O assalto da besta federalista

Juncker recebeu os sopros, os recados, as instruções, as ordens que deram forma ao discurso que foi ler perante o Parlamento Europeu. Encomendaram-lhe o primeiro acto de um golpe em marcha.

CréditosStephanie Lecocq/EPA / Agência Lusa

A resposta à derrocada das instituições ditas europeias começa a ganhar contornos de uma fuga para a frente em forma de golpe palaciano, para impor soluções federalistas que não estão contempladas em qualquer norma regimental da União Europeia.

O discurso sobre o «Estado da União» proferido por Jean-Claude Juncker perante o Parlamento Europeu foi a detonação desse golpe. Nada sobre o «estado» da União – que os dirigentes de Bruxelas resumem a lendas, efabulações e intenções transpostas dos reinos da virtualidade propagandística; tudo sobre a União que terá de existir até 2025, segundo os interesses transnacionais para os quais foi criada.

Ora não é preciso ser um renomado politólogo com cátedra residencial num qualquer instrumento de manipulação ideológica para se estar seguro de que Juncker não se sentou, um dia, num relaxante recanto das suas mansões, para escrever uma dissertação sobre o que vai ser a União Europeia a partir de agora.

Jean-Claude Juncker é um servidor, um amanuense de luxo colocado no lugar de presidente da Comissão Europeu, pelo que a sua criatividade tem limites, não pode dar passos maiores do que as pernas e sugerir medidas de fundo que pareçam brotar como ideias pessoais luminosas.

Para chegar a este seu «estado» da União, com um conteúdo centralizador que, se aplicado, liquidará de vez os efeitos da expressão democrática dos povos amarrados à União Europeia, Juncker falou com muita gente dentro do sistema ditatorial económico-financeiro que gere, de facto, o espaço a que chamam abusivamente «Europa».

Melhor dizendo, Juncker recebeu os sopros, os recados, as instruções, as ordens que deram forma ao discurso que foi ler perante o Parlamento Europeu. Encomendaram-lhe o primeiro acto de um golpe em marcha.

Apesar dos invólucros semânticos, o discurso tem uma leitura directa e óbvia: estamos perante um assalto em forma e em força da besta federalista que nasceu com os «sonhos» míticos dos «pais fundadores», embrulhados em romântico papel cor-de-rosa. Monstro esse que se manteve actuante durante o último meio século, preferencialmente na sombra, embora ganhando espaço em cada incursão associada a novos passos, tratados, estruturas, designações e objectivos.

O discurso de Juncker não representa uma declarada ofensiva institucional federalista; é ainda uma operação embuçada, escondida em propostas apresentadas como soluções para os males de que sofre a União Europeia; porém, são sugestões que, se aplicadas, afastarão cada vez mais os cidadãos das estruturas centralizadas que decidirão sobre as suas vidas.

São propostas realmente federalistas apresentadas de uma maneira avulsa, não num contexto federalista – o qual, apesar disso, vai ganhando forma gradualmente, por caminhos ínvios, à revelia da vontade dos cidadãos, uma vez que continuarão a não ser consultados sobre quaisquer mudanças estruturais.

Toda a manobra golpista que Juncker pôs em andamento surge numa embalagem inocente, assente em supostas garantias estabilizadoras e de reforço da União das quais o aparelho global de propaganda está sempre faminto, para depois as encafuar nas cabeças da maioria dos cidadãos através de métodos manipuladores e censórios que tão bem vem apurando.

Não é difícil supor que, a partir da prelecção encomendada a Juncker, os assuntos europeus mais mediatizados, porventura em exclusividade, passem a ser as especulações sobre os nomes e as funções dos novos cargos sugeridos pelo ainda presidente da Comissão Europeia, transformando em realidade consumada, para a opinião pública, o que agora apenas foi proposto num primeiro discurso.

«Avança o federalismo, escoam-se as soberanias nacionais. É verdadeiramente isto que está em causa quando se debate a saída da União Europeia.»

Todas as manobras centralizadoras são apresentadas com uma lógica intransponível. A criação de um ministro europeu da Economia e das Finanças é como o toque de Midas que faltava para solucionar de uma penada a maldita crise, decidindo directamente, sem delongas nem estorvos, de preferência suprimindo incómodas exigências de unanimidades, assuntos que algumas vezes tropeçam nas resistências de governos e, sobretudo, de povos. Quem o explica desta maneira tão clara é o comissário Moedas, a mão negra do anterior e defunto governo português ora manipulando cordelinhos dentro da equipa de Juncker.

E se já existe uma espécie de ministra europeia dos Negócios Estrangeiros – que age igualmente como ministra da Defesa ao serviço da NATO – parece ainda mais lógico que se crie um ministro da Economia e das Finanças inserido na estrutura ditatorial encimada pelo não eleito Banco Central Europeu e ao serviço dos impérios apátridas do dinheiro e da especulação. Nada mais natural, entretanto, que o super ministro da Economia e Finanças seja também o chefe do Eurogrupo, ocupando-se do bem-estar da moeda única.

Com um super ministro destes reforça-se ainda a missão do tratado orçamental; isto é, os governos e os parlamentos dos países nunca mais precisarão de perder tempo e energia negocial com os orçamentos dos seus Estados. E, noutro plano, também não necessitarão de se preocupar com o andamento da economia, com a definição e aplicação de planos e projectos económicos; o ministro federal, com as suas visão e eficácia globais, ditará o que houver a ditar, repartindo as tarefas produtivas que houver a repartir, dentro das necessidades, interesses e exigências dos supra citados impérios.

Correndo o risco de perder o emprego, mas obedecendo a quem se deve obedecer na União Europeia que existe, Jean-Claude Juncker sugeriu a fusão dos cargos de presidente da Comissão e do Conselho Europeu. Se centralizar o poder de decisão é o mote, então o caminho óbvio é criar um cargo de primeiro- ministro europeu – embora com outra designação qualquer – capaz de aliviar os chefes de governo eleitos nos Estados membros de muitas tarefas que lhes provocam, ou não, dores de cabeça.

Façamos então um ponto da situação aplicando o plano de Juncker ao quadro existente: os governos nacionais deixarão de se ocupar de política externa, assuntos militares e de Defesa (nas mãos da NATO), da economia, das finanças, orçamento, impostos e moeda; e serão guiados por um super primeiro-ministro designado para o topo da pirâmide executiva supranacional.

Sem qualquer desprimor, os primeiros-ministros dos Estados membros da União Europeia passarão a ser presidentes de autarquias regionais que terão a seu cargo o que resta de Estados transformados em meras parcerias público-privadas, com os encargos suportados pelos cidadãos. É a essência do pesadelo federalista transposta para a realidade.

Na comunicação feita em Estrasburgo o presidente da Comissão Europeia ainda formulou mais um pressuposto inerente a um ataque em força da besta federalista: que até 2020 todos os Estados-membros tenham o Euro como moeda, acolhendo-se assim sob a asa protectora da águia imperial alemã através do todo-poderoso Banco Central Europeu.

Talvez seja este o item mais delicado do primeiro andamento do golpe protagonizado por Juncker. Nada que não se resolva, porém, se nos recordarmos da riquíssima panóplia de instrumentos para quebrar resistências nacionais que os chefes europeus têm aprimorado, como por exemplo a chantagem, as sanções e castigos, a asfixia financeira, as ameaças de isolamento, os juros de mercado, a descredibilização através da xenofobia, as agências de notação e afins.

Avança o federalismo, escoam-se as soberanias nacionais. É verdadeiramente isto que está em causa quando se debate a saída da União Europeia. Trata-se, como está em voga dizer-se, da questão fracturante essencial: sermos ou não cidadãos livres de países soberanos, com tudo o que isso implica. Se as escolhas democráticas que fazemos através do voto já hoje pouco contam para decidir seja o que for, imaginem o seu valor se as sugestões encomendadas a Juncker forem levadas até às últimas consequências.

É claro que estamos perante um golpe supranacional. Apesar disso, pode ser combatido à escala nacional.

Para o conseguir há que fazer valer a soberania que ainda nos resta.

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