Produtividade médica – atrasos, ilusões e manipulação de números

«A economia baseia-se nas relações humanas, e não o contrário» – Tyler Cowen

Médicos defendem a diminuição de utentes por médico de família
Créditos / CelosOnline

Em finais dos anos 90, um jovem ortopedista que tinha trabalhado comigo antes de ter sido colocado num hospital distrital com novas instalações acabadas de inaugurar, telefonou-me com uma pergunta interessante: 
A Administração quer que eu veja quatro doentes por hora. Acha aceitável?

Apanhado de surpresa por este primeiro choque com a administrativização e os «novos paradigmas» da medicina que se dizia «centrada no doente», a minha primeira resposta, em forma de pergunta, deve tê-lo deixado ainda mais surpreendido:
Os doentes despem-se dentro ou fora do gabinete médico?

Contudo a minha pergunta tinha tudo a ver com a questão e era até bastante lógica.

Talvez a minha sensibilização para a importância da produtividade médica tenha surgido em meados dos anos 70 do século passado, quando estagiei pela primeira vez em Londres, muitos anos antes, pois, da «praga» de números e estatísticas que intoxicaram o SNS, num sempre anunciado esforço para o «melhorar», tornando-o mais «produtivo».

Esse meu primeiro contacto com a organização de dois hospitais ortopédicos do então prestigiado National Health Service (NHS) levantou logo uma primeira interrogação: por que razão os ortopedistas ingleses, sem serem mais rápidos do que eu e do que os meus colegas de Serviço em Coimbra, faziam mais consultas e mais cirurgias e ainda tinham tempo para a conversa e para tomarem chá e bolachas nos intervalos?

Uma das mais imediatas impressões, foi ver como, mesmo num velho edifício como o do Royal National Orthopaedic Hospital, os ingleses tinham instalado pequenas cabinas pré-fabricadas onde os doentes se despiam antes de entrarem para a consulta, envergando depois apenas um roupão e uns chinelos, tornando o exame físico extremamente rápido, digno e fácil.

Assim se evitavam as demoradas manobras efectuadas durante a consulta para «arrancar» camisa, calças peúgas e sapatos a embaraçados doentes com artroses ou outras limitações da mobilidade articular, em que todos (médico, enfermeiros, familiares) atabalhoadamente se empenhavam, pressionados pelo tempo, numa cena penosa que se voltava a repetir para o vestir, gastando só nisso mais do que os 15 minutos que a administração no novo hospital atribuíra ao meu jovem colega para observar cada doente.

Talvez o número tenha alguma aura especial, porque os mesmos 15 minutos por consulta foram muito discutidos quando da «proposta» do Tribunal de Contas, em 2014, que assim achou poder resolver «contabilisticamente» a falta de médicos de família, embora o seu último relatório, de 2016, a pp. 13 e 44, afirme explicitamente: «De notar que o Tribunal não recomendou nem sugeriu a fixação de um tempo de consulta de Medicina Geral e Familiar…».

Nos anos da pré-informática, o tempo gasto a escrever repetidamente o nome do doente no cabeçalho do processo clínico, dos pedidos de análises e dos diversos exames imagiológicos, nas prescrições e no livro de marcações das próximas consultas, representava, desde logo, um importante gasto em tempo não médico.

Para que os médicos se pudessem centrar nas tarefas puramente clínicas que só eles podem executar, os países mais avançados tinham já procurado minimizar o problema com a utilização rotineira de gravadores e de um efectivo apoio de secretariado, presencial e/ou longínquo (num registo central).

Esse tipo de secretariado, exclusivamente dedicado ao apoio do registo clínico no Internamento, na Consulta Externa e no Bloco Operatório (que na realidade nunca houve em Portugal), é diferente do que dá apoio às inúmeras tarefas administrativas, algumas das quais, como a cobrança de taxas moderadoras, mobilizam meios e esforços que seriam mais bem aproveitados se fossem canalizados para suporte da actividade clínica.

«(...) por que razão os ortopedistas ingleses, sem serem mais rápidos do que eu e do que os meus colegas de Serviço em Coimbra, faziam mais consultas e mais cirurgias e ainda tinham tempo para a conversa e para tomarem chá e bolachas nos intervalos?»

Nessa minha primeira estadia em Londres, há cerca de quarenta anos, percebi que a utilização da gravação para o registo de dados clínicos, para além de poupar tempo tinha ainda outra vantagem – o detalhe:

«Sabe, se for um cirurgião cansado a ter de escrever depois de uma intervenção, vai registar apenas um sumário da técnica em poucas palavras e perdem-se as particularidades e pormenores que são essenciais para a avaliação dos resultados e para a investigação» – disse-me então Mister Lloyd-Roberts, o mundialmente famoso director do Serviço de Ortopedia Infantil do The Hospital for Sick Children, de Londres, entretanto já falecido. Um facto que constatei ao longo de toda a minha vida profissional em Portugal, onde nunca encontrei apoios semelhantes.

Já nas últimas décadas do século passado, tudo isso era comum nos hospitais de França, Alemanha e em alguns de Espanha que visitei ou onde estagiei, consagrando-se o tempo dos médicos às tarefas que exigiam o seu incontornável conhecimento técnico-científico.

Ter de sair do gabinete para pedir um envelope, voltar a sair para pedir um papel de requisição de exames em falta, para solicitar a preparação de material para um penso ou um gesso ou para chamar o próximo doente, já então representava uma diferença negativa na nossa produtividade, quando muitos destes problemas podiam ser resolvidos com medidas simples e ágeis (como a utilização de intercomunicadores, em vez do telefone que demora mais e por vezes está ocupado) e um forte reforço do apoio do secretariado às actividades clínicas.

Tive uma noção da importância dada ao secretariado clínico quando, durante um curto estágio em Heidelberg, ao perguntar a um colega alemão como estava organizada a Clínica Ortopédica Universitária dessa cidade, ele me começou a explicar: «Somos, com os internos, 52 ortopedistas. Por isso, há, logo de base, 52 secretárias clínicas. Depois, os mais graduados têm uma outra secretária para…». Fiquei esclarecido. No nosso país, nesse dealbar dos anos 90, eram raros os Serviços que tinham secretária (muitas vezes contratada com o estatuto e salário de empregada de limpeza).

Com a informatização, alguma coisa melhorou mas outra ficou pior. Não por incapacidade ou falta de reconhecimento das enormes vantagens da tecnologia digital (como por vezes é repetido com um ar paternalista por administradores e técnicos que nem sequer parecem querer perceber os problemas que lhes são levantados pelos clínicos), mas precisamente pela sua má utilização ou não adaptação aos objectivos desejados.

Principalmente na sua fase inicial, a revolução digital, com as suas imensas capacidades e potencialidades, foi olhada por muitos administradores (mas também por médicos e enfermeiros) como se estivesse desligada do seu papel instrumental, adquirindo o carácter milagroso e quase místico que lhe dão as mentalidades provincianas, deslumbradas pelas «novas tecnologias», parecendo servir mais para exibições de novo-riquismo tecnológico, do que para serem usadas com vantagem.

Um exemplo vivido: durante algum tempo, e já depois da digitalização da imagem radiológica que representou um verdadeiro salto qualitativo pelo controlo de ampliação, contraste, precisão na medição de distâncias e ângulos (e como isso é importante para um ortopedista!...), tornou-se impossível no meu hospital colocar no ecrã do computador dois exames radiológicos lado a lado, de forma a poder comparar e valorizar devidamente as alterações surgidas no tempo que os intermediava.

Ora esse «pequeno pormenor» aumentava enormemente a possibilidade de erro, diminuindo o rigor, podendo causar falhas de diagnóstico, o que era inaceitável. A proposta para que, como medida provisória, se voltasse a imprimir a imagem em película, para poder avaliar os RX lado a lado no negatoscópio, não foi aceite por ser uma forma «ultrapassada e cara», parecendo que a questão do erro era secundária.

«No nosso país, nesse dealbar dos anos 90, eram raros os Serviços que tinham secretária (muitas vezes contratada com o estatuto e salário de empregada de limpeza)»

Demorou bastante tempo e imensa paciência a aturar explicações patetas sobre «as vantagens da digitalização», até o problema ser resolvido (por outras razões) com a aquisição de novo software e de um novo servidor.

Desta e de outra formas, o «deslumbramento» informático foi enchendo o SNS com os mais heterogéneos programas e negócios, trazendo à tona a falta de planeamento estratégico com que tudo foi feito, constituindo ainda hoje um problema que se agudiza sem serresolvido.

Mas a informatização dos processos, mesmo com respostas sem falhas, levanta opções que devem ser estudadas nas suas vantagens e perdas, desde logo porque, para além software e do «parque» de computadores ser muito heterogéneo em número e capacidade, e os médicos, ou uma boa parte deles, demoraram mais a escrever num teclado do que à mão, o que apenas poderá vir a ser ultrapassado quando forem disponibilizados programas de reconhecimento de voz especializados, como os que já existem em Imagiologia.

É esse balanço prático de adaptação ou interface entre as vantagens de qualquer inovação (novas capacidades, rapidez e legibilidade na transmissão, facilidade de armazenamento, impressão e partilha) e as perdas, procurando minimizar os prejuízos e maximizar os benefícios, que parece ser sempre o mais difícil de conseguir de uma administração demasiado «moderna» e «empreendedora», muito pouco «centrada no doente», afinal rígida e burocratizada e irracionalmente agarrada a números e estatísticas mais ou menos martelados, cujo comportamento predominante é a constante menorização dos problemas e complexidades do trabalho clínico, que deveria ser considerado prioritário.

Um exemplo: no processo informatizado, tudo pode ser bastante rápido se o programa com o ficheiro do doente já estiver aberto, for fácil seleccionar a área de requisição imagiológica e, dentro desta, seleccionar na lista dos exames previamente seleccionados como mais frequentes e fazer o click no «Rx da anca». Mas se o exame pretendido for menos rotineiro e as áreas e os itens não forem fáceis de encontrar, tudo se torna demasiado lento. E se, como foi dito, a cada click do rato se seguir uma espera de um minuto, é o desespero. Mais ainda se o programa nem sequer abre. E o desespero atingirá o limite se o Serviço de Apoio Informático do Hospital for o único a não se poder contactar telefonicamente «para evitar a sobrecarga de chamadas» ou se, para poupar dinheiro, não há nenhum técnico informático escalado para resolver o problema, ficando tudo bloqueado.

Muitas vezes os programas são inadequados ou comprados «em bruto», e a sua devida adaptação às necessidades de cada serviço ou especialidade não é feita por ignorância ou poupança na compra, ou por simples limitação intelectual dos hábitos caseiros que interpretam qualquer protesto como um desafio à sua autoridade.

Pessoalmente, e como Director de um Serviço de Ortopedia Infantil, tive grandes dificuldades em conseguir que, num novo programa de imagiologia surgido sem aviso durante um fim-de-semana, fosse retirado do formulário de requisição de qualquer RX (que demorava mais de cinco minutos a preencher), um campo de preenchimento obrigatório que obrigava a perguntar a todas as crianças do sexo feminino com mais de oito anos de idade se estavam grávidas (!).

Para isso, e para conseguir «costumizar» o programa, foram necessárias várias reuniões para vencer a inesperada resistência dos responsáveis da administração e do departamento, que consideravam essa exigência de agilização e adaptação às necessidades sentidas por todos os especialistas do Serviço, uma «mania de protestar» ou um estranho desamor às «capacidades da informática».

«Será racionalmente possível analisar "dez cirurgias" como se fossem dez latas de salsichas de uma linha de produção?»

Se na Consulta Externa é o somatório desses tempos mortos que esmaga o tempo disponível para o doente, no Bloco Operatório, são a dificuldade de comunicação com a enfermaria, o tempo de resposta quando se chama o doente, a deficiente preparação pré-operatória ou de apoio à anestesia, a falta pontualidade no arranque de toda a equipa multidisciplinar que prepara e executa o acto cirúrgico, a rapidez do apoio imagiológico e a boa ou má gestão e economia de tempo dos intervalos (como na mudança de pneus da Formula), alguns dos principais factores que podem piorar ou melhorar muito a produtividade cirúrgica.

Um menor apoio às tarefas mais básicas (como a de limpar a sala depois da cirurgia ou de passar o doente da mesa operatória para a maca), por falta de auxiliares de acção médica devido, por exemplo, a políticas demasiado «austeritárias», pode influir decisivamente numa baixa da «produção cirúrgica» de todo o Bloco operatório.

Que sentido faz, neste contexto, um administrador, arvorando a pretensa superioridade moral de um mau patrão, apontar o dedo acusador a um director de um serviço de cirurgia, inquirindo-o com a arrogância de um Reichführer: «Explique-me lá por que razão se fizeram menos dez cirurgias este semestre?!».

Será racionalmente possível analisar «dez cirurgias» como se fossem dez latas de salsichas de uma linha de produção? O mínimo de inteligência impõe que se perceba a diferença de tempo e complexidade entre os diversos actos cirúrgicos e a possibilidade de uma pequena cirurgia se complicar e tornar demorada, e de uma grande intervenção fluir com inesperada facilidade demorando muito menos do que o previsto, para além da multiplicidade de factores que podem influir no número de cirurgias efectuadas.

«Os médicos estão preocupados com a invasão de conceitos mercantilistas. Há quem acredite que se pode aplicar a mesma análise que se emprega aos objectos materiais, nas tarefas médicas. É uma aberração.» 1

Ignorar as pessoas e a realidade na gestão e na avaliação da produtividade, é aceitar o irracional, a imposição de normas e regras sem qualquer justificação ou explicação lógicas. E foi assim que se cometeram as piores desumanidades, os maiores crimes.

Num trabalho de avaliação do desempenho médico efectuado, em 2012, pelo British Medical Council (Health Research Services), «Evaluation of physicians' professional performance: An iterative development and validation study of multisource feedback instruments», o segundo item de valorização que os doentes eram instados a responder era se o médico «dedica o tempo necessário comigo».

Como se pode o conciliar a valorização, por parte do doente, do tempo gasto pelo médico com a sua consulta, e a pressão, em sentido contrário, da administração que só olha ao maior número de doentes atendidos?

«(...) a discussão abstracta e tosca de indicadores manipulados serviu para inquinar o serviço público de saúde com a pior lógica da medicina privada (...)»

Na realidade, o único factor que deve ser maximizado é o tempo útil de exercício da actividade clínica assistencial, dando espaço aos doentes, cada vez mais (bem ou mal) informados, para explicarem as suas queixas e dúvidas, sabendo que uns serão rápidos e incisivos e outros prolixos e vagos, possibilitando também, ao médico, tempo para ser como é, ao ritmo que lhe é próprio, rápido e hábil no interrogatório ou na cirurgia, ou lento, persistente, mas seguro e perfeccionista, como muitas vezes são os melhores.

«É preciso que o doente se sinta respeitado pelo médico, que este o esteja a ouvir e não a olhar para o relógio» – referiu, no passado mês de Julho de 2016, o Bastonário da Ordem dos Médicos, Prof. José Manuel Silva, numa conferência significativamente intitulada «A relação médico-doente como Património da Humanidade».

Claro que é sempre possível aldrabar os números, aumentando, por exemplo, a percentagem de primeiras consultas através do artifício de alta aos doentes que são vistos de seis em seis meses, de forma a que, quando o doente volta seis meses depois à consulta, ela seja contabilizada como primeira (exemplo real de um «conselho» dado pela administração), ou compensando o tempo gasto com os casos mais complexos, desmultiplicando desnecessariamente as consultas mais simples, beneficiando «a produção» do Hospital, mas prejudicando a economia das famílias e do país.

Pode-se também aumentar artificialmente a produtividade mudando a forma de classificação dos actos praticados (por exemplo, passando a contar as cirurgias não pela sua referência global mas pelo número de incisões) ou inventando novos conceitos como o da «consulta sem a presença do doente», contabilizando simples contactos telefónicos ou informações que eram habituais e grátis, levando o descaramento até ao ponto de cobrar por elas taxas «moderadoras», coisa que, até há pouco e citando o nosso presidente, «não lembrava ao careca!», pelo menos em serviços públicos.

A contabilidade dos «números» e a corrida à «produção» (para além da desestruturação das Carreiras), abalou também profundamente o ensino e a formação pós-graduada, porque nada disso conta para as estatísticas. E se em tempos era frequente um hospital enviar em «Comissão Gratuita de Serviço» (continuando a pagar o ordenado) um dos seus jovens especialistas para um estágio num outro serviço ou hospital mais diferenciado do país ou do estrangeiro, hoje, na prática isso  já não acontece porque a precariedade aumentou e o futuro do contratado a ninguém pertence, e nenhuma administração está disposta a ver baixar os seus indicadores devido à ausência prolongada de um médico que, por isso, não produz «para a casa» que continua a pagar o seu salário.

Nestas últimas décadas, a designada produtividade médica, tantas vezes invocada como forma grosseira de pressão para aumentar a «produção» de actos médicos, levou a sua análise a níveis impensáveis de infantilização do raciocínio e de manipulação de números e estatísticas, impedindo um estudo mais rigoroso e a implementação das medidas necessárias à sua real melhoria.

Para além do uso do desempenho médico como bode expiatório para a degradação do SNS, a discussão abstracta e tosca de indicadores manipulados serviu para inquinar o serviço público de saúde com a pior lógica da medicina privada, criando um artificial e «empreendedor» ambiente de «corrida ao lucro», burocratizando e secundarizando os objectivos clínicos, desmotivando e levando ao desespero muitos dos seus melhores profissionais, servindo de pretexto para drenar os doentes «em espera» para os grandes grupos privados da saúde, que entretanto cresceram ao ritmo de dois dígitos por ano, ocupando os buracos dolosamente criados pelos governos do defunto «arco do poder» no SNS.

Para melhorar a produtividade médica, fazendo com que o SNS esteja verdadeiramente «centrado no doente» e interessado na formação dos seus profissionais, é necessário acabar com tudo isto.

  • 1. Cf. Luis Japas – «El concepto de productividad aplicado a la medicina». Asociación Médica de la Actividad Privada, Buenos Aires, Argentina, 2016

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