Do pior e do melhor na cultura, em Janeiro de 2018

Uma livraria centenária que fecha portas, um património a ser defendido; os filhos dos homens que nunca foram meninos, ontem e hoje; e a música como um bálsamo. São as sugestões de Manuel Augusto Araújo, neste Janeiro.

Interior da livraria Aillaud & Lellos
CréditosLojas Com História/Câmara Municipal de Lisboa

Do património que falece à necessária defesa do património

Em Lisboa uma livraria quase centenária, a Aillaud & Lellos, encerrou as suas portas no fim do ano por não suportar o aumento de renda exigido pelo senhorio. A ironia é ao lado do cartaz em que se anuncia o encerramento estar um autocolante com o logotipo «Lojas com História» da recém-formada rede do programa Lojas com História, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa (CML).

Não são as boas intenções que ultrapassam os efeitos devastadores da famigerada lei das rendas de Assunção Cristas ‒ no não menos famigerado governo PSD-CDS ‒, a qual provocou uma onda de despejos brutal que ex-governante procura eclipsar manipulando os efeitos dessa lei da sua deliberada responsabilidade, ventilando um argumentário em que vale tudo mesmo negar as próprias evidências, como se viu durante a campanha eleitoral para as autárquicas, durante a qual se arvorou em defensora das lojas históricas de Lisboa enquanto elas iam fechando vítimas da sua irresponsabilidade.

É menos uma livraria onde se podia procurar o que não se encontra nos dominantes espaços livreiros. Do ponto de vista da arquitectura também se vai certamente perder a bela fachada e letragem art-deco, como já se perderam outras lojas dessa zona da baixa, muitas desenhadas pelo arquitecto Conceição Silva em colaboração com artistas plásticos, agora só memória de um património que se tem vindo a alienar.

Isto quando se proclama 2018 ‒ Ano Europeu do Património e o Ministério da Cultura está alegremente entusiasmado com a privatização de mais de trinta monumentos que irão ser entregues à indústria do turismo. Inquietante, preocupante é o Ministério da Cultura não assumir as suas responsabilidades nesse processo, porque a grande questão é saber se as operações imobiliárias necessariamente associadas a essas recuperações garantem e como garantem as suas memórias originais, se essas memórias serão e como serão sacrificadas à sua reabilitação.

Não é límpido como o empreendedorismo turístico, com promessas de restaurar o património edificado, lhe vai dar acesso público, desde que, evidentemente, não incomode os utentes que pagam para dormir e vaguear por onde dormiu e vagueou a extinta nobreza, pelo que se deve preservar o sossego desses esplêndidos momentos de ócio, pagos e bem pagos aos empreendedores, que em poucos anos amortizam os investimentos feitos à conta do valor histórico desses lugares.

Movimento cívico e de cidadania, precisa-se

A primeira sugestão cultural, aceitando-se com todas as reservas o Revive, é que se gere um movimento cívico e de cidadania que exiga que seja o Ministério da Cultura a elaborar os programas para cada um dos monumentos, resolvendo na medida do possível os problemas enunciados e só depois os colocando a concurso. Há ainda outro problema que o governo devia corajosamente enfrentar que é o da crise com que se debatem os profissionais de arquitectura. Todos esses projectos deveriam obrigatoriamente ser sujeitos a concurso público não limitado, não deixando a escolha das equipas de arquitectura entregue à selecção aleatória dos adjudicatários. No 2018 – Ano Europeu do Património, estaria Portugal a dar um passo em frente e inovador para defesa do património mesmo no quadro de um desinvestimento generalizado dos Estados na cultura o que só causa as máximas apreensões, olhando para o que tem acontecido por essa Europa fora.

Crianças sem horizontes. Dos meninos de ontem...

O grande destaque desta semana vai para as crianças. As crianças sem horizontes ou com um longínquo horizonte de esperança. Carina Infante do Carmo e Violante F. Magalhães organizam um interessantíssimo conjunto de colóquios, seminários e mesas-redondas, a decorrer em Lisboa na Faculdade de Letras e no Museu João de Deus, e em Vila Franca de Xira no Museu do Neo-Realismo, com o tema «Miúdos, a Vida, às Mãos Cheias. A infância do neo-realismo português».

O objectivo, expresso no texto de apresentação, é o tópico da infância (e da juventude, já agora), «uma das dimensões mais significativas da construção e conquista da contra-hegemonia cultural do Neo-Realismo à política salazarista e ao seu fortíssimo investimento simbólico, político-organizativo e repressivo em torno destas faixas etárias. Para os neo-realistas, a criança é um dos ícones da esperança, da emancipação social e da potência transformadora de futuro». O recurso à infância nas figurações artísticas e literárias combina o ensejo de denúncia com uma dimensão pícara e, fundamentalmente, lírica.
O programa é ambicioso e vasto. Inicia-se nos dias 12 e 13 de Janeiro e prolonga-se até Agosto.

Além das análises ao neo-realismo enquanto movimento literário, artístico e político, a figuração da criança nas obras de Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, Ilse Losa, Soeiro Pereira Gomes, Carlos Oliveira, Vergílio Ferreira e Fernando Namora será objecto de comunicações nesses primeiros dias.

O cinema, o teatro e leituras encenadas darão continuidade a esse excelente programa, nos dias 2 de Fevereiro, 2 e 17 de Março, em paralelo uma exposição no Museu do Neo-Realismo é o suporte físico para esta excelente iniciativa que constitui também um Curso de Formação de Professores creditado pelo Conselho Pedagógico-Científico da Formação Contínua de Professores/Curso livre creditado em ECTS pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

...aos meninos de hoje

A criança, as crianças estão também no centro da peça de teatro 150 Milhões de Escravos, com montagem e encenação de Maria João Luís. O número é o do total das crianças escravas em todo o mundo no recenseamento da Amnistia Internacional. O texto foi construido com base em um dos romances fundadores do neo-realismo literário português, Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e ainda em Em Homenagem aos Nossos Empregados, de Mickael de Oliveira, A Gaivota, de Anton Tchekov, e fragmentos de Arthur Rimbaud. Uma peça de teatro dura, violenta, sobre uma realidade que vem dos princípios da história, da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem, uma história violentíssima da humanidade que persiste nos nossos dias, em que os pobres são cada vez mais e estão mais pobres em relação aos ricos que são cada vez menos e concentram cada vez mais riqueza nas suas mãos.

150 Milhões de Escravos é uma peça que nos confronta com as cumplicidades, directas de quem pactua com este estado do mundo e indirectas de quem, até por omissão, se alheia da brutalidade da exploração capitalista que, para se perpetuar, usa todas as formas, das aparentemente mais democráticas às mais brutais ditaduras, das liberdades burguesas mais amplas aos territórios concentracionários do nazismo-fascista.

A artista e encenadora Maria João Luís interroga: Quem são hoje os filhos dos homens que nunca foram meninos? E interroga com aspereza para sobressaltar a consciência de todos os que, de uma forma ou de outra, pactuamos com esta situação.

A interpretação está a cargo de Beatriz Godinho, Catarina Rôlo Salgueiro, Emanuel Arada, Ivo Alexandre, João Saboga, José Leite, Hélder Agapito, Lígia Soares e Teresa Sobral. A cenografia é de Ângela Rocha, o vídeo de Inês Oliveira, o movimento de Paula Careto e o desenho de som e de luz de José Peixoto e Pedro Domingos.

É uma co-produção do Teatro da Trindade INATEL e pelo Teatro da Terra, em parceria com a Câmara Municipal de Ponte de Sor e o Museu do Neo-realismo. A peça vai estar em cena desde quinta-feira passada, dia 11 de Janeiro, e prolonga-se até 28 de Janeiro, com espectáculos de quarta-feira a sábado, às 21h30, e aos domingos, às 16h30.

Espera-se, deseja-se que 150 Milhões de Escravos encontre outros palcos no país.

Um bálsamo musical

A finalizar, uma referência a registos discográficos que são um bálsamo para preencher dias e noites chuvosas.

Dois de música sinfónica: o Requiem de Mozart, que depois de inúmeras e excelentes interpretações ainda consegue surpreender, agora com a direcção de René Jacobs, com a Freiburger Barockorchester, o RIAS Kammerchor e as vozes solistas de Sophie Karthauser, Marle-Claude Chappuls, Maximilian Schmidt e Joahannes Welsser; e Crazy Girl Crazy de Barbara Hannigan, maestrina e cantora da Ludwig Orchestra, que interpreta a suite de Gershwin, com arranjo de Billy Elliot, que dá o título ao disco, a suite Lulu de Alan Berg e uma portentosa interpretação da Sequenza III de Luciano Berio.

No jazz um excelente João Paulo Esteves da Silva, piano, acompanhado por Mário Franco, contrabaixo, e Samuel Rorher, bateria em luminosas improvisações, em Brightbird; e um magnifico Vijay Iyer, demonstrando a sua enorme versatibilidade como instrumentista e arranjador a tocar em sexteto, em Far From Over.

No fado os grandes destaques vão para Aldina Duarte, Quando se Ama Loucamente, que se aventura nos textos de Maria Gabriela Llansol para abrir caminho pelas paixões que abruptamente irrompem e morrem. Ainda no fado mas a traçar uma trajectória das raízes aos nossos dias, From Baroque to Fado, de Os Músicos do Tejo, com as vozes de Ana Quintans e Ricardo Ribeiro, Miguel Amaral, viola, Miguel Amaral guitarra portuguesa, Jarrod Cagain, percussão. Um disco gravado em directo, um esplêndido trabalho de produção e edição de Pierre Lavoix do concerto efectuado na Fundação Gulbenkian, um grande êxito que agora se tem repercutido nacional e internacionalmente por via do registo discográfico.

 

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