Voyeurismo ou informação?

O caso não deixa grande margem para dúvidas. Trata-se de uma tragédia ética, que transcende em muito a discussão acerca da conduta do «Correio da Manhã», ainda que esta seja muito criticável e mesmo inaceitável, que deve ser analisada no respectivo enquadramento.

CréditosJoel Benjamin

Há 15 dias, o jornal Correio da Manhã colocou-se, mais uma vez, no centro do debate sobre deontologia e práticas dos media, por ter difundido, no seu sítio na Internet e através do canal de televisão homónimo, um vídeo sobre práticas de cariz sexual testemunhadas com aparente indiferença («ninguém fez nada», dizia), que começou por intitular como «violação», passando depois a mencionar «abuso sexual» – tese retomada na edição impressa.1

A discussão, designadamente nos media e nas redes sociais, foi tão acalorada que pessoas com crédito intelectual e conhecedoras do mundo da comunicação social, da sua história e dos seus problemas, chegaram a advogar pelo menos a «desclassificação» do CM como jornalismo. Outros defenderam a sua suspensão imediata.

O caso justifica séria reflexão e avisada prudência para não descambarmos na demagogia e na exigência perigosa. Se tais expeditas medidas administrativas fossem possíveis, os inimigos da liberdade de Imprensa ficariam radiantes. Se soubesse quantas más medidas foram tomadas invocando-se boas razões, quem as defende teria refreado os ímpetos justicialistas.

O caso não deixa grande margem para dúvidas. Trata-se de uma tragédia ética, que transcende em muito a discussão acerca da conduta do jornal, ainda que esta seja muito criticável e mesmo inaceitável, que deve ser analisada no respectivo enquadramento.

Em primeiro lugar temos a «cena» – degradante e humilhante desde logo para os «protagonistas», mas muito especialmente para a rapariga, venha ou não a apurar-se, ou a confirmar-se, responsabilidade criminal, e independentemente do grau de consciência e da capacidade de discernimento em que se encontravam.

Na «cena», aparentemente passada num autocarro de serviço especial para a «Queima das fitas» do Porto, entra também uma horda de estudantes universitários, que observa, incentiva e filma em grande e alarve gáudio, assumindo uma grave conivência moral com o que ali se passava e, muito pior, tornando-se eticamente responsável pelo que ali sucedia.

Neste ponto da reflexão, impõe-se atalhar para uma inquietação moral e cívica. Os jovens que participam na cena são uma amostra da geração mais escolarizada de sempre, graças – e muito bem – à democratização do ensino, com o alargamento da escolaridade obrigatória e a criação de condições (ainda muito insuficientes) para o acesso ao ensino superior.

Comentários mais ou menos condescendentes, mas nem por isso menos cúmplices, alegaram ser «habitual nestas alturas» os jovens universitários e amigos entregarem-se a toda a sorte de desmandos e de «excessos», ébrios e brutais, incluindo os de natureza sexual.

Há dúvidas sérias sobre os graus de vontade, consciência e, sobretudo, de autodeterminação dos participantes nessas condições. E não será descabido – e portante preocupante – admitir que a embriaguez e os estupefacientes como justificativo do «consentimento» são afinal um cínico eufemismo para referir-se ao que poderá constituir ofensa, abuso, violência e humilhação.

Que os há, e há muito, dizem. O problema é, nos dias que correm, o irresistível apelo tecnológico. Qualquer pessoa possui um «telemóvel inteligente», equipado com câmara e dotado de capacidade de transmissão de fotos e vídeos para terceiras pessoas ou para a massa universal de utilizadores do espaço web.

«Um dos argumentos justificativos da divulgação do vídeo através de meios de comunicação social é o de que as imagens já circulavam nas redes sociais – como se isso bastasse como autorização ética para valorizarmos artificialmente o fútil e irrelevante, o boçal e ofensivo e até o violento.»

De repente, achamo-nos todos nesse espaço, dilatando até ao infinito a esfera da nossa privacidade devassada até à molécula mais pequena do reduto da nossa intimidade. Ou porque tomamos imagens de nós próprios e as divulgamos, ou porque consentimos que tomem e as publicitamos, ou porque não damos conta de que o fazem. Talvez um dia um legislador se lembre de propor licença de uso e porte de arma para telemóveis…

E, naquele autocarro, muitos possuíam telefones desses e não hesitaram em pô-los em acção. Houve quem colocasse pelo menos um filme a correr na Internet, o que pode configurar a tomada e a divulgação ilícitas de imagens. Não admirará que outros vídeos surjam à luz desse obscuro universo virtual.

Parecendo diluir-se numa multidão galáctica de fantasmas, hão-de um dia (pode ser amanhã, ou daqui a décadas) devolver a circunstância bem concreta da individualidade e da identidade dos protagonistas destas e de outras «histórias», eternamente cativos das armadilhas tecnológicas.

Mesmo que tenham consentido – com aspas ou sem aspas – nos factos e na tomada de imagens e sons, não têm já direito ao arrependimento nem a reclamar a obliteração da memória, porque a pegada digital dos seus actos jamais poderá ser apagada.

Não é difícil imaginar os efeitos devastadores, se um dia, essas imagens ressurgirem nas suas vidas como salteador de estrada.

Um dos argumentos justificativos da divulgação do vídeo através de meios de comunicação social é o de que as imagens já circulavam nas redes sociais – como se isso bastasse como autorização ética para valorizarmos artificialmente o fútil e irrelevante, o boçal e ofensivo e até o violento.

O que, pelo contrário, devemos interrogar-nos é até que ponto a divulgação pelos media representa uma forma de legitimação da tomada e divulgação ilícitas de imagens e sons, inclusivamente aumentando a sua publicidade, à custa da multiplicação dos acessos acicatados pela «curiosidade». Se um jornal os publica, alguma «verdade» conterão; algum «interesse» terão.

É legítimo discutir se a divulgação do vídeo em causa, desprovido de enquadramento e contextualização (o que foi conseguido em parte na edição impressa), se destinou mais a corresponder ao voyeurismo dos internautas e dos telespectadores, numa cedência ao sensacionalismo e no afã de capturar consumidores e garantir audiências, do que a noticiar e a colocar em discussão factos de real interesse público.

Assim como se deve questionar se, sob a alegação de que se pretendia denunciar uma situação de abuso se não estará, afinal, a expor a vítima ainda mais, e de forma reiterada, ampliando o seu sofrimento e a sua humilhação – um problema que o próprio jornal não deixou de colocar ao apontar uma falha deontológica à RTP, por ter exibido a imagem de uma jovem apontada como a primeira vítima portuguesa do jogo da «Baleia azul».2

Um dos problemas mais difíceis do Jornalismo e para os jornalistas, à força de tanto cedermos à tentação comercial – que muitos supõem a «essência» do jornalismo – assente na «máxima» good news is no news, bad news is good news, é que a maior parte das notícias que «vendemos» são realmente más, no sentido de que têm consequências negativas na vida das pessoas objecto de notícia, no imediato ou a prazo.

Ajudará um pouco a tomarmos maior consciência desse problema, se os jornalistas forem capazes de colocar-se, como mera hipótese, na pele das pessoas das pessoas de quem falam e sobre cujos dramas assentam a pretensa autoridade de «mensageiros».

Podem repetir até à exaustão que «a realidade não fica melhor se ignorarmos os factos», mas não irão longe na sua missão de procurar a verdade se ignorarem as circunstâncias e subestimarem as consequências dos seus actos.

  • 1. Edição de 18 de Maio
  • 2. Edição de 21 de Maio

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