Em primeiro lugar porque é uma mentira; depois, porque essa aldrabice, assumida e propagada conscientemente, ilude expectativas e esperanças alimentadas nas vastas comunidades que vivem directa ou indirectamente aterrorizadas; além disso, porque mistifica a realidade da situação internacional, fazendo com que prevaleçam e surtam efeito as teses disseminadas a propósito de supostas ameaças que, de facto, não o são; e também porque é uma mentira que distorce o verdadeiro significado do terrorismo, tenta esconder as suas cumplicidades e permite que se escondam na floresta dos enganos e da desfaçatez assassina os que tiram mais proveitos do crime.
Porém, a cortina censória que deixa amplo espaço à mistificação não é opaca. Há muito que se conhecem cumplicidades entre os cruzados da guerra contra o terrorismo e os seus supostos alvos, cultivadas em terrenos férteis que se alongam do Afeganistão à Líbia.
Também não é novidade, para muita gente, que se o Daesh não possui hoje a força que lhe fomentou a aura de arrasador, de horda irresistível, isso deve-se aos terríveis golpes que lhe têm sido infligidos, na Síria, pela cooperação entre as forças armadas russas e sírias; e, no Iraque, pelo exército iraquiano, desde que conseguiu furtar-se às grilhetas da tutela absoluta das forças ocupantes norte-americanas, que o condenavam a uma confrangedora inutilidade.
Mesmo não conseguindo encobrir tudo, o manto da propaganda veda, à maioria das pessoas, o conhecimento da realidade integrada do espectro do terrorismo, dos seus apoios e beneficiários, transformando-a num produto inconsumível, ferido de maneira letal pelas artimanhas das supostas, e cada vez mais abrangentes, «teorias da conspiração».
A BBC, numa situação que honra o jornalismo íntegro, rarefeito a esse nível, desafiou agora essa maldição e foi um dos meios de comunicação que divulgou a maneira como a «coligação internacional» chefiada pelos Estados Unidos para «combater o Daesh» na Síria organizou, em 12 de Outubro, a fuga e salvamento de grande parte da estrutura operacional deste grupo acantonada na sua «capital», a cidade síria de Raqqa.
Quando perderam o principal reduto, graças à ofensiva generalizada das forças de Damasco e dos seus aliados russos, os comandantes, destacamentos militares, respectivas famílias, armas e munições do Daesh beneficiaram de um comboio de transportes, longo de sete quilómetros e com motoristas pagos a peso de ouro, facultado pela «coligação internacional» e pelos seus amanuenses das «forças democráticas sírias», um dos vários heterónimos do terrorismo internacional que levou a guerra à Síria.
Desta maneira, e armados até aos dentes, de acordo com o relato da BBC, os derrotados em Raqqa foram redistribuídos pelo território da Síria ainda sob ocupação e alguns chegaram à Turquia.
Outros seguiram destino diferente. Segundo um terrorista de origem francesa entrevistado pelo autor da reportagem da televisão britânica, ele e outros membros do Daesh receberam instruções para regressar à Europa, designadamente a França, para organizarem atentados.
Por essa altura, os serviços de espionagem norte-americanos advertiram os seus parceiros do lado de cá do Atlântico para se precaverem contra a possibilidade de acontecerem novos ataques terroristas, sobretudo por ocasião das festas de Dezembro.
Em boa verdade, a NSA e subsidiárias não necessitam da sofisticada aparelhagem de combate à privacidade dos cidadãos de que dispõem ao redor do globo. Sabendo que o Pentágono organiza a salvação de terroristas do Daesh em perigo, e que alguns destes recebem instruções para realizar atentados, qualquer exercício da mais elementar lógica aristotélica garante deduções óbvias como a que foi comunicada à comunidade europeia da espionagem.
Os apoios assegurados pela «coligação internacional» ao Daesh em Raqqa não são caso único, longe disso. Outros já conhecidos apenas não têm cobertura da BBC ou similares, logo não existem – embora aconteçam.
Como em At Tanf, onde os Estados Unidos, em nome da «coligação internacional», criaram uma base aérea clandestina – porque à revelia do governo legítimo da Síria – alegadamente «para combater» o Daesh. No âmbito das operações nessa base, os ocupantes vedaram o acesso das comunidades locais, e dos refugiados do campo de Rukban, a todo o auxílio humanitário numa área de 55 quilómetros em redor. Por duas vezes, pelo menos, o exército sírio e seus aliados foram atacados a partir dessa base quando realizavam operações contra o Daesh.
Também em Abu Kamal se registaram acontecimentos associados a esta estranha guerra da «coligação internacional contra o terrorismo». A região foi libertada pelo exército de Damasco e não tardou que os satélites registassem o movimento de um longo comboio de êxodo, dando a fuga aos terroristas derrotados em direcção a Wadi al-Sabha, ponto de passagem para território do Iraque sob controlo norte-americano.
Partilhando as indesmentíveis evidências registadas, Moscovo entrou em contacto com a «coligação» sugerindo uma cooperação operacional para atalhar a fuga dos criminosos e completar o trabalho antiterrorista realizado em Abu Kamal. A resposta de Washington foi negativa: os fugitivos estavam «a render-se voluntariamente», pelo que não poderiam ser atacados à luz das Convenções de Genebra.
Provando que levavam a sério o pretexto invocado, apesar de os mercenários se retirarem em condições perfeitamente operacionais, prontos a retomar a guerra noutras frentes, tropas da «coligação», congregadas em redor dos «moderados» das «forças democráticas sírias», internaram-se 15 quilómetros em redor de Abu Kamal para neutralizarem qualquer ofensiva das forças de Damasco contra os terroristas foragidos.
Em Abu Kamal, o contingente libertador encontrou provas de que as «forças democráticas sírias» e o Daesh actuam, afinal, em conjunto. Philip Giraldi, ex-operacional da CIA e analista israelita, desmentiu que exista qualquer colaboração entre os terroristas «moderados» e os «extremistas», apesar das evidências.
«O que pode haver é uma certa mistura em alguns enclaves», admitiu. Remetendo-nos mais uma vez para a denúncia feita pelo general norte-americano Wesley Clark, ex-comandante supremo da NATO, segundo a qual Israel também contribuiu para a criação «do projecto do Daesh».
Os exemplos da cumplicidade entre os operacionais da «guerra contra o terrorismo» e os terroristas abundam. Quando as tropas sírias e os seus aliados russos libertaram Deir ez-Zor encontraram um gigantesco arsenal do Daesh – camuflado e em abrigos subterrâneos – constituído essencialmente por armamento, munições, tanques e viaturas de transporte de fabrico norte-americano e dos seus aliados, desde as mais relevantes potências da NATO a Israel.
No impressionante mostruário não faltavam avançados sistemas de comunicação e reconhecimento, além dos mísseis anti-tanque TOW, que se obtêm unicamente por fornecimento directo e não em qualquer revendedor de vão de escada. O fenómeno teve uma explicação oficial norte-americana, a de sempre: «os fornecimentos foram feitos pelos Estados Unidos aos seus aliados no terreno, mas caíram nas mãos dos terroristas».
As explicações oficiais de Washington, já o sabemos, valem o que valem. No auge da vaga de propaganda em torno da suposta participação da «coligação internacional» na libertação do feudo do Daesh em Raqqa, o secretário norte-americano da Defesa, James Mattis, explicou que o objectivo dos Estados Unidos é «o extermínio» dos terroristas.
«Procuraremos que nenhum sobreviva a este combate», assegurou. Confrontado, entretanto, com a operação de salvamento e fuga das estruturas criminosas derrotadas, o general norte-americano Ryan Dillon, porta-voz da «coligação internacional», assegurou que esta prática não contradiz a estratégia definida por Mattis. «Demos aos nossos aliados sírios o poder de decidir, uma vez eles é que morrem no terreno; escolheram evitar os tiroteios e poupar vidas humanas», sentenciou.
Ainda em matéria de explicações oficiais, segundo a CNN o Pentágono prepara-se para anunciar que são dois mil, e não apenas 500, os efectivos militares norte-americanos na Síria, e todos eles do ramo de operações especiais. Trata-se de um contingente de invasão, porque entrou e permanece à revelia do governo legítimo do país.
O objectivo, justifica Mattis, é que «os Estados Unidos se mantenham militarmente no terreno para apoiar uma solução diplomática». Mas como as explicações oficiais, já o sabemos, valem o que valem, não custa admitir que Washington, a par de Israel, tente evitar, a todo o custo, a vitória de Damasco, a reunificação síria e o restabelecimento da normalidade no país.
Alguém disse que a insistência no desmembramento da Síria pode ser «um novo Vietname» para os Estados Unidos. Uma interpretação capaz de ser bem menos ficcional que as declarações norte-americanas – e da NATO – garantindo que praticam o «combate ao terrorismo», e prometendo até «o extermínio do Daesh».
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