Enquanto o regime israelita continua a chacinar paulatinamente a população indefesa do campo de concentração em que transformou Gaza multiplicam-se os apelos ao «cessar-fogo» nesta suposta «guerra entre o Hamas e Israel», como afirma a comunicação social corporativa. É o habitual jogo de enganos que visa partilhar equitativamente responsabilidades numa situação de incomensurável desequilíbrio de forças e que pretende colocar no mesmo plano os criminosos e as vítimas. O que está a acontecer não é uma guerra, é um massacre de uma das partes; e o único cessar-fogo possível para a situação é o reconhecimento dos direitos do povo palestiniano estabelecidos nas leis internacionais. Tudo o resto significa o arrastamento da situação e o extermínio de um povo.
«A colonização conduz, ninguém o duvide, à criação de uma situação no terreno que inviabiliza totalmente a criação do Estado Palestiniano, porque deixa de haver território para isso; entretanto, os bem-intencionados deste mundo, como os chefes da União Europeia, forçados a dizer qualquer coisa quando as imagens de extermínio não podem ser escondidas, continuam a falar em “solução de dois Estados para a Palestina”»
O chefe do governo de Portugal, a exemplo de outros colegas europeus, diz que é necessária a paragem dos ataques de Israel. Belas palavras. E depois? «Para que possamos regressar a um ponto onde o caminho para a paz seja possível», assegura Costa. Palavras muito bem-intencionadas também, reproduzidas de um texto da agência Lusa onde se lê que «existe uma escalada de violência entre israelitas e palestinianos».
Qual «caminho para a paz»? O conduzido pelo «Quarteto» chefiado pelo aldrabão profissional Anthony Blair e de que fazem parte a Rússia – manietada pelo veto norte-americano no Conselho de Segurança e por muitas e evidentes cumplicidades com Israel – a complacente União Europeia, o seu aliado norte-americano, cúmplice objectivo do crime no mínimo através do Conselho de Segurança, e também a ONU, entidade que, a reboque de Washington, cultiva a guerra para que dela floresça a paz?
Ora este «caminho para a paz», quase sempre «arbitrado» pelos Estados Unidos, aliado da parte agressora, está barrado há muito por acção de Israel, que acusa o lado palestiniano de não ceder às suas exigências de rendição total. Enquanto continua a falar-se de «processo de paz» para que nada de pacífico aconteça, Israel tem recorrido a todos os métodos para inviabilizar uma solução compatível com o direito internacional, isto é, através da criação de um Estado Palestiniano viável, soberano e pleno.
Da colonização ao extermínio
O mecanismo mais utilizado e mais eficaz – porque pode ser aplicado sem operações militares que dêem muito nas vistas, sob o silêncio da comunicação social dominante – é o da colonização dos territórios palestinianos ocupados através de uma gradual limpeza étnica com expulsão das populações, destruição de casas, roubo de terrenos, edificação de muros e até prosaicos actos de banditismo como a destruição de colheitas agrícolas. Enfim, a institucionalização de um sistema de apartheid.
«Quando um dirigente político, seja ele qual for, fala em necessidade de “cessar-fogo” para regresso ao “caminho da paz” e não formula mecanismos e medidas que permitam à chamada comunidade internacional impor efectivamente a solução de dois Estados, está a ser cúmplice do comportamento criminoso do Estado de Israel. E a participar, no mínimo por omissão, num processo genocida»
A colonização conduz, ninguém o duvide, à criação de uma situação no terreno que inviabiliza totalmente a criação do Estado Palestiniano, porque deixa de haver território para isso; entretanto, os bem-intencionados deste mundo, como os chefes da União Europeia, forçados a dizer qualquer coisa quando as imagens de extermínio não podem ser escondidas, continuam a falar em «solução de dois Estados para a Palestina» sabendo perfeitamente – como não pode deixar de ser – que está a ser percorrido não «um caminho para a paz» mas uma via para liquidar o objectivo inscrito no próprio «processo de paz». A guerra que existe é verdadeiramente esta: a do regime sionista contra o povo palestiniano pela liquidação total dos seus direitos, se necessário através do extermínio físico.
Quando um dirigente político, seja ele qual for, fala em necessidade de «cessar-fogo» para regresso ao «caminho da paz» e não formula mecanismos e medidas que permitam à chamada comunidade internacional impor efectivamente a solução de dois Estados, está a ser cúmplice do comportamento criminoso do Estado de Israel. E a participar, no mínimo por omissão, num processo genocida. Num caso destes até o silêncio seria mais honesto.
Contaminação xenófoba
Acompanhando os ecos da comunicação corporativa sobre «a guerra entre o Hamas e Israel» ou a «escalada de violência entre israelitas e palestinianos» percebe-se que o conceito de «cessar-fogo» implícito é o da paragem dos bombardeamentos contra Gaza e também do lançamento de foguetes a partir da faixa cercada. Foguetes esses que são, na verdade, os únicos instrumentos através dos quais – perante a imobilidade internacional – sectores palestinianos fazem sentir a Israel que, apesar de tudo, não está completamente impune. Fisgas contra tanques ou foguetes contra tecnologia de guerra de última geração: estamos perante afirmações possíveis de existência e de resistência; nada que se pareça com um confronto entre dois exércitos. Sendo certo que cada vida perdida é uma vítima inútil de uma situação que as forças dominantes teimam em não resolver, a não ser através da aniquilação da outra parte, o cenário mediaticamente instituído de um falso equilíbrio permite-nos perceber até que ponto a comunicação social corporativa se deixou contaminar pelo conceito xenófobo cultivado pelo sionismo quanto à diferença de valor entre as vidas de cidadãos israelitas e árabes.
«Se, por exemplo, os dirigentes da União Europeia – ainda que incomodando a administração Biden – experimentassem suspender as relações económicas e militares com Israel até que este país abrisse comprovadamente as portas à solução de dois Estados, talvez o cenário se alterasse. Afinal, suspender relações económicas e impor sanções a países terceiros já não constitui qualquer novidade para a União Europeia, predisposta assim a sofrer as respectivas consequências»
A guerra de Israel contra os palestinianos iniciou-se muito antes desta nova fase da barbárie contra Gaza, há mais de setenta anos, e irá prosseguir se o «cessar-fogo» determinar apenas que se calem agora as armas e não for além disso, impondo a Israel medidas completas para que se cumpra de uma forma viável e com um conteúdo plenamente soberano a solução de dois Estados na Palestina. Caso contrário, o fim da actual ofensiva contra Gaza significará a continuação da colonização, do cerco contra a pequena e sobrelotada faixa, da limpeza étnica, das expulsões em Sheik Jarrah e, uma após outra, em todas as comunidades palestinianas de Jerusalém ou da Cisjordânia. Até ao próximo ataque contra Gaza se os palestinianos ousarem exercer activamente o seu direito à existência e à resistência.
Por que não carregar onde dói?
Um exemplo de como Israel é completamente imune às palavras inconsequentes dos seus amigos e aliados sempre que as imagens da chacina tornam impossível o silêncio é a demolição premeditada do edifício da agência Associated Press (AP) em Gaza.
A Israel não será difícil responder a Biden, forçado a perguntar sobre os motivos de tal atitude: o edifício daria acesso aos «túneis do Hamas» ou serviria até de «escudo humano» para o grupo fundamentalista islâmico palestiniano. Uma organização que ganhou vida – é oportuno recordá-lo – com apoio sionista quando se tornou importante dividir o movimento do primeiro Intifada, em finais dos anos oitenta, iniciado precisamente em Gaza.
As forças armadas sionistas que participam em exercícios atlantistas são as mesmas que fazem jorrar o sangue de civis indefesos na Palestina, impedidos de escapar às suas bombas. Israel está a cometer mais um acto de apogeu da chacina a que tem vindo a submeter impunemente a população da Faixa de Gaza – e da Palestina em geral – durante as últimas décadas. Os alvos não são «os túneis do Hamas», como informa o regime sionista, mas dois milhões de pessoas que vivem enclausuradas num imenso campo de concentração do qual não podem escapar. Não se trata de um «confronto»: é uma barbárie. Algumas notas sobre o que está a passar-se. A Faixa de Gaza e a respectiva população são um alvo que Israel tem sempre à mão quando necessita de recorrer a manobras de diversão por causa da degradação política interna, como acontece no momento actual, em que se misturam a prolongada indefinição governativa, a corrupção a alto nível do regime e a polémica gestão da pandemia – por sinal, insolitamente elogiada no plano internacional. «A Faixa de Gaza e a respectiva população são um alvo que Israel tem sempre à mão quando necessita de recorrer a manobras de diversão por causa da degradação política interna, como acontece no momento actual» Os dirigentes sionistas não duvidam, nem por um instante, de que podem utilizar o instrumento da guerra contra Gaza porque sabem que a chamada comunidade internacional o permite. As instâncias internacionais, com a ONU à cabeça, e as grandes potências, com destaque para os Estados Unidos e a União Europeia, permitem tudo a Israel sem assumir uma única medida para conter a barbárie. Há mais de 70 anos que a comunidade internacional se vem dotando de instrumentos legais para fazer respeitar os direitos inalienáveis do povo palestiniano e há mais de 70 anos que eles são interpretados como letra morta. Este comportamento é um incentivo à discricionariedade de Israel; e Israel aproveita-o consoante as suas conveniências sabendo que nada de mal lhe acontecerá e nenhuma reacção irá além do apelo à «moderação» e a um «cessar-cessar entre as partes». Isto é, entre uma «parte» que pode tudo e uma «parte» que sofre tudo. Os foguetes do Hamas são irrelevantes quando comparados com o aparelho de guerra usado pelo regime sionista. A actuação da comunidade internacional na questão israelo-palestiniana é o exemplo mais flagrante da sua permanente utilização do sistema de pesos e medidas variáveis. Isolada pela comunidade internacional em geral, a Palestina conta cada vez menos com a solidariedade do chamado mundo árabe. Sob a égide da administração Trump nos Estados Unidos, países árabes como os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein juntaram-se recentemente ao Egipto na normalização das relações com Israel, o que significa abandonar a defesa dos direitos dos palestinianos. Acresce que existem, de facto, relações diplomáticas entre o Estado sionista e a Arábia Saudita, encimadas pela amizade e afinidades entre o primeiro-ministro Netanyahu e o herdeiro do trono wahabita, Mohammed Bin Salman. Uma aliança sobre os escombros da Palestina. «Há mais de 70 anos que a comunidade internacional se vem dotando de instrumentos legais para fazer respeitar os direitos inalienáveis do povo palestiniano e há mais de 70 anos que eles são interpretados como letra morta. Este comportamento é um incentivo à discricionariedade de Israel» Na prática, a solidariedade árabe nunca desempenhou um papel que permitisse a criação de um Estado palestiniano, como determinam as normas e a doutrina estabelecidas pela comunidade internacional. O reconhecimento de Israel por cada vez mais países árabes, porém, reforça a ideia de que o problema palestiniano poderá ter outras «soluções» que não sejam a criação de um Estado palestiniano independente, viável e plenamente soberano. Por outro lado, as relações entre países árabes e Israel transformam cada vez mais o Estado sionista numa entidade plenamente integrada no Médio Oriente, dando assim forma ao arranjo pretendido pelos Estados Unidos de uma região com duas potências dominantes – Israel e Arábia Saudita –, ambas viradas contra o Irão. O novo pico de guerra de Israel contra Gaza não pode desligar-se dos permanentes esforços de Israel para tentar provocar uma guerra directa contra o Irão – à qual as administrações norte-americanas ainda têm resistido. A ofensiva supostamente «contra o Hamas» – grupo que Israel liga a Teerão apesar de ser sunita e não xiita – acontece no preciso momento em que a administração Biden ainda não definiu se regressa ou não ao acordo nuclear 5+1 com o Irão. A mensagem israelita é directa: apoiando grupos activos no Médio Oriente, como o Hezbollah no Líbano e na Síria e o Hamas na Palestina, o Irão terá de ser desencorajado de o fazer. E os acordos com Teerão têm de ser invalidados. Por muito que possam vir a proclamar verbalmente o contrário, os Estados Unidos e a União Europeia estão por detrás de mais esta chacina israelita em Gaza. Se em relação a Washington não existe qualquer dúvida, tanto mais que o aparelho do Partido Democrata no poder é o que está mais sintonizado com os interesses dominantes do sionismo, poderão levantar-se reticências em relação ao papel da União Europeia. «a prática de Bruxelas e dos 27 é objectivamente favorável às atitudes assumidas por Israel, sejam elas quais forem: nada fazem para que seja concretizada a solução de dois Estados na Palestina, mantêm relações económicas e políticas preferenciais com Israel e não assumem nas instâncias internacionais qualquer posição contra as atitudes militares extremas do sionismo» O que não tem qualquer razão de ser. Apesar de algumas declarações de distanciamento, como foi o caso por ocasião da transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém, a prática de Bruxelas e dos 27 é objectivamente favorável às atitudes assumidas por Israel, sejam elas quais forem: nada fazem para que seja concretizada a solução de dois Estados na Palestina, mantêm relações económicas e políticas preferenciais com Israel e não assumem nas instâncias internacionais qualquer posição contra as atitudes militares extremas do sionismo. Antes pelo contrário: Israel é um parceiro activo da NATO – que rege a União Europeia do ponto de vista militar – e está mesmo envolvido nos exercícios em curso na Grécia e no Mar Egeu no quadro dos jogos de guerra «Defender Europe». Isto é, as forças armadas sionistas que participam em exercícios atlantistas são as mesmas que fazem jorrar o sangue de civis indefesos na Palestina, impedidos de escapar às suas bombas. Uma aliança que dizima vidas e direitos humanos. A mensagem de Israel com esta nova operação de barbárie é directa: nada fará parar o sionismo no seu objectivo de limpar e submeter etnicamente a Palestina e de impedir qualquer tentativa, por débil que seja, de implementar a solução de dois Estados. O instrumento para concretizar esse objectivo é a colonização ininterrupta dos territórios da Cisjordânia – a par do cerco férreo a Gaza – de maneira a estender a ocupação, inviabilizar as possibilidades territoriais de instaurar um Estado e quebrar a resistência nacional palestiniana. «a operação militar sionista assumiu as já conhecidas proporções de punição colectiva. Contando, para isso, com a habitual impunidade que lhe é assegurada pelas instâncias internacionais. De facto, Israel usa o terrorismo para impor a lei do mais forte sabendo que encontrará pouca oposição e condenação nenhuma» Nas últimas semanas o regime sionista expulsou mais famílias e arrasou as suas habitações no bairro de Sheik Jarrah, em Jerusalém Leste, no quadro da «limpeza» de todos os palestinianos da cidade. Acontece que a ofensiva encontrou forte resistência da população atingida, sinal de que, apesar de isolados internacionalmente, os palestinianos não estão dispostos a abdicar dos seus direitos. Uma vez que Gaza respondeu à agressão e da Faixa de Gaza foram disparados foguetes contra território israelita, a operação militar sionista assumiu as já conhecidas proporções de punição colectiva. Contando, para isso, com a habitual impunidade que lhe é assegurada pelas instâncias internacionais. De facto, Israel usa o terrorismo para impor a lei do mais forte sabendo que encontrará pouca oposição e condenação nenhuma. A nova fase da chacina contra Gaza e da limpeza étnica da Cisjordânia é, afinal, mais um passo no sentido de um desfecho que inviabilize de vez a solução de dois Estados na Palestina. Ao mesmo tempo que este princípio vai sendo invocado como um mantra cada vez mais vazio de significado pelos que insistem em dizer-se defensores das leis internacionais e dos direitos humanos. Enquanto isto, continuam a morrer inocentes indefesos e a Nakba, o holocausto palestiniano, prossegue, dia após dia, sob os olhos e a passividade do mundo. Até ao último dos palestinianos. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Gaza, notas sobre uma chacina
1) O principal responsável pelo massacre não é Israel: é a chamada comunidade internacional
2) O mundo árabe isola cada vez mais a Palestina
3. Um massacre com o Irão na mira
4. O papel dos Estados Unidos, União Europeia e NATO
5. A causa próxima: colonização e limpeza étnica
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Israel poderá ainda dizer que não fez nada que a NATO não tenha executado por exemplo em Belgrado, em 1999, quando bombardeou e destruiu o edifício da televisão jugoslava.
É certo que a AP tem prestado permanentes e bons serviços ao regime sionista, tal como as outras principais agências internacionais de informação. E não será este aparentemente inusitado bombardeamento que irá interromper a sua fidelidade para com Israel. O governo israelita está seguro disso – é a ordem natural das coisas.
Para interrompê-la de maneira favorável ao reconhecimento dos direitos dos palestinianos seria necessário muito mais do que as rotineiras palavras de inquietação e um «cessar-fogo» transitório.
Impossível?
Nem tanto. Se, por exemplo, os dirigentes da União Europeia – ainda que incomodando a administração Biden – experimentassem suspender as relações económicas e militares com Israel até que este país abrisse comprovadamente as portas à solução de dois Estados, talvez o cenário se alterasse. Afinal, suspender relações económicas e impor sanções a países terceiros já não constitui qualquer novidade para a União Europeia, predisposta assim a sofrer as respectivas consequências.
De um ponto de vista objectivo, não haverá país tão merecedor de tais medidas como Israel, pelo menos tendo em conta palavras proferidas de quando em vez por alguns dirigentes europeus.
Fazer sentir aos chefes sionistas que a barbárie tem um preço a pagar seria a maneira de lhes proporcionar um inesperado encontro com uma nova realidade e as consequências dos seus comportamentos cruéis. E seria, sobretudo, um caminho para o fim de uma tragédia humana, não apenas em Gaza mas também na Cisjordânia e até em Israel, onde os dirigentes se debatem com uma interminável crise governativa e mesmo – eles o dizem – com os riscos de «uma guerra civil».
José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
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