|Música

Dino d'Santiago tem Mérito Cultural

O Governo atribuiu a Medalha de Mérito Cultural ao músico Dino d'Santiago, esta quarta-feira, «em reconhecimento pelo contributo dado à criação musical em língua portuguesa e à sua projeção no mundo».

CréditosFilipe Amorim / Agência Lusa

O papel de Dino d'Santiago na projecção da língua portuguesa, «na promoção do diálogo cultural entre os povos que falam português», assim como «o empenho que tem posto na defesa da igualdade e no combate a todo o tipo de discriminação» são os factores que motivaram a atribuição da Medalha de Mérito Cultural, segundo o comunicado divulgado pelo Governo.

A entrega da Medalha de Mérito Cultural realizou-se na tarde desta quarta-feira, no Estabelecimento Prisional do Linhó, no concelho de Sintra, onde Dino d'Santiago participa todas as semanas na iniciativa «De dentro para fora», coordenada pelo professor Filipe Gameiro Neves, «fazendo da música um espaço de liberdade no interior da cadeia». 

«Este projecto que o Dino faz [no Linhó], e muitas outras coisas que o Dino faz, têm este princípio: utilizar a cultura para promover uma ideia de virtude. Fazer o bem e criar uma comunidade de pertença», afirma o ministro da Cultura, citado pelo comunicado divulgado pelo seu gabinete.

«A forma como o Dino tem aproximado as várias linguagens culturais tem ajudado a tornar o nosso país mais aberto e a projectar uma imagem de uma sociedade mais plural e diversa e, por isso, mais rica», lê-se na nota.

O cantor, músico e compositor Dino d'Santiago, de nome Claudino Jesus Borges Pereira, nasceu em 13 de Dezembro de 1982, em Quarteira, no distrito de Faro, numa família de imigrantes cabo-verdianos.

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Dino e o outro hino que Portugal cantaria

Tal como o músico, não queremos guerras, mas há uma luta a fazer neste País, a luta contra os «canhões» do racismo, das desigualdades, da intolerância e da injustiça social.

Créditos / Dino D'Santiago

«Vai mas é para a tua terra», «Pode ser que encontres uma vaga nas obras», «Muda o hino de Cabo Verde», «Não gostas do hino? Muda de país».

Estas insuportáveis frases são apenas algumas das centenas que lemos e que têm como destinatário Dino D'Santiago, multi-premiado músico, cúmplice artístico de Madonna quando a cantora norte-americana vivia em Portugal, criador do projecto de sucesso «Lisboa Criola», assente nas ideias de cruzamentos, mistura, miscigenação, do encontro entre as culturas portuguesa e africanas.

Um músico-estrela respeitado e aclamado de forma transversal na sociedade portuguesa, dos bairros sociais ao poder político, durante o tempo em que, no fundo, - preconceito e leitura minhas – foi reinventando uma espécie de lusotropicalismo urbano-lisboeta no século XXI.

Mas a linguagem discriminatória, racista e abusiva de que Dino D'Santiago tem sido alvo nos últimos tempos parece que o faz passar de «bestial a besta». Porquê?

«Xé menino não fala política», é o verso de uma música do angolano Waldemar Bastos. Dizia a canção que, enquanto a avó «Velha Chica» trabalhava para o patrão, as crianças perguntavam-lhe qual a razão da pobreza e do sofrimento de alguns, e a resposta da senhora surgia assim: «Xé menino, não fala política…não fala política».

Dino D'Santiago, músico português, de Quarteira, com origens familiares em Cabo Verde, está a ser alvo de ódio, insultos e ofensas porque se atreveu a «falar política».

Enquanto utilizava o microfone apenas para cantar e fazer música de fusão era «bestial». Mas Dino começou a usar o microfone como amplificador para outras causas, outras realidades, outras dores. As críticas, ferozes, começaram com a sua participação na Festa do Avante em 2022. Não lhe deram tréguas por se ter juntado à festa organizada pelos comunistas portugueses quando estes foram eleitos, por amplo consenso, saco de pancada nacional. Nessa altura, Dino contou que até na sua família o aconselharam a não ir ao Avante. Os mais velhos, lá está, que viveram outros tempos, tentam avisar e proteger os mais jovens, como naquela canção: «menino, não fala política».

Mas, Dino continuou a falar política. Utiliza o microfone, as redes sociais, o espaço mediático que conquistou para se posicionar, para falar sobre pobreza, exclusão e desigualdades, sobre crescer em bairros de lata, para denunciar o preconceito e o racismo na sociedade portuguesa, para tornar visível o encarceramento desproporcional de jovens negros e ciganos no sistema judicial português, para partilhar as suas reflexões e visões do país, para desafiar relações de poder. Fê-lo também em horário nobre na televisão pública portuguesa.

E isso tem um preço. Desafiar uma certa ordem implícita, questionar a norma vigente, tem um preço. E um preço ainda mais alto porque Dino é negro e uma parte de Portugal continua a ver uma pessoa negra como sendo de outro lugar, como não tendo legitimidade para falar sobre certos assuntos. Como o hino nacional.

Sobre esta recente polémica, Dino D'Santiago, diga-se, não cometeu nenhuma originalidade. Como tem sido lembrado por estes dias, o escritor e advogado António Alçada Baptista, na qualidade de Comissário das Comemorações do Dia de Portugal, defendeu em 1997: «A própria letra do hino nacional não me parece adequada à nossa civilização, não pode ter nenhum eco no coração da juventude evocar a vitalidade da Pátria, gritando “às armas” e propondo-nos “marchar contra os canhões”». Também Alçada Baptista recebeu, é certo, contestação à sua proposta mas, no entanto, ninguém o terá mandado para outra terra.

Em tempos idos, Fernando Pessoa, incontestável símbolo nacional, manifestou o seu desprezo pela conjugação entre o vermelho e verde da bandeira nacional, outro símbolo, à qual se referiu nestes termos: «ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional –  trapo contrário à heráldica e à estética, porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor». Símbolos nacionais sempre foram, assim, questionados por cidadãos interessados em lançar o debate sobre os mesmos. Mas nem todos os cidadãos portugueses são alvos de escrutínio cruel e linguagem racista.

Sobre o hino, Dino D'Santiago formulou a sua ideia da seguinte forma: «Este nosso tempo, já é um tempo de termos um hino menos bélico, que incentive menos às guerras. Não gritemos mais “às armas, às armas” e não marchemos mais “contra os canhões”. Os nossos filhos não precisam disso e a nossa emancipação não pode ser territorial. Que seja mental, espiritual, com amor».

«Desafiar uma certa ordem implícita, questionar a norma vigente, tem um preço. E um preço ainda mais alto porque Dino é negro e uma parte de Portugal continua a ver uma pessoa negra como sendo de outro lugar, como não tendo legitimidade para falar sobre certos assuntos. Como o hino nacional.»

A proposta é de Paz, mas foi recebida com guerra, com palavras ofensivas e violentas. O problema aqui não foi, por isso, querer mudar um símbolo nacional (outros, como vimos, já defenderam o mesmo sem grande celeuma), o problema, neste caso, é quem o sugeriu: um homem negro.

E é precisamente na forma de «acolhimento» da sugestão do músico que reside a questão principal. Será que, uma parte da nossa apregoada «identidade nacional», mais do que no hino, não se encontra bem refletida nas reacções contra o músico Dino D'Santiago?

Como se entende pelo nível de «argumentação», grande parte dos que o criticam de forma insultuosa e violenta fazem-no porque sentem que o músico não tem legitimidade para sugerir mudar o hino porque, sejamos honestos, não o consideram português. Parte da população portuguesa continua a ver a sua cor de pele e as suas origens familiares como factor de exclusão para o debate sobre o hino. É nestas descaradas «subtilezas» que, também, se manifesta o racismo em Portugal. Um músico bem-amado que passa a negro «ingrato» passível de ser recambiado para outro lugar a partir do momento em que questiona.

Enquanto cidadã portuguesa, apesar de não me identificar com a letra do hino, não sinto o apelo imediato ou prioritário da sua mudança, mas compreendo e vejo como necessário e, até reconfortante, que personalidades do meu país queiram pensar sobre o assunto e aproveitem a plataforma de que dispõe para, corajosamente, relançar este debate. Agradeço, por isso, que portugueses como Alçada Baptista em 1997, Dino D'Santiago em 2023 e muitos outros pelo meio nos façam pensar sobre assuntos que temos como «arrumados», resolvidos, sacralizados. Porque, ao mesmo tempo, fazem-nos reflectir sobre uma «identidade nacional» tão frágil e presa por arames que é capaz de atacar de forma vil quem propõe um repensar, uma reflexão sobre um «símbolo nacional» num sentido pacifista.

Acredito que Dino D'Santiago desafia a criação de um novo hino nacional porque imaginará, também, a criação de uma nova (e mais justa e mais amorosa) pátria. A forma como a sua proposta está a ser recebida pela opinião pública mostra-nos o longo caminho que temos a percorrer neste desígnio porque, ainda assim, mudar um hino será menos difícil do que mudar e emancipar a mentalidade de uma nação (como ele também, e bem, propõe).

Tal como o músico não queremos guerras, mas há uma luta a fazer neste país, a luta contra os «canhões» do racismo, das desigualdades, da intolerância e da injustiça social. E, nessa luta, as palavras e «a cantiga» de Dino D'Santiago continuarão a ser o que têm sido até aqui: uma arma. Obrigada, Dino!

Tipo de Artigo: 
Opinião
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Cresceu no Bairro dos Pescadores da vila algarvia, onde iniciou a ligação à música, primeiro como elemento do coro da igreja local, mais tarde como compositor e criador das suas próprias canções, em espectáculos de rap.

Depois de, em 2003, ter participado no programa «Operação Triunfo», da RTP, para o qual levou músicas da sua autoria, desenvolveu projectos em que fundiu universos da soul, do hip hop e do R&B, nomeadamente Dino & The SoulMotion e a banda Nu Soul Family, tendo trabalhado com músicos como Virgul, Sam The Kid, Tito Paris, Valete e Pacman.

O primeiro álbum, Eva, foi lançado há dez anos, facto que Dino D'Santiago assinalou nos dois últimos meses, em espectáculos no Teatro Tivoli, em Lisboa, e na Casa da Música, no Porto. Antes de Eva, em 2008, Dino D’Santiago tinha editado Eu e os meus, enquanto Dino and The Soul Motion. Como Dino D’Santiago, editou Mundu Nôbu (2018), Kriola (2020) e Badiu (2021).

Em Badiu, um termo depreciativo que acabou por se tornar um «símbolo de resistência», Dino enaltece, mais do que nunca, o «batuku» e o funaná, sons de Cabo Verde «que resistiram à opressão», tal como os «badius», símbolo de resistência, que homenageia com este trabalho.

Essas pessoas, explicou em entrevista à agência Lusa em 2021, são as que foram levadas dos territórios onde se situam hoje a Gâmbia e o Senegal e, posteriormente, da Guiné-Bissau para a Ilha de Santiago, em Cabo Verde, escravizadas pelos portugueses.


Com agência Lusa

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