Já se diluíram por completo os ecos dos brados de indignação que responderam ao anúncio feito pelo presidente norte-americano de que irá transferir a embaixada do seu país de Telavive para Jerusalém.
A vaga de indignação correu mundo; extravasou mesmo de Paris e Berlim, de Londres e Roma, onde se escutam habitualmente vozes síncronas com os efeitos da «indestrutível aliança» entre os Estados Unidos e Israel – e que mudaram energicamente de tom nessa ocasião.
Porém, foi ira de pouca dura. Assentou em soundbites, empolgados é certo; os quais, uma vez cumprida a missão de abastecer os emissores oficiais e oficiosos da propaganda global, deram lugar ao habitual desfiar monocórdico do discurso carregado de balofas intenções em relação ao Médio Oriente e ao ritual de uma agenda internacional sem novidades. Como se nada se tivesse passado.
É impossível esconder que o ritmo das malfeitorias de Trump excede – pelo menos a nível verbal – os hábitos dos seus antecessores, o que vai instalando algum incómodo no interior da velha confraria dos aliados sob a bandeira da NATO. Nada que não seja inconsequente, enquanto os grandes interesses transnacionais comuns continuarem a superar minudências como o respeito pelos direitos humanos, o direito internacional ou a ameaça de uma guerra generalizada.
«Israel [...] continua a ultrapassar os limites de arbitrariedades e comportamentos marginais, mesmo quando isso parece difícil ou impossível»
No entanto, se a Ocidente nada de novo depois da tempestade sobre a anunciada transferência da embaixada norte-americana de Telavive para Jerusalém, o mesmo não se passa no Oriente Médio. Aqui, Israel confirma a conhecida argúcia para não desperdiçar uma única das múltiplas oportunidades concedidas pela relação de forças mundial; e continua a ultrapassar os limites de arbitrariedades e comportamentos marginais, mesmo quando isso parece difícil ou impossível.
Acresce que a oportunidade proporcionada por Trump foi de ouro. Pelo que, como seria de prever, a ofensiva constante contra os palestinianos no sentido de completar e tornar irreversível a ocupação de toda a Palestina redobrou de vigor – perante a impunidade de sempre – sob o comando de dirigentes israelitas com as costas aquecidas como nunca. Uma segurança que os soundbites emitidos contra Trump não perturbaram minimamente, sabendo o governo israelita, melhor do que ninguém, que tais emproadas reacções seriam de efeito passageiro e jamais perturbariam a concretização dos seus objectivos estratégicos anexionistas - enquanto o resto do mundo continua embalado pela ladainha da «solução de dois Estados».
Nas semanas seguintes ao anúncio feito por Trump, e na sequência de manifestações por ele suscitadas em toda a Palestina ocupada, a repressão militar israelita provocou pelo menos 20 mortos, quatro deles abatidos sumariamente por snipers, e cinco mil feridos. Mais de mil pessoas foram presas, situação implicando a sujeição a comportamentos que, a coberto da designação «justiça militar» (do ocupante), se caracterizam pela violação das mais elementares normas do direito, como por exemplo o recurso à tortura e ao isolamento, a inexistência de acusação e a indefinição do tempo de prisão preventiva – que pode ser prorrogada arbitrariamente por períodos de seis meses, sem julgamento, portanto sem sentença, até ao fim da vida do detido.
Entre as pessoas nesta situação está Ahed Timimi, uma adolescente com 16 anos de Nabi Saleh, localidade muito próxima de Ramallah, onde está sediado o governo da «Autonomia Palestiniana». Ahed Timimi foi presa juntamente com a mãe, Narriman, depois de ter esbofeteado um soldado israelita integrando o grupo de militares que invadiram o quintal e a residência da família. Os acontecimentos ocorreram meia hora depois de a jovem ficar a saber que o primo Mohamed, de 15 anos, fora atingido na cabeça pelo disparo de um soldado e estava entre a vida e a morte. Mãe e filha continuam detidas, sujeitas a tortura e interrogatórios consecutivos. Deputados da maioria governamental de Netanyahu, demonstrando uma notável consciência da separação dos poderes nos Estados democráticos, exigem que o tabefe dado por Ahed Timimi num soldado protegido por equipamento anti-motim seja punido com prisão perpétua.
«[A situação traduz] a progressão de um fascismo israelita, mais especificamente de um racismo próximo dos primeiros tempos do nazismo»
Zeev Sternhell, Haaretz, 19/01/2018
A situação nos territórios palestinianos, onde as perseguições «a ferro e fogo» criam um clima generalizado de terror, traduzem «a progressão de um fascismo israelita, mais especificamente de um racismo próximo dos primeiros tempos do nazismo». Esta é a opinião insuspeita do historiador israelita e sionista Zeev Sternhell, estudioso dos fascismos europeus e ele próprio um sobrevivente do tenebroso genocídio hitleriano.
Sternhell sublinha no jornal Haaretz que, à luz daquilo em que Israel se transformou, a Declaração de Independência tornou-se uma «obra de museu», uma «relíquia que explicará ao visitante o que o país poderia ter sido se não fosse desintegrado pela decadência moral provocada pela ocupação e o apartheid nos territórios».
Conhecendo o tipo de posições oficiais assumidas pelos representantes de Israel, não custa deduzir que também o historiador israelita e sionista Zeev Sternhell foi enviado para o heterogéneo índex do antissemitismo, onde jazem hoje os que manifestam opiniões discordantes das práticas do regime instalado no Estado hebraico.
Os principais dirigentes mundiais, porém, não correm o risco de figurar nessa lista negra, mesmo quando têm algum esporádico acesso de ira. Desta feita, a sua indignação perante o anúncio da transferência da Embaixada norte-americana para Jerusalém esgotou-se poucas horas depois de proferido. Pelo que já não abrangeu a situação agravada dos palestinianos decorrente da declaração de Trump. Macron não toma conhecimento das actividades dos snipers que fuzilam extrajudicialmente civil após civil dos territórios ocupados, incluindo Jerusalém Leste; à diligente senhora Merkel e aos eternos parceiros sociais-democratas não chegaram novas sobre os 20 mortos e cinco mil feridos vítimas da ressaca gerada pela iniciativa norte-americana; no meio da incomensurável verborreia oficial produzida pela União Europeia, suas instituições e Estados membros, não se detectam um parágrafo, uma linha ou mesmo um simples caracter que remetam para a inquietante situação da adolescente Ahed Tamimi, de sua mãe Narriman ou de qualquer um dos milhares de seres humanos que penam sob uma caricatura de justiça nas masmorras israelitas.
E a ONU? E o seu secretário-geral? Deles também nada reza nesta situação ainda mais crítica do que a crítica situação comum dos palestinianos. Foi lesto António Guterres quando, ainda entronizado de fresco, se apressou a repudiar o atropelamento de soldados israelitas por um camião nas ruas de Jerusalém, em Janeiro de 2017.
O episódio, vitimando militares que são agentes de uma guerra imposta por quem os comanda e deles se serve, e não civis que defendem as suas casas, os seus bens, uma pátria que lhes é negada, parece ter esgotado a indignação de Guterres tal como se desvaneceu, num ápice, a ira de Macron, Merkel e companhia perante o fogo ateado por Trump.
Depois da ininteligível declaração sobre a transferência da Embaixada norte-americana, no meio da qual se diluiu uma apenas ciciada passagem sobre as perturbações que tal decisão provoca ao «processo de paz», morto e enterrado, o secretário-geral remeteu-se a um silêncio conventual sobre o agravamento da tempestade que flagela o povo palestiniano.
«[...] são os palestinianos, indefesos e impotentes para projectar no mundo a sua voz carregada de razão, resumidos a uma desumana insignificância perante o insensível poder transnacional sionista, quem paga a factura cruel»
Nestas circunstâncias, o reconhecimento da unificação ilegal de Jerusalém pelos Estados Unidos da América representa mais um facto consumado no extenso rol de acontecimentos do mesmo tipo que vai forçando uma «solução» da chamada questão israelo-palestiniana contrária às decisões que foram sendo tomadas pela comunidade internacional, principalmente as grandes potências, a partir de 1947. Por isso, a configuração imposta por Israel no território da Palestina histórica, com a cumplicidade, de facto, das principais instâncias mundiais, é absolutamente ilegal à luz do direito internacional e esmaga os direitos do povo palestiniano, apesar de formalmente reconhecidos. Ou seja, ao longo de setenta anos, os senhores do mundo, tornados joguetes de uma conjugação onde avultam a submissão aos interesses financeiros e estratégicos dos lobbies sionistas sem fronteiras e uma intrigante má consciência perante a hecatombe que vitimou seis milhões de judeus, reconheceram os direitos do povo palestiniano ao mesmo tempo que os negaram – e continuam a negar. E são os palestinianos, indefesos e impotentes para projectar no mundo a sua voz carregada de razão, resumidos a uma desumana insignificância perante o insensível poder transnacional sionista, quem paga a factura cruel.
O secretário-geral das Nações Unidas, entretanto, confessa que vive com «um sonho»: ver concretizada a «solução de dois Estados» na Palestina. E poucas pessoas no mundo estão na posição privilegiada do Eng. António Guterres, que tem ao seu dispor os instrumentos necessários para transformar um sonho tão belo numa realidade compatível com a mais elementar justiça entre os homens. Lamentavelmente, porém, não os usa. Se tentasse, por exemplo, mobilizar os meios da ONU para estancar a colonização israelita dos territórios palestinianos talvez preservasse ainda alguma área onde coubesse o prometido Estado palestiniano viável. Talvez seja tarde, mas nunca o saberemos se não tentar, assim permitindo que a imaterialidade do seu sonho degenere no pesadelo real de mais de sete milhões de seres humanos, tantos quantos são os palestinianos – condenados arbitrariamente a ser os párias dos párias deste mundo onde burlar as leis se tornou doutrina institucional.
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