Peniche e outras voltas pelo património
Não, o centro do mundo hoje não é Berlim, nem Paris, nem Camberra. Hoje o centro do mundo é Peniche… Corrijo-me: hoje os centros do mundo são vários. Quer saber quais? Bom, se tiver automóvel e um dinheirinho de lado para dividir gastos em gasóleo e portagens com uns amigos, experimente este roteiro: tire uns dias e dê uma espécie de volta ao país para visitar, além da Fortaleza de Peniche, o Convento de São Paulo, em Elvas, os Castelos de Vila Nova de Cerveira e de Portalegre, os Mosteiros de São Salvador de Travanca (Amarante), de Arouca, de Santa Clara-a-Nova (Coimbra), além dos Pavilhões do Parque D. Carlos (Caldas da Rainha), o Paço Real de Caxias, o Forte do Guincho (Cascais) e a Quinta do Paço de Valverde (Évora). Bela volta, não acha? Um magnífico percurso por lugares de um património que, por enquanto, ainda é seu e de todos os portugueses. Pois bem, mas em grande parte vai deixar de o ser, se for por diante a nefasta intenção do actual Ministério da Cultura de concessionar a privados estes monumentos históricos (e é só a primeira leva), por um período entre 30 e 50 anos (já imaginou?), para o desenvolvimento de unidades hoteleiras e turísticas. Ou melhor: este património vai deixar de ser seu/nosso… se deixarmos que aconteça. Vai deixar de o ser, se ficarmos, como a «nêspera» do Mário-Henrique Leiria, à espera que a «velha» chegue e nos coma.
Ainda se lembra do Palácio do Freixo, de Nasoni, no Porto? Lembra-se da Flor da Rosa, no Crato? Hoje, só pagando chorudos montantes por dormidas em quartos de luxo, os poderá conhecer por dentro. Estão nas mãos do grupo Pestana. Contemple-os de fora e já vai com muita sorte. O que lhe digo é isto: esteja de olho bem aberto. Nesta volta que vai fazer e nas próximas.
E, para já, sonhe. Sonhe e lute pelo seu sonho. Que tal pensar, por exemplo, na Fortaleza de Peniche como um verdadeiro museu público da Resistência, com um espaço expositivo condigno e dinâmico, com um auditório e um centro de documentação modernos, com uma livraria temática, com um serviço educativo que sirva as escolas de todo o país, a nossa população infantil e juvenil, a educação de adultos… Sonhe com um museu que seja, em simultâneo, um factor de atracção à emblemática Peniche, um pólo de dinamização económica e cultural da cidade, e de educação para a cidadania democrática. Lembre-se que o forte é a prisão-símbolo do regime fascista, por onde passaram cerca de dois mil presos políticos até ao 25 de Abril. Lembre-se que Peniche está inscrita (ou deveria estar) na memória de todos os democratas e antifascistas, de todos os amantes da liberdade. Lembre-se, lembre-se, lembre-se – e, se puder, resista à mercantilização do património e lute pelo seu sonho, pelo que é justo e digno.
A grande MPB: Porto, Estoril, Lisboa, Guimarães
No passado dia 26 de Setembro, assinalou-se o Dia pela Abolição Total das Armas Nucleares, decretado pela ONU. Nesse dia, fui ler o magnífico poema A rosa de Hiroxima, que Vinicius de Moraes escreveu no Rio, em 1954:
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Disse: ler. Mas também fui ouvir. Sim, a bela canção que os Secos e Molhados , de Ney Matogrosso, gravaram em 1973, tendo por letra estes impressionantes versos. E estou a dizer-lhe isto, porque poderá ver e ouvir precisamente Ney Matogrosso, com a sua voz única, no dia 2 de Outubro, no Coliseu do Porto, e a 4 e 5 de Outubro, no Casino do Estoril.
Já percebeu certamente que aqui a casa tem uma simpatia muito especial pelo Brasil, pela sua literatura, pela sua música. É verdade. Confessa-se o «crime». E por isso lhe aconselho ainda que não perca estes outros espectáculos: Zélia Duncan & Zeca Baleiro, no Coliseu do Porto, a 7 de Outubro, e no Campo Pequeno, a 8; Ana Carolina & Seu Jorge, a 28 de Outubro, na Meo Arena, em Lisboa, e a 29 no Multiusos de Guimarães; Djavan, a 4 de Novembro, no Campo Pequeno e, a 6, no Coliseu do Porto. Um festival de grandes vozes. Dir-se-ia que, neste Outono, a MPB tem boa parte do seu palco em Portugal, não é?
Garbarek, em Lisboa
Quem fala de música brasileira não esquece as magníficas colaborações de Egberto Gismonti com Ian Garbarek, o grande saxofonista norueguês. Pois bem, vai poder escutá-lo e vê-lo, com o seu grupo, no Centro Cultural de Belém, no dia 11 de Outubro. Se puder, não perca. O seu coração, os seus ouvidos, o seu corpo agradecem.
E agora um passeio. Um passeio irrecusável… Sim, no Porto
Ora aqui está uma boa ideia: o novo turismo, não «gastronómico», não «religioso» (Deus me ilumine para descobrir que diabo será isto), mas sim democrático e revolucionário. Leio então no programa: «O 25 de Abril no Porto: roteiro de uma Revolução é uma visita guiada pela história do período revolucionário na cidade, que propõe aos participantes uma viagem a seis lugares que, repletos de história(s), se afiguram hoje incontornáveis para a compreensão da experiência revolucionária do povo portuense.»
É um evento a ter lugar no próximo dia 8 de Outubro, sábado, pelas 15h. O roteiro contará com vários oradores convidados: Jorge Sarabando, Vítor Ranita, o jurista José Afonso, Silvestre Lacerda, Manuela Abreu Lima e António Madureira. Lê-se ainda no programa: «Ao longo do percurso, os oradores convidados reavivarão estórias sobre um conjunto de experiências que marcou determinantemente o curso da história: partindo das questões militares, será abordado o papel dos sindicatos e da rede terrorista de extrema-direita que os atacou, passando pelo poder local e pelo papel desempenhado pela Comissão Administrativa da Câmara Municipal do Porto em favor dos moradores pobres da cidade, não esquecendo o movimento associativo estudantil e o papel dos agentes e instituições culturais da cidade. No final, recordar-se-á a luta dos moradores por uma habitação digna, contextualizando a importância de organizações como o Comissariado para a Renovação Urbana da Área do Barredo/Ribeira (CRUARB) e do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL).»
A visita inicia-se às 15 horas no Quartel-General do Porto, passando pela antiga sede da União de Sindicatos do Porto, pela Câmara, seguindo pela Reitoria da Universidade do Porto e descendo para a Ribeira pelo Passeio das Virtudes, o que permitirá a passagem pela Cooperativa Árvore. «A preservação e recuperação da memória colectiva acerca da Revolução, bem como o aprofundamento do conhecimento em relação à mesma, oferecidas neste Roteiro, são um convite irrecusável à participação de todos.»
O evento é livre, solicitando-se apenas aos interessados a informação da sua participação para o endereço [email protected]
Grande teatro no S. João do Porto e, claro está, grande pintura moderna, também no Porto
Quando estiver a ler este roteiro, já terá sido inaugurada, em Serralves, a aguardada exposição Joan Miró: Materialidade e Metamorfose, comissariada por Robert Lubar Messeri, especialista na obra do artista catalão. O projeto expositivo na Casa de Serralves foi elaborado por Álvaro Siza Vieira. Sim, são os Mirós que eram do BPN e que Passos Coelho e o seu governo queriam passar a patacos. Afinal ficam cá. São nossos. Pelo menos por enquanto. Não deixe de os descobrir e, posteriormente, de ir à procura (em livros, na internet, em Barcelona, noutros locais…) de outras obras significativas de Joan Miró.
Vá-se preparando entretanto para um espectáculo que está a gerar expectativa: Os últimos dias da Humanidade, baseado no famoso texto do austríaco Karl Kraus (1874-1936). Encenação de Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso, tradução de um eminente germanista, António Sousa Ribeiro, professor da Universidade de Coimbra. 21 actores para este «carnaval trágico», como se lê no programa. Consulte a página do S. João porque o calendário é complexo. Com efeito, este espectáculo intencionalmente desmesurado compreende, na totalidade, três sessões distintas mas complementares umas das outras: I: Esta Grande Época (27, 30 Out.; 4, 9, 12, 17 Nov.); II: Guerra é Guerra (28 Out.; 2, 5, 10, 13, 18 Nov.); III: A Última Noite (29 Out.; 3, 6, 11, 16 Nov.). Só lhe posso recomendar, com a necessária antecedência (até para poder ir programando estas suas idas ao teatro): não perca esta produção – uma aposta inusual, sem dúvida, no teatro português, e por isso merecedora de atenção e apoio.
Preciosidades cinematográficas em serviço público
Se está em Lisboa ou perto, ou se planeia alguma viagem à capital, não se esqueça nunca das preciosidades cinematográficas que invariavelmente tem à sua espera num inestimável equipamento cultural do Estado português: a Cinemateca. Consulte a programação e repare, por exemplo que pode ver Cidade Viscosa (1972), de John Huston, a 3 de Outubro, Subida al Cielo (1951), de Luís Buñuel, a 4 de Outubro, Se Eu Fosse Ladrão… Roubava (2012), de Paulo Rocha, a 6 de Outubro, ou A Filha de D’Artagnan (1994), de Bertrand Tavernier, a 8 de Outubro.
Ainda as imagens, mas em Braga. E as marionetas de novo, no Porto
Registe: em Braga, decorre até 5 de Novembro uma nova edição dos Encontros da Imagem, aparentemente o único grande festival de fotografia e artes visuais do país com uma dimensão internacional, e com um acento em temas da actualidade, como a guerra – apesar de os temas gerais do festival serem a felicidade (oh, que desejo, não é?) e a memória. 200 autores, milhares de fotos, muitos e variados lugares expositivos. Consulte a informação disponível e rume à capital do Minho.
Importa ainda recordar que o Festival Internacional de Marionetas do Porto volta aos palcos da cidade entre 13 e 23 de Outubro, com doze espectáculos que prometem.
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Ah, e os livros
Termino com três sugestões de livros: o belo e graficamente invulgar livro de poesia de Rita Taborda Duarte, Roturas e Ligamentos (Abysmo, 1.ª ed., 2015; já em 2.ª ed. em 2016 – uma surpresa), magníficas ilustrações de André da Loba, que, juntamente com Dulce Cruz, a designer, fizeram deste objecto uma verdadeira aventura visual, cheia de pequenos truques e efeitos de estranhamento. À altura dos textos, acrescente-se.
Uma poesia que faz com que nos percamos e ganhemos nos seus textos, belos e estranhos, mas sempre sedutores: «o poema olha a imagem, já seca e enrugada. Diz-lhe, sorrindo, sorrindo sempre muito: ‘Que bonito!’, uma fotografia e toda em verso branco. // E perguntou-lhe, enfim, enquanto sorria em decassílabo: / – E sempre esteve morta, esta tua natureza?» (p. 55). E tudo isto, apetece-me hoje acreditar, porque «só se pode ser poema no outono», como declara o título da composição da p. 31. Uma meditação sobre o amor que é também, por vezes, uma meditação sobre a própria escrita – e sobre muitas outras coisas. Já que esta poesia merece que nela nos demoremos. Tal como as imagens que a acompanham.
E as religiões, pois claro. Venho sugerir-lhe, desde já, um livro que ainda não terminei, mas que já está a surpreender-me: pela reflexão – que me parece aprofundada, cultural e historicamente fundamentada – que é proposta sobre o Islão. Uma reflexão que nos explica muita coisa sobre os tempos de agora e que começa, desde logo, por desmistificar a farsa das chamadas «primaveras árabes». (Já sabemos que, com o devido financiamento, queriam exportar o modelo para outros sítios, não é? E fizeram-no. E fá-lo-ão, se os povos não se opuserem a este movimento trágico.) O livro intitula-se Violência e Islão (Porto Editora, 2016), saiu em França em 2015, e é uma obra bem editada, de leitura corrida e com uma tradução capaz de Manuela Torres, baseando-se nos diálogos entre o poeta e pensador sírio Adonis (nome literário de Ali Ahmad Said Esber), uma figura internacional que veio habitar em Paris a partir de 1985, e a professora universitária de origem árabe Houria Abdelouahed.
Última sugestão: o primeiro volume da Bíblia em grego (Novo Testamento: Os Quatro Evangelhos, 2016), traduzida por um não crente: o escritor, ensaísta, tradutor e professor da Universidade de Coimbra, Frederico Lourenço, que assina a apresentação e as notas. Um belo objecto editorial, diga-se desde já, produzido pela Quetzal, a que se seguirão cinco outros volumes. A ler e a reler – este que é, sem dúvida, um dos mais belos textos literários de todos os tempos. Além de ser todo o resto que sabemos (ou que ainda não sabemos). Boa leitura – que o texto e o tradutor merecem-na.
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