Não sabemos o que mais admirar, se o confusionismo político, o preconceito ideológico, o simplismo redutor, o reaccionarismo militante. Mas compreende-se o desnorte e o dislate.
Como pode ter acontecido tal, na tal «grande democracia», com tanta democracia, que até se vê obrigada a «exportá-la», nem que seja à bala… E é também uma confissão não assumida da perturbação que causa ver que as políticas que defenderam e defendem tenham produzido tal «anormalidade» política.
Começa por ser admirável a dificuldade em fazer uma leitura simples e rigorosa dos números da eleição. Coisas simples como o facto de Hillary Clinton, a «Rainha do Caos», ter tido mais votos! O abominável ter menos votos que os anteriores candidatos republicanos, etc.
Como nada se diz sobre um sistema eleitoral que produz tais distorções! Um sistema onde o dinheiro dos candidatos continua a ser decisivo! Onde a abstenção ronda os 50% – o que não parece ser problema para os comentadores, desde que seja nos EUA! Um sistema onde os media fazem aquilo a que pudemos assistir 1 (É claro, que pôr agora o sistema em causa, significa também o questionamento de anteriores eleições e a natureza democrática do sistema!)
«Como pode ter acontecido tal, na tal "grande democracia", com tanta democracia, que até se vê obrigada a "exportá-la", nem que seja à bala…»
Depois, a incompreensão de como a «grande democracia americana que sempre nos fascinou» (Teresa de Sousa) produziu tal resultado. Nada se anota sobre o golpe da Direcção do Partido Democrático, que afastou Sanders nas Primárias! Nada se diz sobre o facto decisivo de um dos partidos do Sistema ter nomeado o abominável, como o seu candidato! Era obrigatório? Pergunta Stiglitz: «Porque é que o Partido Republicano dos EUA nomeou um candidato que até mesmo os seus líderes rejeitaram?» Pergunta sem resposta.
Mas onde o chorrilho dos comentários mais se despenca é certamente nas explicações. Entre outras destacam-se três.
A «Loucura dos povos» atacou os norte-americanos e não só, Miguel de Sousa Tavares, na «Noite da América». Sim, diz duas vezes, Vicente Jorge da Silva no «Pesadelo americano»: «a perigosa e contagiante (cuidado!) esquizofrenia revelada pelo eleitorado americano»; «Eis-nos perante a esquizofrenia de um eleitorado frustrado (…)».
E agora? Assobiem-lhes às botas. «Que os deuses protejam os povos da sua loucura! Que nos protejam da democracia!» Rezem ou façam figas (Miguel Sousa Tavares)!
Outra notável explicação é a ignorância e o atraso civilizacional de parte significativa (50% pelo menos) do eleitorado americano. Clara Ferreira Alves: é o «Voto desta gente branca enraivecida» que «Não querem políticas, querem o candidato do avião, da televisão, o patrão, o milionário malcriado. O ódio chega-lhes.» «É a desconfiança nascida da ignorância»!
Teresa de Sousa: «(…) no Midwest agrícola e conservador e nos homens brancos pouco instruídos que elegeram Trump não é aceitável.» «A eleição de uma mulher (…)»!
Miguel Sousa Tavares: «A outra é uma América onde a incultura e a mais larvar ignorância são vistas quase como uma virtude. É a América que elege George W. Bush e que aplaude Donald Trump.»!
Leonel Moura: «Os brancos pobres, embrutecidos pela estupidez e pela religião, que garantiram a vitória de Trump (…).»!
Espantoso. Nunca se tinham dado conta do papel da ignorância e da incultura nos actos eleitorais, mesmo em Portugal…apesar de já ter surgido esse argumento no referendo do Brexit…
Mas verdadeiramente, a razão explicativa e justificativa (de Trump com o Brexit à mistura) é a «lengalenga do populismo» (como lhe chamou Manuel Loff). Uma verdadeira epidemia! Adjectivada, teorizada.
«Populismo ignaro» (Teresa de Sousa); «a viragem populista» (Carlos Gaspar), «(…) onde as clivagens entre as democracias pluralistas e as forças autoritárias é substituída por uma polarização entre as correntes populistas e o consenso internacionalista liberal.»
«(…) os populismos inquietantemente crescentes» de Ana Catarina Mendes; para Pedro Adão e Silva é «A internacional populista»; Miguel Poiares Maduro, descobre «os populistas perigosamente ideológicos (como Le Pen) e os populistas do oportunismo (como Trump)» (que afinal não será tão perigoso como isso); para Luís Cabral, «O resultado eleitoral surpreende mas não deixa de ser apenas mais um caso de populismo»; e para Paulo Rangel, «(…) a eleição de Trump significará um enorme incentivo e encorajamento a todos os populismos que ali pululam e despontam (…)».
«Como sempre, estes
espíritos bem pensantes gostam de instrumentalizar
o "populismo" em defesa da sua dama política.»
Para Clara Ferreira Alves é revolução populista que «nem se pode dizer que seja de esquerda ou de direita». «Chamam-lhe populismo» e «Nenhuma ideologia preside a esta revolução. Nenhum propósito excepto o da disrupção do sistema, qualquer sistema, e das odiadas elites.»
A estes e muitos outros, junta-se agora também Jorge Sampaio para «evitar o alastramento dos populismos de toda a sorte»!
Mas o que é que explica o «populismo»? Mistério…
Como sempre, estes espíritos bem pensantes gostam de instrumentalizar o «populismo» em defesa da sua dama política. E como a melhor defesa é o ataque, sem qualquer pejo ou seriedade fazem a habitual amálgama dos ditos extremos «radicais», «nacionalistas»…uma confusão oportunista com claros objectivos políticos e ideológicos.
A mistificação da equidistância dos extremos serve para afirmar a sua «virtude (que) está no meio». O intencional confusionismo de má-fé, entre quem defende a superação do capitalismo e os que defendem o sistema capitalista, com as suas chagas e desigualdades, e nele vêem plasmada a sociedade dos seus sonhos, como sucede com Trump e os que acusam o «populismo» de o eleger.
Os que, certamente apenas por acaso, suportaram e suportam, defenderam e defendem o grande consenso universal da social-democracia/socialistas e dos conservadores de todas as espécies, incluindo dos dois partidos do sistema nos EUA. Ou seja, os autores e promotores das políticas do capitalismo neoliberal e do consenso de Washington; do federalismo imperial da UE, comandado por Berlim, e de completa subversão da democracia e dos direitos soberanos e iguais dos povos – por exemplo, o completo desrespeito pelos referendos nacionais; do militarismo da intervenção imperialista descarada. E que, não por acaso, são as causas e razões profundas do populismo, explorado por Trump e outros demagogos do grande capital.
O chamar da eleição de Hitler e Mussolini à colação da argumentação populista e dos perigos de Trump é uma fraude, se simultaneamente for esquecido o papel central no processo da traição da social-democracia e da conspiração do grande capital alemão!
Os perigos são reais. Nos EUA, na Europa e no mundo. As lições da história devem ser lembradas. Mas não misturem alhos com bugalhos. E a primeira obrigação dos homens e mulheres livres é identificar com rigor os inimigos da paz, do desenvolvimento e progresso social, da liberdade e democracia. E não inventar fantasmas ideológicos, bodes expiatórios políticos, manobras de diversão, que ocultam a verdadeira natureza de um sistema de poder contrário aos interesses dos trabalhadores e dos povos. Nos EUA e no mundo.
- 1. A registar as seguintes anotações sobre o jornalismo com a esperança de que tais preocupações tenham tradução caseira: 1) «Trump baseou a sua candidatura num chorrilho de mentiras que foi alegremente repetido pelas grandes cadeias televisivas (e não só), ávidas de audiências prontas a devorar o discurso politicamente incorrecto. O resultado foi que o discurso repetido se tornou mais uma verdade em competição com as outras.», Diogo Q. Andrade, Editorial Público de 8 de Novembro de 2016; 2) «(…) lembro-me do formidável jornalismo americano que me faz ter orgulho de dizer a palavra jornalista num tempo em que ela secou e se tornou instrumento político de destruição e reabilitação.», Clara Ferreira Alves, Expresso de 12 de Novembro de 2016.
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