O primeiro-ministro visitou o corpo expedicionário português presente na República Centro Africana, aliás um episódio histórico bizarro no país que associou a sua democratização a proclamações como «nem mais um soldado para África» ou «nem mais um soldado para as colónias» (o que também é válido para neocolónias dos outros).
Poderia citar mil e uma obrigações da agenda do Dr. António Costa capazes de se sobrepor à necessidade de levar solidariedade a uma missão militar considerada «humanitária» e que se diz ao serviço da ONU e da União Europeia; a qual, em derradeira análise, serve interesses estratégicos e neocoloniais de alguns aliados e de meia dúzia de impérios económicos tirando proveitos de áreas sangrentas como são a exploração de ouro e diamantes. E que nada têm a ver com os interesses dos portugueses.
Como gesto político é dispensável. Até parece que em terra portuguesa tudo corre sobre rodas, como se as garras de uma oposição revanchista não estivessem esgatanhando em tudo, invocando aliás a tutela de uma das entidades a quem o chefe do governo foi levar solidariedade até Bangui: a União Europeia, essa organização assanhada contra quase tudo o que o executivo faz em Portugal e que, por sinal, é um dos grandes receptadores dos diamantes centro-africanos – legais ou clandestinos.
O que os militares portugueses fazem na República Centro-Africana, em terminologia oficial, é participar numa missão da ONU e da União Europeia (e da NATO, subentende-se sem esforço) para normalizar a situação institucional no país, dilacerado por sangrentas e induzidas refregas entre milícias muçulmanas e cristãs associadas à exploração – por terceiros – das riquezas mineiras do território.
A cavalo da restauração institucional garante-se, como é óbvio, a normalização da rentável actividade de exploração e exportação de diamantes, a cargo de poderosas transnacionais. Informam múltiplos estudos e investigações internacionais que os principais destinos dos diamantes da República Centro-Africana, tanto os exportados legalmente como clandestinamente, são os Emirados Árabes Unidos, a União Europeia e Israel.
«Esta guerra só é "humanitária" para efeitos de propaganda.»
Concretiza-se assim uma lucrativa operação de centenas de milhões de euros – misto de comércio e tráfico. Por exemplo, verifica-se que os diamantes declarados na Bélgica como importados da República Centro-Africana, com entrada principal por Antuérpia, chegam a atingir o triplo do valor da exploração oficial de diamantes divulgada neste país pertencente ao top ten da actividade. A mascarada envolve também, como não é difícil apurar, as rotas clandestinas com origens igualmente na República Democrática do Congo, Serra Leoa e outros territórios.
Os militares portugueses estão em Bangui a criar condições para sanear este escândalo económico e humanitário? Não sejamos ingénuos: ele vem de muito antes das atrocidades entre as milícias seleka e balaka e prosseguirá, em paz, sossego e, provavelmente, com maior volume quando normalizadas as instituições do país que já foi do «imperador» Bokassa e seus diamantes, ofertados, quando convinha, a presidentes europeus neocoloniais.
Quanto à presença da ONU no país, para não agravar o tão degradado prestígio da organização talvez seja misericordioso poupar os leitores a pormenores. Desde a conhecida e descarada exploração de trabalho infantil, sob os seus olhos, na mineração de ouro e diamantes, até múltiplos casos de crimes sexuais, há de tudo um pouco na crónica da indigna presença no terreno de membros enviados pelas Nações Unidas.
Admitamos que este cenário não é a razão de ser do contacto entre o primeiro-ministro e os militares portugueses. Contudo, ele existe e está indelevelmente associado à missão atribuída ao corpo expedicionário português. Pelo que o autêntico gesto de solidariedade do Dr. António Costa para com os militares expatriados e o prestígio das Forças Armadas Portuguesas seria poupá-los a uma missão que tem objectivos não claramente explicitados, e que extravasam o real papel que deve estar reservado aos destacamentos operacionais em territórios além-fronteiras.
A tropa portuguesa não está ao serviço de interesses dos outros, com a agravante de estes serem mal explicados ou explicáveis segundo o conceito do business as usual, ou o negócio do costume.
Esta guerra só é «humanitária» para efeitos de propaganda. E as Forças Armadas devem estar ao serviço de interesses que sejam efectivamente transparentes e dos portugueses, o que está longe de ser o caso.
Um mais cuidadoso e independente alinhamento das prioridades de agenda não faria mal ao primeiro-ministro.
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