O Governo e o direito de contratação colectiva

Decorrido um pouco mais de um ano de Governo PS, no quadro de uma fase nova da vida política nacional, faz sentido olhar para a contratação colectiva, uma matéria-chave numa das áreas mais sensíveis – o trabalho.

CréditosTiago Petinga / Agência Lusa

Tendo como pano de fundo as mudanças ocorridas desde o Código de Trabalho de 2003, com relevo para as políticas seguidas no período 2010-2015, haverá que perguntar se há, ou se perspectiva, uma real alteração de política, um «virar de página».

Com vista a essa apreciação, parte-se de elementos quantitativos, de balanço, da contratação colectiva no sector privado e de desenvolvimentos verificados em relação ao direito de contratação colectiva. Não se abrange pois a Administração Pública.

Os indicadores selecionados como mais relevantes da actividade da contratação colectiva em 2016 estão indicados no quadro seguinte: 

 201120122013201420152016
N.º IRCT negociais publicados1829397161145175
N.º de convenções1708594152138146
Aumento salarial – tabelas (%)1,51,41,01,00,81,5
Vigência das tabelas (meses)15,919,930,737,141,538,1
N.º trabalhadores (mil)1202,9306,2186,6246,6568,9749,3
Inflação (%)3,72,80,3-0,30,40,6
Trabalh. por conta outrem (mil)3719,13 542,63 457,53 611,03 710,63 787,2

Fontes: DGERT e INE (Inquérito ao Emprego) IRCT negociais: abrange convenções colectivas, acordos de adesão e decisões de arbitragem voluntária; Total de IRCT: IRCT negociais + decisões de arbitragem voluntária, portarias de extensão e portarias de condições de trabalho. N.º de convenções: CCT, ACT e AE (contratos colectivos de trabalho, acordos colectivos de trabalho e acordos de empresa, respectivamente). N.º trabalhadores: inclui o total de IRCT.

O que se pode daqui concluir? Uma questão fundamental respeita a saber quantos trabalhadores viram renovadas as suas convenções colectivas (ou foram abrangidos por novas) face ao total de assalariados. São cerca de 750 mil em 2016, uma melhoria face a 2015 e um salto face a 2013.

Mas este valor compara com perto de 3123 mil assalariados (total sem a Administração Pública), o que significa menos de um em cada quatro trabalhadores. Esta cobertura é muito mais baixa que a de 2011 (40%) e, sem recuar muito, mais baixa ainda que a de 2003 (valor estimado de 56%).

Houve 146 convenções publicadas, o que, se é um pouco melhor que em 2015, está distante de 2011 (175) e muito mais distante ainda de 2003, quando foi publicado o Código de Trabalho (um valor próximo de 350).

O período médio de vigências das tabelas salariais mantém-se muito alto (38,1 meses), sendo superior a 30 meses desde 2013. Este indicador é demonstrativo de que as tabelas salariais não eram revistas, na generalidade dos casos, há longos períodos, o que evidencia o bloqueamento na contratação colectiva.

Em suma, os progressos em 2016 foram pouco significativos. Houve mesmo a publicação, em Janeiro de 2016, de mais dois avisos de cessação de vigência – CCT Indústria de carnes e AE Petrogal.

Estamos aqui perante retrocessos embora também tenha ocorrido: o indeferimento pelo Governo do pedido de publicação de aviso de cessação de vigência do CCT para a indústria têxtil (com a Associação de Têxteis de Portugal), efectuado a 9 de Março; o recuo quanto à denúncia efectuada em Dezembro de 2015 de convenções de empresas públicas de transportes (Carris, Metro, Transtejo e Soflusa); o congelamento na publicação de avisos de cessação de vigência.

Estes desenvolvimentos remetem para questões centrais do direito de contratação colectiva, como a possibilidade de pôr fim à vigência de uma convenção colectiva (o regime de caducidade) e de a convenção poder estabelecer condições menos favoráveis do que as fixadas na legislação.

O que diz o Governo? Três coisas, basicamente: (1) reconhece a crise responsabilizando a troica; (2) recusa pôr termo ao regime de caducidade; (3) remete eventuais alterações ao Código de Trabalho nesta matéria para um acordo de concertação social. Têm havido ainda alusões a pressões, admitindo-se provirem das autoridades europeias e de organizações económicas internacionais, como a OCDE, para não se mudar o regime em vigor.

«A questão essencial da caducidade é, em nossa perspectiva, a de que se aniquilam elementos estruturantes do direito de contratação colectiva.»

Que a troica tenha responsabilidades é só uma parte da história. O regime de caducidade e de enfraquecimento do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador (o objectivo essencial da convenção é o de melhorar, não piorar, a legislação geral) remonta ao Código de Trabalho de 2003. Este regime não foi revertido antes facilitado em 2009, sendo Ministro Vieira da Silva, no sentido de mais convenções poderem caducar.    

A questão essencial da caducidade é, em nossa perspectiva, a de que se aniquilam elementos estruturantes do direito de contratação colectiva. Hoje o patronato tem a liberdade de fazer caducar uma convenção se o entender. Basta não negociar de facto (quem negoceia, sabe como fazê-lo) e usar os recursos que a lei lhe permite.

Dir-se-á que o Governo pode indeferir o pedido de cessação de vigência e que o tem feito. Sem dúvida, mas também há os processos diferidos (43 entre 2005 e 2016) abrangendo convenções com elevado número de trabalhadores em diversos sectores de actividade, com destaque para a indústria.1

A questão de fundo não é, porém, quantitativa: terminar uma só convenção por vontade unilateral do patronato constitui uma regressão de um direito fundamental que a Constituição reconhece e, sublinhe-se, atribui aos sindicatos (artigo 56.º).

Mas não só. A relação de forças na negociação colectiva muda a favor do patronato na medida em que o não-acordo na renovação de uma convenção pode conduzir à caducidade desta.

Talvez por isso, Vieira da Silva tenha dito na Assembleia da República em 2003, na discussão da legislação laboral, que se deslocava a favor das entidades patronais o frágil equilíbrio das relações de trabalho e que se obrigava os sindicatos a negociar em situação de necessidade.

Mais tarde, como Ministro, não só manteve o essencial das disposições nucleares como introduziu uma nova forma de caducidade na revisão do Código de Trabalho de 2009 (relativa às convenções que continham uma cláusula segundo a qual a convenção se mantinha em vigor até ser substituída por outra). Nesse mesmo ano, o número de deferimentos de processos de caducidade disparou (2 em 2008 e 15 em 2009).

O Ministro defende agora que o princípio da caducidade evita a «cristalização» das convenções (intervenção no Parlamento, em 10 de Fevereiro). Ora a «cristalização» só pode referir-se aos direitos ou disposições contratuais na parte em que são mais favoráveis que a legislação de trabalho. É a isso que se aponta o dedo. Estranha forma de pensar quando o direito de contratação colectiva se estabeleceu para fixar condições mais favoráveis que as da lei.

Por fim, remeter a solução para um acordo de concertação social é admitir que o patronato, tendo uma arma essencial a seu favor, desequilibradora da relação de forças, dela abdica.

O Ministro diz que não vê a caducidade como uma arma para destruir a contratação colectiva. Mas é isto que tem sido – e se não quer que o continue a ser, então que se restabeleça o direito de contratação colectiva.

  • 1. Usam-se como fontes de informação: CRL (Centro de Relações Laborais), Relatório Anual sobre a Evolução da Negociação Colectiva em 2015, Julho de 2016; e Boletins de Trabalho e de Emprego de 2016

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