|racismo

Os racistas são os palhaços dos patrões

A história do racismo que permite aos ricos serem cada vez mais ricos e culpar os imigrantes dos problemas do país.

Créditos / Visão

«Qualquer dia temos mais imigrantes que pessoas», garante o líder do Chega, André Ventura, numa arruada para as eleições europeias em Setúbal. Tenta corrigir o lapso freudiano com o acrescento à frase do substantivo «portugueses». É o mesmo Ventura que quer um referendo para limitar a imigração. Como se o grande problema em Portugal não fosse os baixos salários, as desigualdades sociais crescentes, a falta de habitação, mas, pelo contrário, haver centenas de milhares de imigrantes a trabalhar e a criar riqueza em Portugal.

A sondagem do CESOP da Universidade Católica, Julho de 2024, põe a imigração em sexto lugar das preocupações dos portugueses, muito abaixo da situação no Serviço Nacional de Saúde e dos baixos salários, com 18% e 14% de inquiridos preocupados, respectivamente.

No entanto, a entrada da imigração nos problemas considerados pelos inquiridos da sondagem, com 6% dos sondados, é fruto do trabalho político da extrema-direita que constrói um discurso do medo e quer limitar o número de imigrantes legais, aproveitando as benesses, para alguns, do trabalho escravo sem direitos sociais e políticos dos imigrantes. Milhares de trabalhadores estrangeiros recebem salários de miséria, são alojados em contentores e camaratas sobrelotadas e forçados a trabalhar mais do que as oito horas legais por dia, em duras condições, nos campos, em sectores como as entregas, hotelaria, construção civil e restauração.

Para a direita, por um lado, os imigrantes são o mal absoluto; por outro, são bons para explorar e pressionar para baixar os salários de todos os assalariados.

Que o diga o deputado do Chega Rui Paulo Sousa, que contratava trabalhadores indianos para uma empresa de exploração de espargos, da qual era administrador. Ao mesmo tempo que o seu partido se opunha à vinda de imigrantes da Ásia por serem uma ameaça à identidade portuguesa.

A ideia da grande substituição das populações europeias pelas de outros continentes é uma fraude estatística, mas baseia-se sobretudo no racismo herdado do colonialismo, na construção de uma ideia de raça e pureza genética ameaçada pelo convívio com outros povos, ditos inferiores. 

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10 de Junho: um dia de luta contra o racismo

Cinco organizações promotoras deram o mote e realizou-se hoje uma manifestação no dia onde se combate o racismo e a xenofobia. Se na história estão marcados crimes, com a luta, o futuro será um mundo onde toda a gente tratará toda a gente por igual. 

Manifestação do movimento Vida Justa contra o aumento do custo de vida e a falta de habitação a preços decentes em Portugal, país onde os ricos estão cada vez mais ricos e sofrem os que menos têm e menos podem. Lisboa, 25 de Fevereiro de 2023
CréditosPedro Nunes / REUTERS

Em Portugal, o dia 10 de Junho carrega um passado controverso e, actualmente, representa uma jornada de combate ao racismo. Esta data, que outrora celebrava o «dia da raça» durante o fascismo e posteriormente foi associada ao dia das Forças Armadas durante a Guerra Colonial, agora transforma-se num dia de resistência e luta pela igualdade racial.

Desta feita, a Frente Anti-Racista, a Associação Desportiva e Recreativa "O Relâmpago", o Conselho Português para a Paz e Cooperação, a União de Sindicatos de Lisboa e a Vida Justa lançaram o mote e realizou hoje uma manifestação que partiu da Rua Garret, em Lisboa, para lembrar todas as vítimas do racismo em Portugal e lutar por um país sem discriminações. 

A esta manifestação juntaram-se mais 35 estruturas e organizações que, subscrevendo o manifesto lançado pelas organizações promotoras, levantaram as suas vozes pela luta anti-racista e defendam os direitos daqueles que são marginalizados e oprimidos.

Como tem acontecido nos últimos anos, a luta foi desenvolvida com o objetivo de alcançar uma sociedade igualitária e a manifestação serviu ainda para relembrar todas as vítimas do racismo em Portugal e lutar por um país sem discriminações.
 

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Gente que não pode viver em Portugal e até ter os direitos de todos os outros trabalhadores, porque seria muito inferior do ponto de vista cultural e racial.

Em Portugal, em 2022, havia menos de 900 mil imigrantes. Uma situação que deriva mais da nossa história do que propriamente de uma suposta invasão alienígena.

Segundo o historiador José Mattoso, em 1551, os negros escravizados eram 10% dos 100 mil habitantes de Lisboa. Em 1578, a população de Lisboa tinha duplicado e os escravos já eram 20% dos seus residentes. E, nessa altura, não consta que o rei falasse dos perigos da grande substituição.

Portugal foi um império colonial, o maior traficante de escravos do Atlântico, as relações com muitos povos, muitas vezes nada recomendáveis dado o seu carácter colonizador e explorador, têm séculos.

Holocausto colonial

Os pensadores actuais defendem que o holocausto nazi é um acontecimento único na história humana pela política global de degradação do «outro» que permitiu o extermínio de mais de seis milhões de judeus, apenas pelo facto de serem judeus. Mas tendem a apagar da história que os genocídios coloniais europeus procederam exactamente da mesma forma. A frase «exterminem todas as bestas», proferida pelo personagem Kurtz no livro Viagem ao Coração das Trevas, de Joseph Conrad, descrevendo a descida de um rio no Congo Belga, podia ser o lema de todos os genocídios dos povos indígenas feitos pelos brancos europeus e a confirmação de uma política de extermínio que se justificou com o racismo.

Os africanos têm sido apelidados de animais desde os primeiros contactos com os europeus, quando estes os descreveram como «rudes e bestiais», «semelhantes a bestas brutas» e «mais brutos que as bestas que caçam», segundo descreve o viajante e investigador Sven Lindqvist.

A.R. Wallace, autor do livro Selecção Natural e Natureza Tropical (1879), citado no livro Exterminem Todas as Bestas, de Sven Lindqvist, defendeu numa conferência que o extermínio era o outro nome que se dava à selecção natural. «O contacto com os europeus conduz os povos inferiores e mentalmente subdesenvolvidos de outros continentes à destruição inevitável».

Em 27 de Março de 1866, o teólogo e escritor britânico Frederic Farrar proferiu uma conferência sobre a «Aptidão das Raças», em que defendeu que muitas raças já desapareceram: «Os tipos mais inferiores da humanidade, apresentando as características mais horrendas de degradação moral e intelectual estavam condenadas à extinção. (…) Porque as trevas, a indolência e a ignorância bruta não podem coexistir com o progresso do conhecimento, da indústria e da luz».

O racismo não é um facto biológico, nem está gravado nas pedras e inscrito nos céus. É uma simples construção ideológica mas nem por isso menos poderosa na história humana.

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Como é possível liquidar o racismo em Portugal?

O podcast Megafone, do AbrilAbril, convidou a actriz Ana Sofia Martins, o jornalista Emídio Fernando e o coordenador do Moinho da Juventude, Flávio Almada (LBC) para discutirem as formas que assume o racismo em Portugal, a sua expressão social, a sua relação com outras lutas por uma sociedade melhor e como é possível ir dando cabo das estruturas e ideológicas que criam o racismo.

O podcast megafone, do AbrilAbril, convidou a actriz Ana Sofia Martins, o jornalista Emídio Fernando e o coordenador do Moinho da Juventude, Flávio Almada (LBC) para discutirem as formas que assume o racismo em Portugal, a sua expressão social, a sua relação com outras lutas por uma sociedade melhor e como é possível ir dando cabo das estruturas e ideológicas que criam o racismo.

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O racismo não é produto da existência de raças. Mas a falsa ideia que existem raças, humanos de primeira e de segunda, é consequência exclusiva do racismo.

As guerras, massacres, abusos de autoridade e o tratamento de migrantes como escravos apoiam-se na nossa indiferença e em não darmos ao «outro» o estatuto de humanidade que damos a nós próprios. Só dando direitos iguais a todos iremos acabar com este silêncio criminoso e assassino.

Os párias deste mundo são mortos várias vezes: são mortos quando as balas explodem neles e são mortos quando as hordas dos comentadores das redes sociais, instalados nos sofás das nossas cidades, garantem que «se lhes aconteceu alguma coisa é porque alguma coisa de mal estariam a fazer», como aos palestinos de Gaza que participam, segundo garantem os órgãos de comunicação social, na «guerra Israel contra o Hamas». Vamos, sempre, do silêncio para o barulho, garantindo sempre o mesmo grau de indiferença ideológica, para que o massacre se faça sem grandes contestações.

Nos nossos países ditos civilizados, os únicos humanos somos nós, os burgueses, brancos e que vivemos no meio das cidades. Tudo o resto são seres subnormais que não são iguais a nós e cuja morte tem apenas, no máximo, um segundo de atenção e uma eternidade de indiferença.

Há cerca de um ano que vemos um genocídio todos os dias a aparecer nos ecrãs de televisão. A revista britânica Lancet fala em 186 mil mortos, as autoridades sanitárias de Gaza contam mais de 40 mil mortos e quase 100 mil feridos, e muitos milhares de desaparecidos. É o genocídio colonial de há uns séculos a regressar em todo o seu fulgor. Nos países ocidentais não se esboça um gesto para parar o massacre. Portugal, obediente aos EUA e à política da Alemanha e da França, não tem coragem de reconhecer o Estado palestiniano, não vá incomodar os genocidas.

Estamos, segundo os ideólogos dos que mandam, em plena guerra de civilizações: já não há capitalismo, já não existem exploradores e explorados, apenas existe a democracia liberal de cultura judaico-cristã e o mundo selvagem das autocracias que não comungam os valores do «berço da civilização europeia».

Esta cartilha é seguida pela maior parte dos dirigentes europeus; a direita afirma-a com um grau de boçalidade, o centro esquerda dá-lhe um ar de cosmopolitismo Benetton. Em ambos, como se viu na Convenção do Partido Democrata, não deixam os apoiantes dos palestinianos tomarem a palavra.

A teoria da grande substituição, o fim dos europeus e os números

«A Europa está à beira de ser conquistada pelo Islão, uma civilização jovem, enraizada e espiritualmente forte, superior a uma Europa envelhecida e frágil, em que o comportamento das suas elites traiçoeiras é a maior expressão de uma civilização em queda livre», escreve José Pedro Zúquete no seu livro Os Identitários, uma espécie de apresentação e estudo académico dessa rede de movimentos de extrema-direita. Aí se faz a história da génese desses movimentos que se assumem contra o globalismo e o Islão na Europa, numa altura que, segundo o autor, se assiste a uma espécie de inverno demográfico dos europeus, e o crescimento em massa da imigração e da população de origem estrangeira no velho continente. Zúquete afirma que os identitários se batem pela «sobrevivência literal da cultura e povos europeus», e que Portugal não vai ser imune a esses fenómenos que vão pôr as lutas dos identitários no centro das discussões políticas que vão moldar o nosso futuro.

Não há dúvida que, um pouco por toda a Europa, as questões da imigração servem de bandeira para uma extrema-direita em crescimento. Resta saber se isso deriva de uma realidade em mudança que reflectiria o crescimento dessas ideias, ou apenas o avançar, com auxílio das redes sociais e da crise económica, de um pensamento racista que se espalha por vários sectores da sociedade que até agora estavam calados sobre o racismo e xenofobia. Muitas vezes por que lhe faziam ter vergonha na cara.

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Frente Anti-Racista: homenagear as vítimas do racismo no Dia de Portugal

No dia 10 de Junho assinala-se mais um ano volvido sobre o assassinato racista de Alcindo Monteiro. Às 11h, na Rua Garrett, em Lisboa, serão recordadas todas as vítimas do racismo em Portugal.

CréditosTiago Petinga / Lusa

«O racismo – enquanto relação de poder – é reproduzido todos os dias como forma e processo de dominação, opressão e violência sistemática em todos os ambientes: no trabalho, no café, num restaurante ou loja e nas instituições», alerta a Frente Anti-Racista (FAR), organização que lançou a convocatória para a acção no dia 10 de Junho.

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Bruno, assassinado na sua terra

Bruno Candé Marques, actor da Casa Conveniente, foi assassinado em plena luz do dia este sábado. Antes dos tiros, ouviu insultos racistas que o mandavam «de volta para a sua terra». Até quando?

Bruno Candé Marques
CréditosBruno Simão

Foi assassinado este sábado Bruno Candé Marques, actor da Casa Conveniente e Zona Não Vigiada. Pai de três filhos, Bruno nasceu em Lisboa em 1980 e iniciou o seu percurso de actor no grupo de teatro da Casa Pia.

Sentado num banco, a passear a sua cadela, foi alvejado por um homem idoso com quem alegadamente tinha tido uma discussão por causa do animal de estimação, na passada quarta-feira. 

Um crime que será punido nos termos da lei, certamente. Mas importa falar dele para alertar para o que há de particular neste assassinato. Os insultos que Bruno ouviu antes de morrer mandavam-no «voltar para a sua terra». Quantas vezes por dia serão proferidos insultos deste tipo? Embora o discurso de ódio contra sujeitos racializados esteja longe de ser uma novidade, este tem sido cada vez mais legitimado, porque há mais espaço hoje do que há uns anos para esta narrativa no espaço público, a começar pela Assembleia da República.

O espaço que estas forças retrógadas têm vindo a ganhar, no poder e no campo mediático, permite tirar das gavetas, legitimar, e dar suporte àqueles que durante muitos anos apenas podiam afirmar os seus preconceitos entre dentes, por causa dos avanços conseguidos no 25 de Abril e dos valores progressitas desta revolução.

Todos os democratas devem tomar posição e impedir que volte a sair do esgoto um conjunto de valores que promovem a divisão e discriminação por forma a justificar as injustiças e desigualdades que prevalecem na sociedade.

O que nos divide não é o que nos torna distinguíveis uns dos outros, fisicamente ou culturalmente. O que nos divide é a ideia de que somos mais parecidos com o nosso patrão porque temos a mesma cor de pele do que do homem negro que trabalha na empresa ao nosso lado e que vive no nosso bairro.

Quantos é que somos, aqueles que vivem do seu trabalho e que vêem os seus direitos ser postos em causa quando se anuncia a próxima crise? A culpa de ter o meu emprego em risco é daquele com quem vou amontoado no autocarro às 7 da manhã cujos avós nasceram noutro país? Ou será dos que optam por direccionar a riqueza que eu e ele produzímos para manter os privilégios de um pequeno grupo?

A este pequeno grupo de privilegiados serve bem que desconfiemos do nosso vizinho, do nosso colega de trabalho, por causa da sua cor de pele.

Tipo de Artigo: 
Opinião
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Inês Pereira

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Várias associações e movimentos, de vários quadrantes de intervenção social em Portugal, já subscreveram, até ao momento, a convocatória da FAR: a Associação Cultural Moinho da Juventude; o grupo Baque do Tejo; o Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC); o Operário Futebol Clube Lisboa; a Interjovem - CGTP-IN; a Casa do Brasil de Lisboa e o Colectivo MUMIA Abu-Jamal, são apenas alguns exemplos dos movimentos que estarão presentes no acto.

Unidos, os subscritores, e todos os que a eles se juntarem, pretendem «homenagear e recordar», neste 10 de Junho de 2022, «todos os que foram vítimas de racismo em Portugal, como Giovani Rodrigues, Bruno Candé e Wilson Neto». A manifestação terá lugar às 11h na Rua Garrett, em Lisboa, local onde, há 27 anos, assassinaram Alcindo Monteiro.

Dia da Raça

A escolha do Dia de Portugal não foi casuística. A data foi acolhida pelo regime fascista e colonialista de Salazar para assinalar o «Dia da Raça», monento de exaltação das façanhas «dos portugueses» ao longo da «sua» história. O fascismo fez uso destas comemorações para reescrever a história do país, apagando, por exemplo, os muitos crimes cometidos, ao longo de décadas, nas colónias.

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Entrevista a Miguel Dores

«Alcindo Monteiro é uma história que não podemos esquecer nem perdoar»

O filme Alcindo foi aplaudido de pé durante muitos minutos pela plateia que lotou a sua estreia no Doclisboa. Um murro no estômago para quem defende que existem racistas sem racismo. 

Imagens de manifestação anti-racista no documentário «Alcindo».
Créditos

Miguel Dores é estudante de mestrado em Antropologia. O trabalho final é uma tese sobre o caso Alcindo Monteiro. Uma tese que tem um filme. A realização deste filme foi possível com o apoio de muitas centenas de pessoas. «Alcindo» convoca uma memória que alguns querem enterrar, para não ver de frente o racismo estrutural que permitiu este crime.

A tese do filme é que a responsabilidade pelo assassínio de Alcindo Monteiro vai muito para além dos seus autores materiais. Até onde vão essas responsabilidades?

Desde logo, é devido à forma como Portugal trabalha a sua memória colonial e a responsabilidade contra-revolucionária que permitiu – anos depois do 25 de Abril de 1974 – a reconstrução de um discurso salazarista sobre o império. Isto faz com que a responsabilidade da sociedade e dos políticos seja muito vasta em relação ao crime. É esta a tese do filme. Se as pessoas estão à espera que o filme acuse 17 jovens neonazis, vão encontrar isso, mas também vão encontrar um plano mais geral sobre Portugal e sobre a forma como naquela época e momento se constrói a memória colonial e a ideia de império.

No filme fala-se no regresso das comemorações do 10 de Junho, antigo Dia da Raça, três anos depois da Revolução de Abril, e como isso ajuda a fazer o caldo cultural que levou a que em 10 de Junho fosse assassinado Alcindo Monteiro. Temos só um problema de memória histórica não resolvido ou também uma não assunção reiterada de que há racismo?

O filme tenta dizer que precisamos de ter uma compreensão estrutural do racismo, mas precisamos de perceber que o racismo tem agendas políticas e interesses por de trás. As forma como se constroem os discursos e as políticas públicas, que têm um impacto nas construção de tensões e ódios raciais que geram linchamentos: a ideia que o racismo mata. Precisamos de compreender que há fenómenos interpessoais, que são gerados por estruturas sociais, que são muito mais latas que esse momento e essa explosão.

Durante o documentário, a certa altura, aparece Salazar, depois Eanes e finalmente Soares. Eles não dizem o mesmo, mas de alguma forma são acusados de permitirem que o discurso racista, com a ideia da excepcionalidade do colonialismo português, seria geneticamente multicultural. Mas há diferenças entre essas pessoas.

Sim, eu não estou a equiparar o pensamento político dessas pessoas, mas estou a fazer uma leitura de como é reinterpretado o mito do excepcionalismo do colonialismo português e do luso-tropicalismo. O que eu faço é perceber como há uma reconstrução histórica dos mitos do luso-tropicalismo que permeia toda a construção de políticas públicas de memória. Lembro que a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] foi criada em 1996, quando Portugal estava a preparar a Expo 98. Aquele era um momento de afirmação deste mito reconstruído pós-colonial que vai resgatar o Império. A criatura salazarista tem muito mais ramificações no presente do que nós julgamos. Todos nós temos elementos desta estrutura. Há uma peça de arquivo da RTP interessantíssima, que não está no filme: Mário Soares, no Brasil, a cumprimentar pessoalmente Gilberto Freire, em Pernambuco, numas comemorações que se fizeram lá.

«A criatura salazarista tem muito mais ramificações no presente do que nós julgamos.»

Soares diz-lhe que os democratas portugueses, tal como o Estado Novo, acreditavam no luso-tropicalismo e respeitavam o legado histórico que Gilberto Freire trouxe para Portugal. Ou seja, um discurso de continuidade, dentro do quadro criado por Salazar. É preciso ver que as independências das colónias africanas de outros países da Europa foram mais cedo que das portuguesas. O discurso luso-tropicalismo era usado para justificar que as colónias portuguesas estavam bem como estavam porque eram, alegadamente, diferentes. A manutenção da ideia que Portugal não se esgotaria neste canto e estendia-se pelo mundo. Através desse discurso queria-se, como efeito político, justificar a continuidade da ocupação portuguesa desses países.

Até a esquerda não minimiza por vezes a luta anti-racista?

No mapa das ideologias contemporâneas verifica-se uma tendência, desde os anos 70, de extrair os movimentos feministas e anti-racistas da sua ligação histórica aos movimentos socialistas e comunistas, nos quais sempre estiveram e, dentro disto, constrói-se um discurso liberal e identitário. É também por isso que vemos partidos de esquerda a serem reactivos a estas questões. Mas é um erro. É um erro de memória, é um erro táctico, é um erro no mais amplo sentido. Existe também uma compreensão parca de como todos estes problemas estão inter-relacionados e afectam a classe trabalhadora. Acho que deve haver uma compreensão de como são importantes estes problemas para os trabalhadores, mas isso parte da compreensão que a vida dos trabalhadores é atravessada por muitas questões que às vezes extrapolam o âmbito do trabalho, e que temos de colocar o racismo na agenda dos trabalhadores.

A criação do caldo que levou ao assassinato do Alcindo começou com a criação de um clima mediático e policial que construiu uma agenda de medo da existência da suposta ameaça de gangs de negros. Essa agenda nunca desapareceu, ainda hoje na banca dos jornais fala-se que a polícia vigia 30 gangs de jovens. A que é que se deve a permanência desse discurso?

Analisando o que aconteceu em Portugal, penso que essa agenda está muito ligada à criação das televisões privadas. Cria-se uma nova ideia de comunicação social em que se aposta nos escândalos maniqueístas. A questão dos gangs é um tema muito rentável para esses meios. A ideia da criminalidade e a existência de «inimigos públicos» são muito vendáveis para esse tipo de meios de media. Embora isso seja por vezes contraditório: a melhor peça jornalística que há sobre o caso Alcindo Monteiro foi publicada no Observador, em contrapé com muitos conteúdos nesse site. No geral, naturalizam-se estas abordagens sensacionalistas, mas depois há algumas peças a dar «o outro lado». Acho que isto também se coloca no terreno de políticas globais de construção de uma suposta ameaça dos imigrantes, que na verdade é uma agenda que começa na viragem do milénio e que produz imensas vítimas no mundo inteiro. O que eu tento fazer no filme é perceber o que aconteceu ao Alcindo no contexto da época.

Quais são as reacções que tem tido [a entrevista foi feita antes da estreia]?

Eu já fiz cinco cortes do filme [montagens], fui mostrando à família e a pessoas que foram dando dicas. Para já, a reacção é que acham o filme muito capaz de articular a noite em que tudo se passou com o resto. Como aconteceu e o que é que está por detrás dela. O caso Alcindo Monteiro está muito ligado ao nascimento de uma agenda anti-racista em Portugal, nem tudo nasceu a partir deste caso, mas muitas das suas actuais formas e causas começaram aí, nomeadamente a capacidade de intervenção do espaço público.

Pensa voltar a fazer filmes?

Pode ser que seja um filme único. Começo este filme por razões militantes e específicas: eu queria falar deste caso e convocar esta memória, não por me considerar um realizador. Claro que eu gostava de continuar a produzir filmes, mas não sei se o vou conseguir.

É interessante que a voz da narração seja a sua. Torna-se mais um factor de humanização que se vai confrontando com a situação.

Tenho duas grandes referências para construção desse voz-off. Ele era para ser apenas um voz-off guia, para perceber o que íamos fazer com a montagem. Depois viu-se que devia ser o voz-off final, que nem era para ser inicialmente com a minha voz. Depois viu-se que a voz que reflectia sobre o processo de filmagem e o encontro da informação fazia sentido que fosse a minha. As minhas grande referência, para isso, são o Cabra Marcado Para Morrer e o I Am Not a Negro sobre a história de James Baldwin. A ideia era ter um voz-off que fosse uma pessoa, uma personagem de um filme tal como as outras. Não uma voz sociológica que está explicar o filme. Mas sim, uma pessoa que está ali para suscitar reflexões e denunciar hipocrisias.

Como é que chegou ao caso, como é que ele ganhou importância sobre si?

Eu sou da Amadora, e para mim foi uma escola de vida. Comecei a ser socializado no mundo, enquanto português, num cenário em que a maior parte dos meus colegas eram negros. E comecei a minha actividade política nas escolas da Amadora, em que a minha realidade era marcada pelo rap, o kizomba e a dança do kuduro. Sempre recusei a ideia tradicional do que é Portugal e do que é ser português. Havia uma desigualdade que eu não compreendia: existiam muitos estudantes negros que não conseguiam frequentar o ensino secundário e a universidade. Lembro-me muito de amigos revoltados com a própria estrutura racista da escola. Sentia todas essas incompreensões, ainda mais tendo uma família que me ajudou a compreender as matrizes de classe da opressão. Todas essas compreensões marcaram muito o meu terreno e percurso académico. Compreender esta realidade sempre foi o meu maior motor.

«Sempre recusei a ideia tradicional do que é Portugal e do que é ser português. Havia uma desigualdade que eu não compreendia: existiam muitos estudantes negros que não conseguiam frequentar o ensino secundário e a universidade.»

Para além disso, vivi no Brasil durante cinco anos, que é um país onde a questão racial está muito presente e em que é difícil compreender estas questões sem analisar a herança colonial que ainda está muito viva. Eu também participei no movimento punk e no seio dele não esquecemos o caso Alcindo Monteiro. Recordo-me da primeira vez que fui ao Bairro Alto, tinha 14 anos, com amigos mais velhos, todos antifascistas, e de me terem contado aquela história. Apontando o dedo, lembravam-se de tudo o que tinha acontecido rua a rua. Lembro-me de ficar muito impactado, e pensar que era uma história que não devíamos esquecer nem perdoar. E ter a consciência que era uma contra-memória e que nada disto era oficial. E que apesar dos governantes terem reagido ao assassinato e ido ao funeral, o Estado português nunca assumiu uma memória sobre este caso. Exemplo disso, é terem comemorado, em 2019, o Dia de Portugal em Cabo Verde e Alcindo Monteiro nem sequer ter sido referido.

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Entrevista a Miguel Dores
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Autor de Artigo Livre: 
Nuno Ramos de Almeida

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Esse lastro é ainda visível no Portugal de hoje: em 2008, o então Presidente da República Cavaco Silva referiu-se ao dia, publicamente, com a designação que lhe foi atribuída pelo fascismo. Não deixou de salientar, aos jornalistas, que, no dia 10 de Junho, o seu papel era o de «sublinhar, acima de tudo, a raça».

As relações do 10 de Junho com expressões racistas e nacionalistas não ficam por aí. Foi no dia 10 de Junho de 1995 que Alcindo Monteiro foi brutalmente assassinado por um grupo de nazi-fascistas que comemorava a data. «Neste trágico dia, o grupo fez mais de 10 vítimas, todas elas pessoas negras que estavam a andar na rua e foram atacadas. A FAR esteve presente na ocasião, a apoiar os familiares e na luta por justiça».

O Dia de Portugal é, também, «dia de relembrar Alcindo Monteiro», afirma a FAR. A Frente Anti-Racista foi criada em 1994 com o objectivo de «contribuir para a resolução dos inúmeros problemas surgidos no seio da sociedade portuguesa relacionados com o Racismo e a Xenofobia», «denunciando todas as formas de exclusão e exploração a que os imigrantes continuam sujeitos em Portugal».

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A ideia do aumento exponencial das emigrações e imigrações no planeta não é sustentada pelos factos. Como escreve o professor de Migrações e Desenvolvimento na Universidade de Maastricht, Hien de Haas, «os níveis actuais de migração internacional não são excepcionalmente elevados, nem estão a aumentar. Com efeito, ao longo das últimas décadas, os níveis de migração global têm apresentado uma estabilidade notável. (…) segundo os dados da Divisão de População das Nações Unidas, em 1960 havia cerca de 93 milhões de migrantes internacionais no mundo. Esse número aumentou para 170 milhões em 2000, e aumentou de novo para 247 milhões estimados em 2017. À primeira vista parecerá um aumento assustador. Todavia a população mundial aumentou a um ritmo mais ou menos igual, de cerca de 3 mil milhões em 1960 para 6,1 mil milhões em 2000 e 7,6 mil milhões em 2017. Por isso, se expressarmos o número de migrantes internacionais como uma quota da população mundial, vemos que os níveis relativos se mantiveram estáveis em redor dos 3%». Cerca de 97% da população do planeta vive no país em que nasceu.

Mas há de facto mudanças nos padrões migratórios, passamos de uma Europa a exportar trabalhadores para outros continentes, para uma Europa que também recebe imigrantes, muitos deles de países e continentes que foram em tempos colonizados pelos estados europeus.

Esses números não têm o peso que muitos apregoam, não significam um peso económico e social, e muitas vezes são uma importante riqueza para os países europeus.

Segundo as estatísticas da União Europeia (UE), habitam na UE 446,7 milhões de pessoas, das quais apenas 5,3% são habitantes de países terceiros, cerca de 23,8 milhões de pessoas.

No caso português, um relatório do Observatório das Migrações que mostra que os imigrantes pesam 7,5% no total da população, em 2022, e foram responsáveis por contributos de 1.861 milhões de euros para a Segurança Social, resultando num saldo positivo de 1.604,2 milhões nesse ano. Apesar desse contributo expressivo, os imigrantes usufruem menos das prestações sociais, beneficiando apenas 257 milhões de euros.

CréditosMiguel A. Lopes / Agência Lusa

Os estrangeiros têm uma maior capacidade contributiva do que os nacionais para o sistema de Segurança Social: são 87 contribuintes por cada 100 residentes, quando em relação aos portugueses esse número foi de quase metade, de 48 contribuintes por cada 100.

Apesar desse peso laboral, em bairros como o Casal da Mira e Cova da Moura a polícia entra neles como se a cor da pele e a origem imigrante de muitas das pessoas lhe retirassem todos os direitos.

Os trabalhadores imigrantes são remetidos para territórios sem infra-estruturas e equipamentos públicos, por vezes até para terrenos do Estado nos quais desde há décadas os sucessivos governos não fizeram nada, como no bairro da Penajóia.

Só a mobilização política, dessas pessoas que no dia-a-dia contribuem com o seu trabalho para a riqueza do país, poderá mudar as coisas.

A solução para Portugal e para os problemas dos imigrantes é dar dignidade a quem cá vive e trabalha. Isto passa pela luta de classes e não pelo racismo. O racismo e a xenofobia servem para enganar a maioria e manter a miséria e os baixos salários.

A causa da desigualdade e da maioria das pessoas não terem as condições de vida que merecem não é devido aos imigrantes mas dos mais ricos que ficam com grande parte da riqueza que é criada pelo trabalho de todos.

A multiplicação do ódio e a escolha de culpar os mais desprotegidos em matéria de direitos é feita apenas para manter tudo como está. Para que tudo permaneça igual, é necessário que tudo pareça mudar. Em alturas de apodrecimento e crise, não há como agitar os ódios para isso.

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