No decurso da história do cinema, os elementos cinematográficos de pequena escala foram habitualmente desprestigiados e relegados para um território alternativo e/ou marginal. Na esfera dominante incluíram-se, preferencialmente, elementos de grande dimensão, tais como complexos e pesados equipamentos, formatos de elevada resolução, vastas equipas, avultados orçamentos, a convencional duração do filme estabilizada na longa-metragem, a projeção em ecrã gigante ou a audiência coletiva. Estes definiram os principais modos de produção, difusão e exibição do cinema e contribuíram para o delineamento do seu dispositivo e da sua gramática.
A digitalização do cinema veio, contudo, criar espaço para a coexistência destas duas formulações ou até, em certos casos, para uma inversão da sua relação. Várias das manifestações cinematográficas que daí emergiram, particularmente no âmbito dos processos de produção, passaram a privilegiar os elementos de pequena ou muito pequena escala.
Este fenómeno é evidente no que diz respeito aos equipamentos quer de registo, quer de exibição: exemplos desta redução de escala são as possibilidades contemporâneas de filmar com a quase impercetível câmara de um smartphone e de ver essas imagens no pequeníssimo ecrã do mesmo aparelho – alguns equipamentos recentemente anunciados, como o Glass da Google ou as lentes de contacto com câmara incorporada da Sony, preveem a naturalização desses procedimentos, tornando-os praticamente invisíveis.
Mas a miniaturização não se limita aos materiais. Esta estende-se a elementos tão diversos como a resolução da imagem, a duração dos objetos audiovisuais, do plano e tempo de atenção do espectador, a elaboração da mise-en-scène, a estrutura narrativa, o orçamento, o grau de complexidade dos modelos organizacionais de produção e difusão cinematográfica e o esquema de receção. Paralelamente ao cinema convencional origina-se, assim, o microcinema.
A expressão aqui adotada para nomear o cinema de pequena escala tem sido utilizada para fazer alusão a um conjunto amplo de fenómenos. Contemporaneamente, esta é utilizada, de modo frequente, para referir-se a salas de exibição alternativas e de baixo orçamento e, simultaneamente, a plataformas de aquisição e difusão de cinema independente, como a Microcinema International; a eventos associados a curtíssimas-metragens, como o 180 Microcinema Festival; a publicações destinadas a orientar financeiramente cineastas sem orçamento, como a Microfilmmaker Magazine; entre outros exemplos.
A autoria do termo microcinema tem sido frequentemente atribuída ao casal de cineastas experimentais estadunidenses, David Sherman e Rebecca Barten. Este ter-lhes-á surgido em 1994, de acordo com o que os próprios relatam no seu website, ano em que edificaram, na cave da sua casa de São Francisco, uma sala de cinema improvisada de trinta lugares.
O propósito desta iniciativa, a que chamaram TOTAL MOBILE HOME microCINEMA (TMH/mC), foi o de criar um espaço intimista, destinado a albergar a exibição de trabalhos cinematográficos independentes, de baixo orçamento, filmados e editados com formatos amadores ou semiprofissionais, e sem espaço nos circuitos de produção e distribuição convencionais.
A ideia de recuperar a existência de espaços de exibição de filmes alternativos, independentes e alheados do contexto comercial de circulação, originada pelas dificuldades que Sherman e Barten sentiram com a difusão do seu trabalho, e a visibilidade obtida pelo projeto, originou a criação de uma rede de novas salas e de várias outras iniciativas dedicadas à mesma tarefa.
A expressão microcinema, originada no título da primeira atividade, foi, então, recorrentemente utilizada para designar este novo tipo de apresentação de filmes que, por vezes, assumiu também a designação de «movimento microcinema». No entanto, este não foi o único significado que lhe foi atribuído.
No mesmo ano da criação do TMH/mC, Lev Manovich integrou a expressão microcinema na designação da primeira versão de um projeto artístico da sua autoria.
O trabalho, que veio a ser mais tarde nomeado Little Movies: Prolegomena for Digital Cinema (1994-1997), foi inicialmente chamado Little Movies Vol.1: Microcinema – Cinema for the Early Net.
De acordo com Manovich, a expressão foi criada por si para designar o projeto, sem conhecimento da sua utilização prévia em qualquer outro contexto, e abandonada após a compreensão da sua associação recorrente ao trabalho de Sherman e Barten. Neste caso, a sua matriz estava relacionada com novas possibilidades de produção cinematográfica associadas à digitalização e, em particular, ao contexto da internet.
(continua)
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