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A grande substituição

Num modelo económico exclusivamente preocupado em garantir a nossa qualidade de vida e a democratização do espaço público, tudo isto seria a natural evolução e renovação das sociedades. Mas no capitalismo foi apenas uma oportunidade para sugar os sinais de vida e de humanidade que lhe resistem.

Créditos / LcH

A memória coletiva é um dos instrumentos mais importantes que temos para manter a harmonia social e construir em conjunto um lugar que todos amemos. Gostar dos nossos bairros, das nossas terras, do nosso país é um sentimento que deve muito à memória coletiva destes lugares, daquilo que eles foram para os que nos antecederam e das lutas travadas para resistir e conquistar enquanto povo. 

As histórias que nos contaram (como contos a romancear o passado) são memórias da nossa paisagem urbana e de quem a povoou, são a génese da nossa cultura e o primeiro património que herdamos para construir um espaço comum. Se muitas vezes confundimos essa memória com saudosismo, não devemos, no entanto, equivocar-nos sobre o seu papel na construção do futuro, na aprendizagem das conquistas, na sua defesa e preservação.  

Pelas ruas que calcorreamos soam ainda ecos de um tempo que já não é o nosso, mas que deixou marcas profundas na nossa cultura e na relação que temos com os lugares que habitamos. A vida social dos bairros e das cidades, a sua arquitetura e a sua génese popular não são só cenário da memória, são cultura. Também ao seu definhamento se deve muita da desesperança ou do cinismo que vão deteriorando as comunidades e deixando-as rancorosas com uma nova demografia, responsável muitas vezes pela revitalização do espaço público. Culpa-se a imigração pela descaracterização dos lugares da nossa memória – os mais íntimos – e nem nos apercebemos que estamos a apontar (e a atirar) ao alvo errado, porque essa descaracterização tem uma natureza bem diferente. 

Na minha infância já havia desaparecido um certo comércio de fancaria ou de retalho. Já quase que não havia carvoarias e o funileiro era uma profissão praticamente extinta. Até os amanuenses estavam a mudar e com eles a vida nos cafés e nas tabernas. Ainda assim, conheci de muito perto um país que falava com nostalgia de um outro tempo, mas que ao mesmo tempo estava, também ele, sem saber, sob ameaça. 

A sociedade do meu bairro era composta por comerciantes, operários, pequena-burguesia, novos industriais, funcionários públicos e as suas famílias. Pela minha rua passavam, todos os dias, pessoas que viviam noutros lugares, mas que também ali pertenciam. Partilhavam mesas de café, balcões de mercearia, conversas circunstanciais no passeio e muita solidariedade. Havia sempre alguém que conhecia alguém que podia ajudar nas necessidades mais mundanas e, com isso, construía-se uma comunidade, que detinha os meios necessários para garantir a autonomia local. Se havia uma festa, o carpinteiro arranjava maneira de fazer uma mesa maior, o tipo da tipografia imprimia os cartazes, no café fazia-se a divulgação; recolhiam-se fundos para o jornal da escola de porta em porta e os comerciantes iam à caixa e tiravam uma notita para garantir um rodapé ou meia página. Com esforço, empenho e solidariedade, os bairros e as cidades anunciavam um futuro mais solidário e havia sempre espaço para mais alguém. 

Lembro-me do dia em que na minha rua abriram duas dependências bancárias. Também me lembro de ver o comércio do meu burgo fechar e dar lugar a negócios que já não eram controlados por aqueles que abriam e fechavam as portas todos os dias. Às duas salas do café da minha adolescência, que pareciam sempre insuficientes para as tardes de conversa e de estudo, falta agora o burburinho do quotidiano, a agitação da vida.

«Ainda assim, conheci de muito perto um país que falava com nostalgia de um outro tempo, mas que ao mesmo tempo estava, também ele, sem saber, sob ameaça.»

A transformação das nossas ruas e bairros começou com obras de requalificação de indiscutível mérito (saneamento, telecomunicações, pavimentação). A modernização das infraestruturas do país foi uma necessidade que vinha, em primeiro lugar, dar-nos melhores condições de vida e garantir o acesso às necessidades mais básicas. No meio deste processo, desapareceram e nasceram novos edifícios, as pessoas envelheceram, morreram e outras nasceram ou chegaram vindas de outros lugares. Num modelo económico exclusivamente preocupado em garantir a nossa qualidade de vida e a democratização do espaço público, tudo isto seria a natural evolução e renovação das sociedades. Mas no capitalismo foi apenas uma oportunidade para sugar os sinais de vida e de humanidade que lhe resistem.

No panorama geral das nossas cidades, o desaparecimento forçado do comércio local, o encerramento de serviços públicos e a sua concentração em espaços distantes do miolo urbano, bem como de outras dinâmicas de génese popular, deu lugar a atividades comerciais dominadas pelo capital estrangeiro e sem qualquer ligação às comunidades. Com uma política de baixos salários e de profundíssima precariedade, estas novas atividades comerciais, entre franchises de coisas inúteis e comida processada, contribuíram para a descaracterização das dinâmicas solidárias e vivas que caracterizavam a rua. Os despejos e os preços da habitação deram a machadada final. 

Para relativizar esta preocupação e branquear os processos de mercadorização do espaço público, surgiu uma narrativa de que quem ficava muito agarrado ao passado era saudosista, remetendo essa ideia para a memória de um regime fascista, e dos seus instrumentos de propaganda, à qual ninguém queria ser associado. Este legítimo descontentamento reservava-se agora ao silêncio e à tristeza íntima, abrindo caminho para a solidão, para o rancor e para outros sentimentos perigosos. Mas querer que o espaço público nos seja devolvido e que possamos ter controlo sobre a resposta a dar às nossas reais necessidades não é saudosismo, é construção democrática do futuro. 

Não existe qualquer progresso na substituição de um velho café por um franchise ou uma loja vocacionada para turistas. Existe progresso quando, na renovação inevitável do comércio, conseguimos garantir que aquele decorre das necessidades locais e que aqueles que se querem estabelecer na malha urbana têm todas as condições para o fazer. Mas aquilo a que temos assistido é a uma invasão cada vez mais agressiva do capitalismo, que ainda vai colher benefícios fiscais e promover a precariedade, enquanto a política que o serve expulsa os habitantes das cidades, polui as ruas com as suas luzes de néon e a guerrilha dos preços baixos (à custa de quem). É esta a verdadeira invasão que tem destruído a nossa cultura popular, a nossa memória histórica e a nossa vivência – a nossa, de quem, independentemente da sua origem, habita e traz vida às ruas e bairros. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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