de preocupação em relação à fome e as acções de solidariedade. Então, seja pelo agravamento dos determinantes, seja pela maior presença do tema nos debates públicos, tudo nos leva a crer que a situação só fez piorar», frisou. Para travar o aumento da fome no Brasil, Renato Maluf aponta que é preciso retomar de imediato o auxílio de emergência, com valor suficiente para que o apoio ao sustento das famílias seja efectivo. «Esse auxílio que o governo está retomando essa semana não vai dar para muita coisa», alertou. Além disso, entende ser necessário trabalhar politicamente com vista à retomada do emprego e preservação dos pequenos negócios. A longo prazo, Maluf defende que serão precisas iniciativas mais fortes nas políticas de abastecimento. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. A situação é mais grave para quem não tem emprego e para as camadas mais pobres da população: falta comida a 42% dos desempregados e a 38% dos que ganham até dois salários mínimos (2424 reais ou 437,5 euros). Por regiões, o problema tem maior incidência no Nordeste (32%) e no Norte (30%). No Sul e no Sudeste, regiões mais ricas, a escassez de comida atinge 24% e 22% dos habitantes, respectivamente. De acordo com a pesquisa Datafolha, a preocupação central dos brasileiros é o custo dos alimentos, o que encontra razão de ser no aumento dos preços, na precariedade laboral, nos baixos salários e nas incertezas que rondam o ambiente político e económico. A Folha de S. Paulo lembra ainda que «33 milhões de pessoas passam fome no País, segundo apontou a segunda edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil – um patamar semelhante ao que havia sido registrado há três décadas». Outro dado apontado pelo jornal é que numa «cidade como São Paulo, a renda dos 5% mais pobres não é suficiente para comprar dois pratos feitos ou um quilo de carne por mês». Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Estas cenas repetem-se várias vezes ao longo do tempo. Mais uma vez. O Complexo da Maré acordou às 5h da manhã de segunda-feira, dia 26 de Setembro, sob tiroteio, numa operação conjunta da Polícia Militar e da Polícia Civil. Os moradores apavorados tentavam, em vão, convencer polícias que também havia pessoas cercadas numa casa que eram trabalhadores, e não criminosos. «Foda-se», respondeu um dos agentes do Estado. A operação polícial decorreu a menos de uma semana das eleições, em que o actual governador, Cláudio Castro, é candidato à reeleição pelo PL, um total de 180 homens foi escalado para «impedir investidas de uma facção criminosa contra outra nesta região», segundo reza o comunicado oficial. Essa foi a razão dada para a «operação de emergência» que envolveu o Batalhão de Operações Especiais, o Bope, e a Coordenadora de Operações e Recursos Especiais, o Core, as tropas de elite da PM e da Polícia Civil, além de blindados e helicópteros. Pelo menos 35 escolas e quatro unidades de saúde foram fechadas. Duas das principais avenidas da cidade foram bloqueadas por carros, enquanto motoristas apavorados se refugiavam por baixo dos carros no meio das linhas de tiro. A operação na Maré terminou com sete mortos e oito feridos. Familiares de José Henrique da Silva, o Zé Careca, de 53 anos, um dos assassinados na operação, afirmam que ele era inocente e foi baleado. No balanço da operação de segunda-feira, como declara o Intercept, os mortos e feridos foram tratados como «suspeitos». Como de costume, resta aos moradores lutar para provar que seus familiares, vizinhos e amigos eram trabalhadores. E limpar o rastro de sangue, que já se tornou cena cotidiana. Só naquele mesmo dia, aconteceram outras 11 operações policiais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O Consulado de Lisboa acolhe o maior número de votantes fora do Brasil do mundo, 45 273, duas vezes mais do que nas anteriores eleições presidenciais de 2018, em que apoiantes do Bolsonaro ameaçaram eleitores. «O clima de violência política incentivado pelo actual presidente do Brasil também é uma evidência de que o aumento de cinco para dez seguranças privados do consulado é insuficiente para garantir o exercício democrático no dia das eleições em Lisboa, maior colégio eleitoral brasileiro no exterior», afirmou, em comunicado enviado ao AbrilAbril, o Coletivo Andorinha – Frente Democrática Brasileira. Um relatório elaborado pelo Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil mostra que o número de acções neonazis no Brasil quase duplicou a cada ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Desde 2019, o observatório registou 114 acontecimentos desse tipo. Se naquele ano houve menos 12 incidentes neonazis, no ano seguinte foram identificadas 21 delas, em 2021, 49, e, no primeiro semestre deste ano, 32. Segundo os autores do documento, não é esperada uma tendência de queda até o fim de 2022. Foram consideradas acções neonazis, apenas aquelas que fizeram referências explícitas a Adolf Hitler, ao nazismo ou ao holocausto, incluindo com a utilização de símbolos nazis. «Esse crescimento sinaliza a gravidade de um processo que, em nosso país, atinge sobretudo os grupos que historicamente sofrem racismo estrutural. Na Alemanha nazista, o foco principal foram os judeus. No Brasil, as vítimas são os povos indígenas e afro-descendentes», diz o estudo. Entre os eventos mais graves apontados pelo grupo estão ataques a escolas como o ocorrido na cidade de Suzano (SP), em 2019, e em Saudades (SC), em 2021. Além de resultar em mortes, os episódios deram origem a investigações que desvendaram ligações de seus autores com grupos neonazis na internet e redes sociais. O observatório foi uma das 15 entidades judaicas que, em Julho passado, divulgou um manifesto contra o genocídio dos indígenas no Brasil. Segundo o relatório, os eventos antissemitas (contra os judeus) apresentaram um crescimento menos expressivo. Foram 12 ocorrências em 2019 e em 2020, 18 no ano passado e 11 no primeiro semestre de 2022. Os casos foram contabilizados a partir de notícias divulgadas pela imprensa e anúncios de eventos nas redes sociais. Os dados, segundo o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil, «alertam para a normalização da desumanização e a licença para a violência característica do nazismo». O grupo foi criado em 2018, após as eleições, por judeus preocupados com o que entenderam como a «ascensão política no país de um projeto de extrema direita». Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Na primeira volta das eleições de 2018, em Lisboa, apoiantes de Bolsonaro atacaram eleitores dos outros candidatos, ameaçando e intimidando as pessoas que esperavam na fila das mesas de voto. Um eleitor de Bolsonaro acabou por ser detido, admitindo, em vídeo, ser «fascista, branco, de olhos claros e descendência italiana». É inegável «a escalada da violência fomentada por Jair Bolsonaro que, sistematicamente, atacou as pessoas e as instituições, incitou agressões e disseminou discursos de ódio». A onda de violência inclui assassinatos políticos ocorridos nos últimos anos, como o do capoeirista Mestre Moa do Katendê, morto na Bahia, nas eleições de 2018. Multiplicam-se relatos, nas últimas semanas, de eleitores de Lula da Silva agredidos, assassinados inclusive. No sábado, 24 de Setembro, Antônio Carlos Silva de Lima, de 39 anos, foi esfaqueado mortalmente num restaurante no Ceará, depois de ter assumido o apoio ao ex-presidente. «As brasileiras e os brasileiros que votam em Portugal e manifestam sua preferência democrática e antifascista têm medo de agressões físicas e psicológicas no dia das eleições e exigem um ambiente seguro e pacífico». A acusação é de Samara Pataxó, assessora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que no passado dia 9 denunciou o presidente brasileiro no Tribunal Penal Internacional (TPI). Pela primeira vez, os povos indígenas brasileiros uniram-se para denunciar um presidente no TPI. No Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de Agosto, a APIB, em conjunto com a sua equipa de advogados, solicitou à procuradoria do Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia (Países Baixos), que examine os crimes praticados contra os povos indígenas pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início do seu mandato, em Janeiro de 2019. A equipa jurídica entende que «estão em curso no Brasil actos que se configuram como crimes contra a humanidade, genocídio e ecocídio», e, «dada a incapacidade do actual sistema de justiça no Brasil de investigar, processar e julgar essas condutas», decidiu denunciar estes actos junto da comunidade internacional, através do TPI. Dados preliminares divulgados esta terça-feira pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apontam para um aumento das invasões de terras indígenas nos nove primeiros meses do governo de Bolsonaro. O organismo, ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), refere que entre Janeiro e Setembro deste ano foram registadas 160 «invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao património» a 153 terras indígenas em 19 estados brasileiros. O Cimi sublinha que estes dados apontam para mais casos, mais terras originárias e mais estados relativamente a todo o ano de 2018, quando foram contabilizados 111 casos em 76 terras indígenas de 13 estados da federação, segundo informa o portal brasil247.com. O relatório do Cimi, intitulado «Violência contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2018», refere ainda que, no ano passado se registou um aumento no número de assassinatos de indígenas (135) em relação a 2017 (110). De acordo com o organismo, o tipo de invasões alterou-se nos últimos anos. Enquanto, antigamente, os invasores entravam na terra, roubavam madeira, exploravam minérios e depois, em algum momento, se iam embora, agora tem havido a invasão com intenção de permanecer nos terrenos. «Chama a atenção o aumento da prática ilegal de loteamento das terras indígenas, especialmente na região Norte», diz o documento, em que o Cimi dá conta de um novo modelo de apropriação das terras dos povos originários, mais agressivo. O relatório refere ainda que 305 povos habitam em 1290 terras indígenas no Brasil. Na maioria dos casos – 821 (63%) –, os territórios estão ainda em fase de reivindicação ou regulamentação; destes, 528 não tiveram qualquer providência tomada pelo Estado, noticia a mesma fonte. O presidente Jair Bolsonaro já anunciou que não pretende demarcar ou finalizar a demarcação de quaisquer novas terras indígenas durante o seu governo. Em declarações ao Brasil de Fato, Roberto Antônio Liebgott, do Cimi região Sul, disse que «o discurso de Bolsonaro na ONU é sinal [de] que não há perspectiva. A Funai [Fundação Nacional do Índio] foi completamente desmontada. Dados preliminares de 2019 já indicam que houve mais invasões do que no período anterior. Todo período de construção da democracia. Agora é um período de desconstrução.» O levantamento do Cimi apurou outros problemas, como ameaças de morte (oito), conflitos por terra (11), casos de disseminação de álcool e outras drogas (11; apesar de a venda de bebidas alcoólicas a indígenas ser proibida em todo território brasileiro). Ainda relativamente a 2018, o relatório regista 101 casos de suicídios de indígenas e, no âmbito da mortalidade infantil, 591 falecidos até aos cinco anos de idade. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. O crime contra a humanidade e o genocídio estão previstos no Estatuto de Roma, o tratado que estabeleceu o TPI. O primeiro, refere o portal da APIB, consiste em «extermínio, perseguição e outros actos desumanos», enquanto o segundo – genocídio – é «causar severos danos físicos e mentais e deliberadamente infligir condições com vistas à destruição dos povos indígenas». Na denúncia, a Articulação apresenta uma série cronológica de acções do presidente e do governo federal contra as populações indígenas desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República. Para Samara Pataxó, assessora jurídica da APIB, «o que se tem assistido desde o primeiro dia de mandato é a construção de uma política anti-indígena sistemática e intencional». Esta política pode ser observada não apenas no discurso, mas em actos administrativos, «que mostra evidentemente que as atitudes do presidente Jair Bolsonaro configuram crime de genocídio e crimes contra a humanidade», defende Pataxó. Entre outros aspectos, o documento apresentado em Haia aponta o desmantelamento das infra-estruturas públicas de garantia dos direitos indígenas e socioambientais, estimulando a invasão e o desmatamento de terras indígenas, bem como o garimpo ilegal nesses territórios. Em plena pandemia, a actividade do garimpo ilegal avançou 30% no território e, só em 2020, desmatou o equivalente a 500 campos de futebol. Indígenas enfrentam mais riscos de doenças, violência e álcool. Um relatório divulgado esta quinta-feira revela que a exploração ou extracção de substâncias minerais (garimpo) ilegal está a entrar de forma cada vez mais rápida nas terras indígenas e na floresta amazónica. O levantamento aponta para a proliferação de novos núcleos de invasores, mais próximos dos povos originários, incluindo de grupos de índios isolados, bem como para a abertura de novas rotas para dentro do território. Intitulado «Cicatrizes na floresta: evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020», o estudo foi produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e a Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), tendo revelado que, entre Janeiro e Dezembro do ano passado, foi devastada uma área equivalente a 500 campos de futebol na Terra Indígena Yanomami, localizada no extremo Norte do Brasil, entre os estados do Amazonas e de Roraima. O total de área desflorestada é de 2400 hectares, sendo que em 2020 se registou um aumento de 30%. Ou seja, mesmo com a pandemia de Covid-19, a actividade ilegal nunca parou, antes pelo contrário. O relatório agora publicado denuncia como a actividade criminosa prolifera na terra indígena, subindo os rios e aproximando-se cada vez mais das comunidades indígenas, com novas rotas de acesso ao interior da floresta. O novo levantamento também alerta para o modo como o avanço dos garimpeiros em território indígena tem levado doenças às comunidades, sobretudo malária e Covid-19, e colocado em risco a sobrevivência de grupos de indígenas isolados, como os Moxihatëtëma, que são mais vulneráveis às enfermidades e correm sérios riscos de extinção com a exposição forçada pelos garimpeiros. Outros problemas, como o álcool e o aumento da violência, também são consequência da maior presença de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami e da maior proximidade dos invasores em relação aos povos originários. De acordo com o estudo, a actividade garimpeira no Território Indígena Yanomami realiza-se sobretudo de duas maneiras: em dragas flutuantes, localizadas nos leitos de grandes rios (Uraricoera, Mucajaí, Catrimani e Parima), e em terra firme, de modo semi-mecanizado, com recurso a mangueiras e a motores de combustão para extrair o sedimento de cavas ou barrancos. Com recurso à monitorização remota, foi possível examinar o conjunto das cicatrizes deixadas por esta segunda modalidade, que inclui desmatamentos recentes, solo exposto, áreas recém-abandonadas e pequenas lagoas de rejeito, revela o Brasil de Fato. O rio Uraricoera concentra mais de metade (52%) de toda a área degradada pelo garimpo identificada pela monitorização remota. Também é possível verificar que os novos locais de garimpo, surgidos no ano passado, estão colados às comunidades Yanomami e Ye’kwana. As pistas clandestinas de aterragem, agora, ficam a poucos metros do lugares onde os indígenas vivem. Um mapa recente com informações da actividade em terras demarcadas e protegidas mostra que a Amazónia brasileira abriga 453 explorações ilegais. O povo Yanomami prepara-se para a investida de Bolsonaro. Não sendo ilegal no Brasil, a exploração ou extracção de substâncias minerais (garimpo) é proibida em áreas protegidas e reservas indígenas. No entanto, o mapa Amazónia Saqueada, realizado pela InfoAmazónia e pela Rede Amazónica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG) – organização que reúne técnicos de seis países da Amazónia –, mostra que existem pelo menos 2312 pontos e 245 áreas não autorizadas de extracção de ouro, diamantes e coltan no Brasil, na Bolívia, na Colômbia, no Equador, no Peru e na Venezuela. A pesquisa inédita compilou dados sobre a situação de mineração ilegal nos sete milhões de metros quadrados do território amazónico, sublinha o Brasil de Fato numa peça hoje publicada. No que respeita ao Brasil, a RAISG aponta a existência de 453 «garimpos» em 132 áreas. Sobre a pesquisa, os dados recolhidos e o seu significado, Alicia Rolla, geógrafa do Instituto Socioambiental (ISA), que coordena a RAISG, afirmou ao Brasil de Fato que «as informações obtidas sobre a exploração em áreas indígenas e de conservação são obtidas através das instituições que trabalham na Rede». Em seu entender, o mapa é importante para a compreensão da dinâmica extractivista de minérios. «O garimpo está presente dos dois lados da fronteira, e os garimpeiros atravessam-nas inclusive para fugir de fiscalização. Outra coisa que conseguimos observar é que a prática ilegal possui uma proximidade com a legal», afirmou a geógrafa. Outro aspecto sublinhado são as consequências ambientais da exploração mineira ilegal – bastante sentidas pelos pelos indígenas e comunidades ribeirinhas que dependem dos recursos naturais em áreas demarcadas e de preservação. «O uso do mercúrio para separar o ouro da areia contamina os rios e, consequentemente, os peixes. Além disso, a extracção de minérios provoca o desmatamento para chegar ao subsolo, e o assoreamento dos rios, causando distúrbios ambientais como o aumento de mosquitos transmissores de doenças», destaca o Brasil de Fato. «A nossa terra está demarcada pelo governo federal desde 1992, mas não está a ser respeitada», denunciou Dário Vitório Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, no estado de Roraima. «Várias doenças estão a surgir por conta da contaminação e de crimes ambientais feitos pelos garimpeiros», acrescentou. Os abusos cometidos na área indígena do povo Yanomami, com cerca de 9 419 108 hectares, são encaminhados para «órgãos públicos como a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Polícia Federal (PF), o Ministério Público Federal (MPF) e para o Exército Brasileiro, para que assumam as suas responsabilidades», afirma. Em Julho último, dois índios isolados foram mortos por garimpeiros. «Fizemos a denúncia para a Procuradoria-Geral da República e o Ministério da Justiça, e pedimos investigação sobre o garimpo ilegal, além de [uma] investigação sobre as mortes para o MPF e Polícia Federal», revela Dário. De acordo com a pesquisa da RAISG, a extracção de minérios começou a chegar à terra Yanomami em 2010, e tem vindo a aumentar: no final de 2016, já tinham sido identificadas 49 balsas na região. Tendo em conta as declarações do presidente eleito, no passado dia 12, relativas às «riquezas de Roraima» – o seu subsolo, a sua terra e os seus recursos hídricos – e a reafirmação, num encontro com deputados dos Democratas, também na quarta-feira, de que, se depender dele, não haverá «demarcações de terras para indígenas», o povo Yanomami «prepara-se para resistir». É que 46% do estado de Roraima é território indígena e, face às ameças de Jair Bolsonaro, Dário Vitório Kopenawa Yanomami destaca: «Estamos a organizar-nos e vamos posicionar-nos para cobrar os nossos direitos que estão na Constituição. Ele precisa de respeitar as áreas demarcadas, não pode quebrar o protocolo e enfrentar as autoridades anteriores que fizeram as demarcações.» Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. O líder Yanomami e xamã Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami, disse ao Instituto Socioambiental (ISA) estar preocupado e revoltado com a actual invasão garimpeira. «Você vê a água suja, o rio amarelado, tudo esburacado. Homem garimpeiro é como um porco de criação da cidade, faz muito buraco procurando pedras preciosas como ouro e diamante», afirmou Kopenawa. «Há vinte anos conseguimos mandar embora esses invasores e eles retornaram. Estão entrando como animais com fome, à procura da riqueza da nossa terra. Está avançando muito rápido. Está chegando no meio da terra Yanomami. O garimpo já está chegando na minha casa», alertou. O xamã disse ainda temer um conflito com os invasores. «Estou muito preocupado, pois o garimpeiro não está sozinho, são grandes grupos, andam armados, apoiados por empresários, pelo governador de Roraima e pelo presidente Bolsonaro, assim como outros empresários do Brasil. Aqui em Roraima, os garimpeiros, empresários e políticos não respeitam os povos indígenas, só querem tirar as nossas riquezas», denunciou Kopenawa. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. A este cenário, afirma a organização, acresce a inacção do governo de Bolsonaro em relação à propagação da pandemia de Covid-19 no seio de comunidades indígenas. Como exemplo, Pataxó citou o incumprimento de uma medida liminar do Supremo Tribunal Federal, que obrigava o governo federal a prestar assistência aos povos indígenas no âmbito da pandemia. «É a primeira vez que os povos indígenas do Brasil vêem um presidente posicionar-se contrariamente à demarcação de terras, que incentiva a actuação ilegal de garimpeiros, grileiros, o desmatamento nas terras indígenas, associados a uma política anti-indígena, quando tem discurso discriminatório e violento contra os povos indígenas e que surte efeitos concretos», acusa Samara Pataxó, em declarações ao Brasil de Fato. As organizações que integram a APIB preparam mobilizações em Brasília contra a agenda anti-indígena no Congresso e no Supremo Tribunal Federal. Entre as propostas, está o chamado «marco temporal», uma tese jurídica segundo a qual os territórios só podem ser demarcados se os povos indígenas conseguirem provar que estavam a ocupar uma determinada área antes da promulgação da Constituição Federal (5 de Outubro de 1988) ou se ficar comprovado que existia um conflito pela posse da terra. Além de inviabilizar a demarcação, o «marco temporal» promove a abertura dos territórios ao agronegócio, à mineração e à construção de hidro-eléctricas e outras obras, denunciam os povos indígenas. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Em ofício enviado ontem ao Consulado Geral do Brasil em Lisboa, o colectivo exigiu um reforço significativo da segurança no local, atendendo, também, à duplicação do número de eleitores. A estrutura oferecida pelo Consulado limita-se a um «aumento de cinco para dez seguranças privados, deixando a cargo da PSP» os arredores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. «Os eleitores e eleitoras também não sabem as regras que devem seguir ao se dirigir aos locais de votação, bem como os canais de denúncia e apoio em caso de descumprimento das mesmas». O Coletivo Andorinha – Frente Democrática Brasileira exige, enquanto cidadãos e cidadãs no pleno exercício dos seus direitos individuais, que o Consulado do Brasil em Lisboa «esteja preparado para enfrentar quaisquer distúrbios e tentativas de tumultuar as eleições e que todas as eleitoras e eleitores possam se dirigir ao local de votação, dentro dos limites da lei eleitoral brasileira, sem medo de expressar suas preferências e sem serem alvo de constrangimentos, intimidação ou outras formas de violência». Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Depois do último debate televisivo entre os principais candidatos presidenciais a realidade do Brasil pouco mudou. Os pobres continuam mais pobres, os ricos mais ricos e a polícia continua a invadir as favelas, matando moradores e criminalizando todos os moradores dos bairros populares. Nas favelas, controladas pelas milícias de ex-polícias e actuais agentes, as operações são menos frequentes e o tráfico de droga floresce na mesma. Por ano, morrem mais de 62 mil pessoas de morte violenta no Brasil, uma parte significativa delas cai vítima das balas da polícia. O Brasil é quase um continente, em que coexistem várias realidades. Um dos fundadores da Teologia da Libertação dizia que o país se devia chamar «Belíndia», porque tem cerca de 10 milhões de pessoas com o poder de compra da Bélgica e o resto das centenas de milhões com a miséria existente na Índia. Neste sentido, uma frase como «bandido bom é bandido morto» é escutada com agrado em muitos dos bairros da classe média alta e é temida como uma sentença de bala perdida para muitas das pessoas que moram nas favelas e nos bairros pobres que cercam as grandes cidades. Apesar disso, as empresas de estudos tentam identificar as maiores preocupações dessa entidade mítica que seria «o brasileiro comum». Um estudo do instituto Atlas, desta terça, 27 de setembro, deixa claro quais são as principais preocupações referidas pelas pessoas inquiridas no estudo. Numa pergunta sobre os principais problemas do Brasil, o instituto ofereceu uma lista de opções para os entrevistados. Corrupção ficou em segundo lugar, com 16,6% das pessoas citando-a como o principal problema do país. Só ficava atrás de outro problema: a pobreza e desigualdade social, que ficou em primeiro com 19,7% das respostas. Inflação é a terceira preocupação, com 12%. O desemprego, a sexta, com 7,4%. As questões que geraram as disputas mais acesas foram a corrupção, a interferência no sistema judicial, a falta de resposta do governo à pandemia, a fome e os insultos de Bolsonaro. Bolsonaro voltou a negar que existem 33 milhões de pessoas com fome no país e manipulou dados para indicar que o plano social actual é maior do que o pago pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). O ex-presidente Lula da Silva, por seu lado, afirmou que o Brasil está destruído e prometeu reconstruí-lo como estava durante o seu governo, em que havia uma política de combate às desigualdades sociais e os trabalhadores viviam dignamente. Lula disse que sob o seu mandato os pobres «serão novamente respeitados». O actual presidente Bolsonaro escolheu atacar o seu principal rival para as eleições de 2 de Outubro, acusando-o de dirigir o governo mais corrupto da história do Brasil. O debate, que teve lugar no estúdio Bandeirantes em São Paulo, contou também com a presença dos candidatos Ciro Gomes do Partido do Trabalho Democrático (PDT); Soraya Thronicke do partido União Brasil do ex-juiz Sergio Moro; Felipe D'Avila do Partido Novo libertário; e Simone Tebet do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) do ex-presidente Michel Temer. Na sua primeira intervenção, a senadora SimoneTebet disse que Bolsonaro ataca a democracia e não respeita a liberdade de imprensa ou a divisão de poderes. A senadora concluiu que para o Brasil ser pacificado e voltar a crescer era preciso «trocar o presidente da República».O presidente garantiu que escolheu os seus ministros «com base em critérios técnicos» e afirmou que o poder judicial interfere com o seu mandato presidencial. Bolsonaro criticou a decisão do juiz do Supremo Tribunal Alexandre de Moraes, que pediu à polícia federal que autorizasse uma investigação aos empresários suspeitos de partilharem mensagens a favor dos golpes nas suas redes sociais privadas. No primeiro confronto directo entre os principais candidatos presidenciais, Bolsonaro perguntou se o PT queria regressar ao poder para continuar a corrupção na Petrobras. «Tinha de ser ele a perguntar-me e eu sabia que essa pergunta estava para vir», respondeu Lula, que citou várias medidas anti-corrupção e de transparência decretadas durante o seu governo. «As pessoas precisam de saber que as mentiras não valem a pena na televisão», disse o antigo líder dos metalúrgicos. Bolsonaro disse, citando umas declarações tiradas de um delatores premiados da Lava Jato (acusados que se livravam das acusações denunciando outras pessoas) que o governo de Lula era «baseado no roubo» e que «o seu governo era o mais corrupto da história do Brasil». O antigo presidente contra-argumentou que foi durante os seus mandados que mais se gerou empregos, fez-se investimento na educação e aumentaram os lucros na Petrobras. «O país que deixei para trás é um país que as pessoas sentem falta», disse Lula, acusando Bolsonaro de «destruir o país» e «inventar números». Ciro Gomes interrogou Bolsonaro sobre as suas declarações, na sexta-feira passada, em que o chefe do executivo negava a existência de fome generalizada no país: «Tem uma pedra no seu coração». Fiel ao seu estilo, Bolsonaro voltou a negar a existência de fome no Brasil: «Todos interpretam a informação como bem entendem». O presidente afirmou que a inflação no Brasil é uma das mais baixas do mundo e que estão a ser criados novos empregos. «O nosso PIB está a crescer. Realizámos um milagre durante a pandemia», justificou ele. No entanto, Bolsonaro ignorou que o Brasil continua, segundo um relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), no topo do ranking dos países com as mais altas taxas de inflação entre as principais economias mundiais. «O meu governo cuida dos mais necessitados», disse Bolsonaro, que admitiu que «alguns passam fome» embora o programa Auxilio Brasil pague mais do que o suficiente para tirar os mais pobres da linha da pobreza. O líder da extrema-direita enganou-se novamente ao afirmar que o seu governo aprovou o primeiro lote do programa de ajuda social, um substituto para o bem sucedido plano Bolsa Família implementado por Lula, no Congresso com o voto contra do PT. O Partido dos Trabalhadores votou sempre no Congresso brasileiro a favor dos apoios sociais. Em relação à educação, Lula lamentou que o governo de Bolsonaro tenha deixado de divulgar os indicadores e que o desempenho da educação pública se tenha degradado a todos os níveis. «A primeira coisa que vou fazer é convocar uma reunião com todos os governadores e presidentes de câmara para travar uma verdadeira guerra contra o atraso da educação. Dupliquei o orçamento da educação e sei que preciso de o melhorar.» Tebet, candidato presidencial do MDB, tornou-se um dos principais críticos de Bolsonaro durante o debate. "Não vi o Presidente da República entrar na sua mota e ir a um hospital para abraçar uma mãe", disse, recordando a sua participação na comissão parlamentar que investigou, entre outras questões, as suspeitas de corrupção na compra de vacinas. O Brasil é o país com o segundo maior número de vacinas do mundo. Num dos momentos mais tensos da noite, Bolsonaro atacou a jornalista da TV Cultura Vera Magalhães, que lhe fez uma pergunta sobre a campanha de vacinação da covid-19. «Penso que vai dorme a pensar em mim, não pode tomar partido num debate como este. É uma vergonha para o jornalismo», disse Bolsonaro visivelmente encolerizado. Simone Tebet veio em defesa do jornalista e acusou o presidente de misoginia. Bolsonaro virou então as suas armas contra Tebet. «Sois uma vergonha para o Senado, não venha com esta história de que eu ataco as mulheres para se vitimizar», atacou a senadora. As hostes de Bolsonaro têm tentado colocar a mulher do presidente na campanha para conseguirem diminuir a antipatia que a maioria das mulheres manifesta pelo actual ocupante do Palácio do Planalto. Um esforço que ficou dificultado neste debate. Em 2018, quando ganhou as eleições, Bolsonaro participou apenas nos dois primeiros debates presidenciais. Um mês antes da primeira ronda, foi esfaqueado durante um comício de campanha e, após ter sido operado, não voltou ao debate. Lula, que governou o Brasil entre 2003 e 2010, lidera a corrida com 47% dos votos contra os 32% de Bolsonaro, de acordo com uma sondagem do Instituto Datafolha publicada a 18 de Agosto. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. As últimas sondagens dão, a Lula da Silva, 50% das intenções de voto, um valor que lhe garante já a vitória na primeira volta, enquanto os valores de Jair Bolsonaro rondam os 36%. O debate da passada quinta-feira à noite, na rede Globo, não deverá ter tido grande influência na conquista de novos votos por parte dos dois grandes candidatos, segundo vários analistas citados na imprensa brasileira, já que acabou por se tornar num ‘campo de batalha sujo’ onde os ataques, acusações de corrupção mútuas e pedidos de defesa da honra foram a tónica. Ainda assim, a acreditar nas sondagens, Lula não terá de ‘roubar’ mais votos à chamada terceira via política, personificada por Ciro Gomes (com 6% das intenções) e por Simone Tebet (5%), para poder festejar já no domingo. Já na sua entrevista no programa do Ratinho [um popular programa sensacionalista da televisão do Brasil], no dia 19 de Setembro, Lula mostrou disposição para dar mais fôlego a um país que ficou sem ar. Se vencer a eleição, garante que vai aumentar o salário mínimo dos trabalhadores, estagnado há três anos. «E como é que o senhor vai aumentar o salário mínimo?», perguntou o apresentador do SBT, em sua série de entrevistas com presidenciáveis. «Aumentando!», respondeu o petista. Lula confirmou que terá no salário mínimo, uma das medidas básicas para a melhoria de vida da população, como foi já tinha acontecido com o seu governo e da sua companheira de partido Dilma Rousseff. Se sair vencedor, trará de volta a fórmula que ajudou a melhorar a distribuição do rendimento nacional durante o seu governo: vai ligar a expansão do PIB ao aumento real do salário mínimo. Na audiência pública «Carestia, fome e segurança alimentar e nutricional no Brasil», defendeu-se que «uma das tarefas para acabar com a fome é derrotar o governo Bolsonaro». A iniciativa, realizada esta terça-feira na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, em Brasília, deu sequência ao requerimento do deputado Rogério Correia (Partido dos Trabalhadores; PT), e contou com a participação de movimentos populares, investigadores e deputados. De acordo com a segunda edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado em Junho, apenas quatro em cada dez famílias brasileiras têm acesso pleno à alimentação e 33 milhões de brasileiros passam fome. Por comparação com os dados de 2020, houve um aumento de 7,2% no número de pessoas em algum estado de insegurança alimentar. No total, 125 milhões de brasileiros vivem algum nível de insegurança alimentar, revelou a investigação levada a cabo pela Rede Penssan, integrada por especialistas em segurança alimentar, e executada pelo Instituto Vox Populi, com apoio de diversas entidades. «O inquérito vem para dar nome e rosto a estes números», destacou Renato Sérgio Jamil Maluf, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan). «O que o inquérito nos aponta foi que, em um ano, o equivalente à população de São Paulo entrou para o mapa da fome», apontou Maluf, citado pelo portal do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). «Como a fome está fazendo 33 milhões de pessoas sofrerem, se temos o famoso agro, que diz alimentar mil milhões de pessoas no mundo?», questionou Suzana Prizendt, do movimento Banquetaço e da campanha «Gente é pra brilhar, não para morrer de fome». Segundo Prizendt, no ano passado, o agronegócio produziu o equivalente a uma tonelada de grãos por habitantes no Brasil. «Acontece que estes grãos, que utilizam nossa água, nosso solo, nossos recursos financeiros, além de não serem alimentos, mas mercadorias que enchem os bolsos de uma minoria, são destinados para o mercado internacional», explicou. Por seu lado, Alexandre Conceição, da direcção nacional do MST, apontou que «o império nos impôs a fome, a ditadura nos impôs a fome e, agora, estamos repetindo a tragédia de nossa história, por conta deste governo», ao destacar o aspecto estrutural da fome no Brasil. «Sem combater o latifúndio não há o combate efetivo da fome. E o governo que aí está é de natureza latifundiária, por isso o Brasil voltou para o mapa da fome», sublinhou Conceição. Rogério Correia, o deputado que solicitou a audiência, apontou também a acção e omissão do governo frente ao crescimento da fome. «O momento é grave e o poder público tem o dever de ser agente ativo para construção de políticas de combate à fome de forma mais robusta», afirmou. «Uma das tarefas para acabar com a fome é derrotar o governo Bolsonaro, mas precisamos discutir também o que vamos construir para o futuro», acrescentou. Entre as diversas políticas adoptadas pelo governo de Jair Bolsonaro que contribuíram para o aumento da fome, o MST destaca o desmantelamento dos stocks de alimentos, que são fundamentais em momentos de inflação e fome. Em 2013, o país sul-americano tinha 944 toneladas de arroz armazenadas e, em 2015, mais de um milhão de toneladas, informa o MST, acrescentando que, em 2020, esses stocks desceram para 22 toneladas, o que não garante nem uma semana de consumo no país. «Atualmente, não existem estoques governamentais de alimentos para contingência, para intervir nos preços nos mercados ou para apoio aos programas sociais», revela o portal dos sem-terra. «A fome é um projeto político para estes que estão governando o país agora», afirmou a deputada federal Maria do Rosário (PT). «Se eles têm um projeto de fome, nós temos um projeto de vida», frisou. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. No país onde 37% da população trabalhadora ganha um salário mínimo, e 68% ganham até dois salários, as preocupações de muitos eleitores parecem elementares. Estamos a falar de mães de família que passaram a cozinhar à lenha quando o preço do gás subiu de uma forma brutal, ou dos trabalhadores informais que perderam emprego na pandemia e ficaram sem o dinheiro quando o governo Bolsonaro decidiu suspender o programa social Auxílio Brasil por dois meses. Essas pessoas, as principais vítimas da exploração e da miséria, são maioritariamente os brasileiros que apoiam o ex-presidente Lula. Na pesquisa Atlas Intel, ele tem uma imagem positiva entre 63,8% nas famílias que ganham até dois salários mínimos. Bolsonaro, que aumentou muito o Auxílio Brasil em plena campanha eleitoral, enviou um orçamento para 2023 com um corte de 59% do programa de Farmácia Popular. Não reajustou o apoio às refeições escolares, a perderem verbas desde 2017. E o salário mínimo seguiu sem o aumento real para o ano que vem. Lula acertou no alvo para comunicar com a maiorias das pessoas que trabalham e são pobres, e isso pode dar-lhe uma vitória, à primeira volta, já neste próximo domingo. Ou no dia 30, se houver uma segundo volta. Se voltar a ser presidente, o petista ainda terá a sua hora para encarar o Brasil de Moro e Bolsonaro, com uma imprensa pronta a morder qualquer medida que não dê mais lucros aos do costume. Mas um dia de cada vez. Não é pelo risco de golpe militar que a grande massa vai às urnas, nem, infelizmente, para salvar a Amazónia, o maior pulmão verde do planeta em risco de ruptura sem retorno. É para matar a fome de 33 milhões de brasileiros que Lula pode vencer esta eleição. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. Quantas não são as questões que nas diferentes sociedades não são resolvidas e que tornam a emergir? Esta enunciação no espaço público é, em si mesma, uma insuportável manifestação de violência. Como foi, afinal, possível trazer para a arena política e para o debate a evocação da crueldade, do gesto bárbaro sobre o corpo torturado? Outubro de 2022, sábado, nas ruas de São Paulo. Na véspera das eleições presidenciais, Carla Zambelli, deputada bolsonarista do Partido Liberal, de arma em punho, perseguindo um homem negro, apoiante de Lula. Passada apressada, as duas mãos a segurar a pistola, sem que pareça existir qualquer hesitação ou falta de familiaridade com a arma. O homem procura refugiar-se num bar e no vídeo que foi difundido nas redes sociais e nos vários canais de televisão podemos ouvir a invetiva: «Deita no chão. Deita no chão.» Tudo isto nos evoca o inusitado clima de tensão e de violência (e de morte) que marcou esta campanha eleitoral. Mas aquele momento, feito visão inquietante, torna-se a imagem da submissão de corpos e vontades pela humilhação e pela força. Trata-se de uma arma e não de um argumento. E leva-nos a articular, a partir dele, as questões de raça e classe, num país de grandes desigualdades. Dia da eleição. Começaram a circular as notícias de que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) estava a fazer bloqueios de estradas e buscas a veículos. O receio de que se tratasse de uma tentativa de golpe de Estado tornava-se palpável, já que a dificuldade de mobilidade e circulação penalizava as regiões e os locais onde a votação em Lula seria mais expressiva. Sucediam-se as denúncias e os apelos. «Como foi, afinal, possível trazer para a arena política e para o debate a evocação da crueldade, do gesto bárbaro sobre o corpo torturado?» Crescia a inquietação: condicionar, evitar, restringir, dificultar a participação eleitoral não são estratégias aceitáveis num regime que se quer democrático. Talvez esta possa ser uma imagem de advertência: que nos faça pensar sobre as estratégias e os processos de destruição que ocorrem no interior dos regimes democráticos – sendo que nem estes acontecimentos, nem a realidade brasileira se constituem como únicos. Dia das eleições: abertura dos portões de uma escola onde se votava na Baía. Gente que corria para poder fazer ouvir a sua voz, através do voto. A entrada que pode parecer desordenada, mas que foi feita de vontade. E de alegria. De corpos que se querem afirmar como sujeitos políticos. Contra todos os cerceamentos de liberdades e violências. De todas as imagens que guardo, esta é a imagem que quero preservar. Porque o resultado das eleições no Brasil não foi um fim. E continuaremos de olhos postos na dinâmica política desse país. Porque continuamos a querer que chegue a Primavera. Porque não deixo de ter receio de dias infaustos nos tempos de crise que vivemos. Este texto podia ser sobre o Brasil, mas talvez seja, na verdade, sobre a esperança. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
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Mas Galeano também nos recorda de outras coisas que podemos reconhecer como importantes. Existe amabilidade. É esta que o tempo nos permite, a nós, os seus fugazes passageiros: pensar que estamos no dia primeiro, inicial. O primeiro dos dias. Que pode ser alegre. Que podemos querer a alegria. Mesmo que as nuvens se adensem.
Talvez seja um momento pessoal. Fechar uma agenda. Guardá-la. Abrir a nova, com folhas brancas, límpidas e vazias. A promessa. Com o tempo que queremos que se renove, no ciclo de recomeços que conhecemos: velho ano, novo ano. Velho ano, novo ano.
Mas também é – ou pode ser – um momento político. Uma ideia de futuro que não se limita, que não se esgota nas expectativas pessoais. Nos desejos particulares e individuais. Imaginar o futuro, além do nosso imediato, do nosso espaço e tempo. Do nosso olhar que não abarca tudo. Do tempo que nos falta.
Além de nós. Connosco, mas além de nós. Enquanto comunidade. Enquanto plural.
«Talvez seja preciso imaginar que o novo ano, enfim, que o futuro, pode ter configurações diferentes. Talvez neste sentido se possa pensar com alegria e com cor. Mesmo que as nuvens se adensem. Ou talvez porque as nuvens se adensem.»
Talvez seja preciso pensar em como escrever fora do que nos impõe a agenda. Fora das linhas. A folha do dia com as horas. Não sei como é a vossa, mas a minha começa por marcar as nove horas e acaba às 20. É expectável uma jornada de trabalho longa, tão longa? Lutar por mais do que o tempo de trabalho, o tempo visto como útil.
Dizer uma agenda nova, é também dizer do tempo por vir. Do porvir. Talvez seja o tempo de ter direito a pensar as diferentes possibilidades de futuro, de futuros, tantas vezes limitadas pela formas como nos querem dizer o que é pensável.
Talvez seja preciso imaginar que o novo ano, enfim, que o futuro, pode ter configurações diferentes. Talvez neste sentido se possa pensar com alegria e com cor. Mesmo que as nuvens se adensem. Ou talvez porque as nuvens se adensem.
Por estes dias, as agendas estão a chegar às últimas folhas. Mas há sempre primeiros dias.
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