É o final do ano, altura para tentar absorver o que de mais relevante de um ano cabe numa pequena lista de memórias. E, se sabemos que muitos destes nomes ficarão connosco para sempre, a verdade é que muitos outros, empurrados pela espuma para fora dos nossos dias, ficarão à espera de uma segunda oportunidade, para logo de seguida nos arrebatarem.
2016 ficou marcado por diversas despedidas de alguns dos maiores mestres de sempre da música. Janeiro marcou o fim da experimentação do maestro, pensador e compositor Pierre Boulez, de 90 anos, um dos mais importantes criadores da música erudita contemporânea e o último dos vanguardistas do séc. XX. A sua síntese dialéctica da criação musical do início do século deixou uma obra verdadeiramente revolucionária no seu pensamento e expressão artística, enquanto afirmou Boulez como uma das maiores figuras culturais da Europa do séc. XX.
David Bowie partiu em Janeiro na sua odisseia espacial, com uma das mais completas carreiras no Planeta Terra, cruzando o cinema, a música e um legado de influências que deixarão disseminadas a sua marca por muitas mais décadas e ainda além. «Black Star», o seu testamento musical, é, além disso, um dos grandes discos de 2016.
Em Março, despedimo-nos de Naná Vasconcelos, o homem-instrumento, percussionista, mago dos sons e figura simbólica do casamento eterno de África, o Jazz e a cultura do Brasil.
A 21 de Abril, Prince, o Rei da pop e do funk, desligou o brilho das luzes à volta da sua carreira mas não da sua música provocadora, controversa e mágica. Revolucionário e sedutor, Prince transformou a face da música popular e dos géneros, que não só musicais.
Em Novembro, o mestre poeta Leonard Cohen fechou o livro de canções e abraçou a eternidade da sua música. E a voz do furacão da soul Sharon Jones deixou de dançar entre nós, passando a brilhar entre as estrelas dos heróis da classe trabalhadora, que, como John Lennon, cantou «desde pequeno te fazem sentir pequeno, tiram-te todo o tempo, em vez de te darem o tempo todo». Sharon Jones lutou toda a vida para conseguir com suor e lágrimas alguns dos melhores momentos da música negra, numa carreira curta mas poderosa, carregada de alma e funk.
Mas 2016 foi também ano de celebração e concertos inesquecíveis. Elza Soares, renascida das cinzas do sofrimento de todas as mulheres, brilhou num concerto fabuloso no Coliseu dos Recreios. Num samba negro tão verdadeiro como a sua dor, tão poderoso como o canto dos tambores, tão forte como as histórias que canta, Elza Soares constrói ao vivo um monumento de humanismo, que do inferno das vidas roubadas incendeia a luta das mulheres contra a violência e a exploração, mesmo quando nos sussurra a sua dor no meio dos escombros. Brutal e urgente, Elza Soares faz-nos falta como o sonho, mesmo quando nos perturba a noite.
No ano em que Bob Dylan foi congratulado com o Prémio Nobel da Literatura, a palavra soprou no vento da História e o verso separou-se do canto para criar um terramoto. Merecido ou não, o Nobel de Dylan revelou o que já se sabia, a mestria de um dos maiores escritores de canções de sempre.
Por fim, na produção nacional muitos foram os discos que marcaram o ritmo de 2016. Marta Ren com «Stop, Look, Listen» e Cais Sodré Funk Connection com «Soul, Sweat & Cut the Crap» – apesar de eu ser suspeito e totalmente comprometido nesta matéria – deixaram o ano com dois dos mais importantes registos para a história do funk em Portugal. Rigor, paixão e poder soul em doses generosas.
Também os Cacique 97, com «We Used To Be Africans», fazem o espírito de Fela Kuti manter-se vivo e rebelde em 2017, com um maduro segundo álbum de originais editado no final do ano.
De Moçambique, a estreia de Trkz com o EP «Filhos da Terra» foi uma das grandes revelações do ano, com o jovem rapper, produtor e cantor moçambicano a revelar criatividade e capacidade melódica extraordinárias no seu cruzamento de electrónica, hip hop e psicadelismo.
O álbum «Língua», dos Octa Push, é o verdadeiro estado da arte da cultura urbana lisboeta no seu cruzamento perfeito entre electrónica e ritmos afro, sem nunca descurar o papel essencial das canções. A versão aí incluída de «Galinhas do Mato», de Zeca Afonso, com a participação do Gospel Collective, é disso o exemplo e uma perfeita re-actualização de todo o valor intrínseco do original.
No plano internacional, muitos foram os discos relevantes de 2016. O espaço não nos permite elencar essa lista exaustiva, que iremos trazer aqui ao longo do próximo ano. Mas, pelo seu valor, espírito de aventura, simbolismo e valorização da obra original, destacaria em 2016 a edição em vinil da versão original de 33 minutos de «Do Your Thing», de Isaac Hayes e os Bar-Kays, gravado originalmente em 1971 e nunca antes editada. Música de sempre, estimulante, criativa, onde, com arte e doses psicadélicas de soul, funk e rock, um grupo de músicos audazes se entrega ao derrubar de fronteiras na música e nas convenções, enquanto esculpem no silêncio um clássico intemporal.
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