Ler, mesmo na diagonal, as leituras que se fazem das eleições autárquicas 2017, na comunicação social e nas redes sociais, é exercício acabrunhante, mesmo que se coloque à margem o que se escreve e diz sobretudo sobre os resultados eleitorais de Almada, em que existe uma exaltação pelo aparente ar fresco (o que é que isso quererá dizer?) soprado por uma Inês Medeiros, que não tem deixado marcas pelos lugares por onde deambulou mas que, nos delírios provincianos e serôdios que por aí se plantam, fará renascer em solo luso uma rive gauche, se não defunta pelo menos moribunda no seu local de origem.
Depois, Lisboa, onde iremos ter, para alegria dos sitcoms turísticos e da especulação imobiliária, a continuação, agora talvez um pouco mais mitigada pela perca de maioria absoluta, de uma cidade que está a ser virada do avesso por Manuel Salgado, com Medina a fazer de presidente, em linha com os modelos das cidades neoliberais1, que vai tentar continuar o seu curso numa Lisboa enquanto «cidade pensada a preço por metro quadrado, como um realista tabuleiro de monopólio, pronto a servir para a monocultura de hotéis e luxury apartments2.
Haveria ainda a referir, sem necessidade de comentários, o exemplo exemplar de Oeiras.
Saltando ao eixo sobre esses três sucessos, outros se poderiam alinhar, cai-se nas leituras que estão a ser feitas, extrapolando os resultados autárquicos para o plano nacional. Uma decifração excessiva, tenham o peso que tiverem nos partidos que se confrontaram, mesmo sem iludir o efeito que a persistência mediática em transformar as eleições locais em eleições nacionais possa ter tido.
A leitura das votações nas autárquicas deve ser feita autarquia a autarquia. Votar numa lista de candidatos para uma Câmara Municipal, uma Assembleia Municipal, uma Assembleia de Freguesia é bem distinto de votar para as legislativas. Só a comparação dos resultados obtidos no mesmo concelho por cada um dos partidos, coligações ou candidaturas ditas independentes a essas autarcias é elucidativa.
Um tema tem sido dominante entre os supostamente preclaros plumitivos: o efeito que o mau resultado da CDU, com a perda de dez câmaras, terá na relação existente entre os parceiros do acordo parlamentar, cuja efectivação, sublinhe-se, foi impulsionada pelo PCP, o que é sistematicamente esquecido porque coloca em causa a generalizada tese de os comunistas perfilharem o quanto melhor pior. Uma tese falsa, a roçar a aleivosia.
O PCP, pela sua grande proximidade com as populações, sabe melhor que ninguém que o quanto pior melhor, tanto afecta trabalhadores como as classes médias. Que, quando as crises rebentam, as pessoas humanamente interrogam-se sobre o dia de amanhã.
A reacção mais imediata e espontânea é o receio pelo seu futuro, pelo que as lutas pelos direitos políticos e sociais não se reforçam com as crises, que alargam sempre o fosso entre ricos e pobres. Quem se reforça são os populismos de todos os matizes, tanto de esquerda como de direita, em particular da extrema-direita.
Os maus resultados do PCP nas autárquicas devem ser analisados pela lente, cada caso é um caso, das deficiências na gestão e como o trabalho realizado foi comunicado em cada uma das dez câmaras perdidas, pelas escolhas eventualmente erradas nos candidatos, o que nem sempre será certo, nas propostas feitas aos eleitores, no trabalho e empenho nas campanhas eleitorais.
«É ler e ver o que passeia destrambelhadamente pela comunicação social e pelas redes sociais, da direita a uma certa esquerda, todos muitos excitados com a perda de autarquias pela CDU e pelo que daí pode advir, como se as lutas estivessem dependentes de outros cálculos que não fossem os que as motivam.»
Esses são os pontos nucleares em que se devem centrar os questionamentos internos no PCP o que, como seria expectável, são estranhos aos escreventes tanto da direita mais encortiçada como das esquerdas saltitantes.
Uns e outros, por razões diversas, mas não conflituantes, esperam que os acordos estabelecidos, por muito ainda estar por cumprir, sejam fissurados ou mesmo quebrados, por o PCP recear uma perda imediata de influência, o que o faria engrossar a voz para não sofrer «o abraço de urso», que foi dado aos partidos comunistas na Europa quando fizeram acordos com partidos socialistas.
Esquecem, com pertinácia nada virginal, que o abraço era dado a um urso de pelúcia com quase todo o seu miolo esvaziado. Teses simplórias, que incorrem no erro original de meter os partidos comunistas no mesmo saco, como se os partidos comunistas, em particular o de França e Itália, não tivessem entrado em autofagia ideológica, denegando e destruindo princípios para supostamente atingirem uns fins que não se diferenciavam dos revisionistas sociais-democratas, ficando incapazes de ver que o conflito central continua a ser o da luta entre o trabalho e o capital, que a proletarização, ainda que encapotada, avançava e continua a avançar a passo largo em todo o mundo.
Que esses partidos foram invadidos pelo eclectismo político, um forte aliado do capital e da burguesia, que já tinha inundado essas outras esquerdas. São expressão do triunfo ideológico da direita bem patente nos defuntos eurocomunismos, nas variegadas terceiras vias que colonizaram e colonizam os partidos socialistas e sociais-democratas.
Outro aspecto nada despiciendo desse estado de coisas é a tónica das lutas ter sido deslocada para as mudanças de atitude social desprezando qualquer alteração do quadro social dominante.
Não é que se deva ficar alheio a essas lutas ditas fracturantes. O equívoco é fazer a exaltação das diferenças ocupar lugar central em vez do lugar secundário que justamente devia ter, confundindo lutas por mudanças de atitudes sociais com lutas por mudanças sociais de fundo.
Poderão os resultados positivos da governação PS ter algum efeito de erosão nos votantes CDU. Não será isso que fará o PCP recuar na sua de sempre linha política que, por ter viabilizado o governo, fragilizou de maneira contundente a direita, melhorou, ainda que de forma insuficiente, a vida dos trabalhadores, pensionistas e da classe média, fez com que muitas das políticas vacilantes do PS se orientassem para a esquerda, no que nem sempre tem tido êxito.
As lutas do PCP continuarão nesse, e não outro rumo. Jerónimo de Sousa, coerentemente, deixou isso muito claro, quando afirma que «o que determinará o futuro do Governo do PS está nas mãos do próprio PS», «tudo depende da continuação — ou não — do caminho começado há dois anos, com a reposição de rendimentos e de direitos».
Reafirma: «Estamos nesta nova fase da vida política nacional, num processo onde repor, devolver até a esperança, leva o PCP a não perder nem uma oportunidade materializar esses avanços», o que aliás está em linha com o que disse há dois anos: «O PS só não será governo se não quiser», abrindo caminho para a solução política actual.
Os cálculos políticos da direita, da mais obnóxia à mais porosa, da esquerda, da mais recalcitrante com o rumo actual à mais performativa, todos agitados pelo cheiro do couro dos cadeirões do poder, são de curto prazo depois de terem perdido todos e quaisquer horizontes ideológicos, alguns nem nunca os tiveram.
A sua única visão foca-se em futuras contagens de votos porque são máquinas eleitorais que medem exclusivamente a sua força pelas percentagens que alcançam para servir interesses económicos que lhes dão apoio variável.
É a transposição para Portugal do que está a acontecer em todo, quase todo o mundo, numa extensão do sistema norte-americano, dentro do quadro do pensamento da ortodoxia de direita que está triunfante e que inquina generalizadamente as análises políticas, mesmo as que se lhe opõem quando decalcam argumentários que se desgastam por repetitivos.
Por muito que o neguem e disfarcem estão amarrados aos pelourinhos do TINA (There Are No Alternative) ou perdidos nos seus labirintos. É ler e ver o que passeia destrambelhadamente pela comunicação social e pelas redes sociais, da direita a uma certa esquerda, todos muitos excitados com a perda de autarquias pela CDU e pelo que daí pode advir, como se as lutas estivessem dependentes de outros cálculos que não fossem os que as motivam.
Nos granéis das direitas estão preocupadíssimos com a crise aberta no PSD, em que o presidente não se demite, mas não se recandidata, rezando à Senhora de Fátima para que apareça um Macron lusitano no nevoeiro do próximo congresso, a Cristas faz figas para que tal milagre não aconteça.
Espreitam pelos buracos de todas as fechaduras para o que supostamente se passa debaixo do tampo da mesa em que Marcelo e Costa reúnem, sonhando com a ressurreição do bloco central e suas alternâncias pouco substantivas, ainda e mesmo que com uns berloques de esquerda a reboque.
Os cenários multiplicam-se cada cor seu paladar. Acabam sempre com os olhos em bico a ler os astros para fazer previsões na base de contagens de cruzes que as massas populares irão um dia inscrever nos boletins de voto, para no outro dia acordarem como sempre sem nenhum amanhã.
Há outros mundos e quem lute por outros mundos, para lá desses pequenos mundos sem horizonte, com isso eles não sonham, mas conhecem quem porfie nessa luta, o que muito os desassossega.
- 1. The Architecture o Neoliberalism, how contemporany architecture became an instrument of control and compliance, Douglas Spencer, Bloomsbury 2016, a ler ainda Arquitectura, Cidade, Neoliberalismo, Filipe Diniz, Caderno Vermelho 25, Setembro 2017
- 2. A Lisboa Pós-Salgado 2007-2017, Ana Jara, Caderno Vermelho 25, Setembro 2017
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