Dias de Melo é uma figura incontornável da literatura portuguesa. No dia em que se assinala o centenário do seu nascimento1, é um dever de memória que o seu nome e a sua obra sejam objeto de celebração, mormente, por quem com ele partilha(va) uma certa visão do mundo e da sua transformação libertando, como ele próprio dizia, os povos da canga da servidão.
Esta sua visão do mundo e o seu posicionamento político tinha raízes diversas, mas terá sido através do exemplo do seu pai e das histórias que lhe ouviu contar do tempo em que esteve emigrado na Califórnia que Dias de Melo foi consolidando as suas opções cívicas e políticas.
Numa longa entrevista concedida a Vamberto Freitas, publicada no Imaginário dos Escritores Açorianos, intitulada A Educação de um Escritor: Dias de Melo (pp 171 a 188), afirma-o de forma clara e inequívoca e passo a citar, a pergunta de Vamberto Freitas e um excerto da resposta de Dias de Melo:
«Vamberto Freitas – A sua visita à América em 1988 foi, tal como você viria a escrever, emocionante. Acho isso uma reacção muito interessante para um europeu de "esquerda". Quase todos os europeus de semelhante opção política tendem a olhar os EUA com certa reserva, quando não desdém. Quer falar dessa sua experiência? Com que ideia ficou deste país?
Dias de Melo – Confirmo: sou um homem de esquerda e como tal, sem aspas nem reticências, me assumo. O que você não sabe, com certeza, é que me firmei definitivamente na minha opção de esquerda quando, já homem, meu pai me falou das grandes lutas operárias desencadeadas pelos sindicatos – as uniões, como na América lhes chamam – precisamente na Califórnia. Lutas por reivindicações várias, entre elas, duas principais: o dia, não me recordo se já das oito se ainda das dez horas de trabalho, e os salários. Em tais lutas, tomou ele parte bastante responsável. Chegou a ser chefe de piquete de greve. (…)»
Já amadurecido e durante a homenagem que a Câmara Municipal das Lajes do Pico promoveu em sua honra, em 2002, concedendo-lhe o título de Cidadão Honorário do Concelho, se dúvidas houvesse sobre o comprometimento com o seu povo elas ficariam dissipadas nas palavras de Dias de Melo na sua intervenção de agradecimento pelo título que lhe foi conferido, e cito: «Sou escritor. Português – porque sou cidadão do meu país. Portugal. Açoriano – porque sou cidadão dos Açores. Mas, mais restritamente e acima de tudo – sou um escritor do Pico. Da minha ilha, da minha Terra. E, porque sou Povo – do Povo da minha, da nossa ilha, da minha, da nossa Terra. Boa parte dos meus livros aqui, na nossa Ilha, na nossa Terra, se situa. Do Povo, do nosso Povo, são os modelos da grande maioria das personagens que neles vivem. (…)»
Dias de Melo é um dos escritores açorianos com maior projeção regional e nacional, a sua escrita assume caraterísticas singulares na literatura portuguesa da segunda metade do século XX, e, na sua vasta obra, 27 títulos publicados, encontramos romance, conto, poesia, crónica, relato de viagem e recolha etnográfica.
Vamberto Freitas escreveu sobre alguns títulos da obra de Dias de Melo e reconhece ao autor, que nunca viveu fora do seu país, uma grande sensibilidade e conhecimento sobre o fenómeno migratório açoriano, desde logo em Pedras Negras, que não é apenas um romance sobre a baleação, mas também em Das Velas de Lona às Asas de Alumínio, a esse propósito diz Vamberto Freitas2: «(…) Só Dias de Melo, muito antes de visitar a América, mas como resultado de saber escutar um pai que por cá tinha vivido de corpo inteiro, atento a tudo o que o rodeava, conseguiu transmitir um pouco da verdade dessa aventura na América no seu romance Pedras Negras, e mais tarde no livro de viagens Das Velas de Lona às Asas de Alumínio. (…)»
Dos títulos publicados destacam-se os livros que integram O Ciclo da Baleia3, – Mar Rubro, 1958; Pedras Negras, 1964, e Mar Pela Proa, 1976, mas que Dias de Melo considerava, para que o ciclo se completasse, lhe deveriam juntar Toadas do Mar e da Terra, poesia e o seu primeiro livro, bem assim como o trabalho futuro que já tinha planeado e que veio a ser concretizado na obra Na Memória das Gentes, como nos dá conta Urbano Bettencourt, socorrendo-se da voz do autor.4
Independentemente do debate em torno dessa questão, importa referenciar que a obra de Dias de Melo é muito mais vasta do que os títulos já referidos, embora, tenham sido os livros do chamado Ciclo da Baleia que lhe deram projeção nacional e internacional. Pedras Negras foi traduzido para inglês e japonês e teve, à semelhança de Mar Pela Proa, teve quatro edições, tendo as crónicas romanceadas Mar Rubro, Baleeiros do Pico, três edições.
«Hoje, ao relermos Dias de Melo, reencontramos não só um cronista e romancista da baleação ou um contador de histórias do Atlântico, mas um homem que nunca separou a literatura da vida.»
A Imprensa Nacional, reuniu, numa edição de 2024, coordenada por Luís Fagundes Duarte, os três títulos do Ciclo da Baleia e sobre a qual, na nota editorial o coordenador desta edição diz:
«(…) Pretende-se com esta edição conjunta, em boa hora assumida pela Imprensa Nacional, resgatar Dias de Melo da etiqueta simpática mas redutora de «escritor açoriano» – que o é por natureza e essência –, o inscrever no vasto cânone da literatura portuguesa a que, com as suas caraterísticas próprias, resultantes das circunstâncias em que viveu e escreveu deve pertencer. (…)»
Críticos e ensaístas consideram, com alguma unanimidade, que os livros de O Ciclo da Baleia serão a parte mais significativa da produção literária de Dias de Melo e sobre esta opinião generalizada nada tenho a obstar. Considero, porém, que títulos como Cidade Cinzenta (crónicas), Das Velas de Lona às Asas de Alumínio (relatos de viagem), Vinde e Vede, O Autógrafo (romance), Na Memória da Gentes (recolha etnográfica), ou A Montanha Cobria-se de Negro (2008) último livro do escritor, merecem igualmente um lugar de destaque na vasta obra de Dias de Melo.
Urbano Bettencourt, também ele um picoense, tem vários ensaios publicados sobre Dias de Melo que se constituem como um significante contributo para conhecer melhor a obra e o homem. No texto Das Pedras Negras ao Negro da Montanha5, Urbano conduz-nos por alguns dos livros e analisa aquele que foi um percurso literário diverso, terminando com uma narrativa/romance sobre a Montanha… que deu nome às Pedras Negras.
Urbano Bettencourt, no ensaio já referido, sobre Cidade Cinzenta, e, em particular sobre Vinde e Vede6, fala-nos da deslocação para Leste, para a ilha de São Miguel, e da escrita de Dias de Melo centrada no universo social micaelense. «(…) Camponeses, assalariados, pescadores, operários compõem o núcleo desse universo humano micaelense a contas com um quotidiano de injustiça e prepotência, de miséria também, sob o pano de uma caridade muito pouco cristã (…)».
A escrita de Dias de Melo, desde sempre, foi um ato de comprometimento, de denúncia e de luta. Dias de Melo foi um escritor militante que tomou sempre o lado dos injustiçados, dos explorados, aspeto em que também os ensaístas e investigadores convergem nas suas apreciações.
A fundação da Associação Cultural Académica (Horta, 1944) e da cooperativa Sextante (1970), em S. Miguel e a sua participação regular em títulos da imprensa (regional e nacional), confirmam o seu compromisso social e político assumindo, em pleno, o seu dever de cidadão empenhado na luta pela liberdade, pela democracia e por um mundo melhor.
Sobre Dias de Melo, e há apenas um dia, escreveu Mário Abrantes: «Não era um modelo de simpatia, mas era um modelo de sinceridade; De poucas palavras e muitas pausas, mas deslizava pela escrita sem hesitar; De muitas dúvidas e poucas certezas, mas sempre com a certeza do lado da vida em que se situava; Não se considerava dono do saber, mas ensinava tudo o que aprendia; Não se achava o centro do mundo, mas sentia-o e vivia-o de corpo inteiro;
Foi um privilégio e uma honra conhecê-lo e trabalhar com ele...»
Hoje, ao relermos Dias de Melo, reencontramos não só um cronista e romancista da baleação ou um contador de histórias do Atlântico, mas um homem que nunca separou a literatura da vida. A sua escrita — feita de palavras nascidas do povo e para o povo — continua a lembrar-nos que a literatura pode ser um gesto de resistência, uma memória viva e um ato de pertença. A melhor homenagem que lhe podemos fazer será, como diz, Urbano Bettencourt: «Pôr a circular a obra de Dias de Melo, trazê-la ao espaço público, colocá-la sob o olhar dos (potenciais) leitores será sempre o modo mais eficaz de homenagear o autor e evitar que se lhe perca o rasto na avalanche dos dias.»
- 1. Nasceu a 8 de abril de 1925 na Calheta de Nesquim, concelho das Lajes, Ilha do Pico.
- 2. In A Ilha em Frente – textos do cerco e da fuga, edições Salamandra, 1999.
- 3. Designação proposta por J. H. Santos Barros, em 1977, numa recensão a Mar Pela Proa.
- 4. In Sala de Espelhos, Companhia das Ilhas, 2020 (pp 167 e 168).
- 5. In Sala de Espelhos, pp 163 a 173.
- 6. In Sala de Espelhos, pp 170 e 171.
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