Via Láctea
Cegos o dia e a noite, as mãos errantes e alucinadas
conhecem na extrema proximidade entre água e água
uma longínqua constelação na cegueira fulgindo.
É quando a matéria do mundo em ondas nos dança
e então um no outro se entrança o corpo comum de dois
os seus raios disparando as inúmeras almas. Vermelhas
fotografias ondulam no pequeno e vermelho mar violeta
na câmara escura onde nadamos. E nadando rodamos
para o mais longe o mais dentro de nós: Lá onde
entre ti e mim uma fronteira cede e não somos já
quem éramos; alguém rodando alguém voando o vivo.
Assim cruzam as suas revoluções os astros:
Esta é a gravitação enlouquecida dos átomos no sangue
o turbilhão nos lugares de um corpo inventado
na mesma língua, noutra voz: a música de uma árvore
que é o sol nascente na tua boca iluminada.
As mãos e a língua os dedos as unhas os dentes escrevem
a pele e acordam o cérebro do amor: a floresta arenosa
onde te perdes enquanto o mundo docemente se vira para
o outro lado. Para o lado em que o verso sem medida
bate aos ouvidos da noite que se inclina e roda; para o lado
de onde ouvimos a noite americana: selvagem no coração-,
a noite de África e da infância, ou a da estepe sem fim, onde
eu era jovem e nascia e tu não tinhas vindo. — Agora venho
e tu estás aí no rio do corredor entre duas portas e emcontraluz
no trémulo limiar em que os mundos se desencontram
e a tua respiração é os mil rumores que a folhagem fazem.
Vejo as claras tempestades : os teus pés na chuva do sol.
Entre a luz que sobe e a luz que cai, um corpo nasce
um corpo acontece como uma vibração uma vertigem do ar
que subitamente mais denso sobre si se dobrasse.
Oiço essa chuva clara em que te ergues, e ardem
os olhos perante as heliografias incandescentes: entre
as tremendas descrições do sol e as gravuras vacilantes
e sobrepostas que o mesmo sol na carne viva imprime.
Quantas vozes numa voz, quanto tempo nesse instante.
E é como se subindo as ervas molhadas eu subisse
tu me subisses até ao rio das pernas navegando,
acendendo nele um músculo que estremece luminoso.
Ou como se sem regresso regressasse àquela artéria
que já na alma trazes de outros longes tatuada.
Por outros corpos escrita: lembro-me de onde ficavam
a nascente dos cabelos, as vértebras encantadas, o sinal
fóssil do insecto de ouro que no âmbar escurecera.
Dobras o cimo de um ombro e vês a onda
Que sobe ao teu encontro, desces agora a queda da água
cais e esqueces-te, longamente te esqueces
do que já escrito fora, lá onde me lês os sentidos perdidos.
Ou seria aí que de uma anca para o ventre descias?
— sim, resvalava pela face oriental de uma duna
até à infindável dobra da virília
e fazia um corpo que fora já o leito de um mar.
Aqui, em dobrando o ilíaco há a bacia hidrográfica
levemente encurvando a enseada
com o monte da deusa sobre o pequeno mar de dentro. O sabor o som o olor
mudando, subindo, rodando: a nossa pequena ilíada.
Ou de entre os seios à garganta seria já outra a travessia?
Ter-se-ia, lá, a segunda mão perdido dos seus dedos?
E a boca que após ela sobe diria delirando mansa as suas
sílabas alumiadas, a albumina o alúmen a luz do lume.
De um sol a outro sol, o suor e o sal, o púbis e a axila
o silvo do sangue; a asfixia feliz da alegria e os sismos
que abalam os corpos em guerra até à paz perpétua.
Ou não me lembro. Ou és tu agora quem me escreve.
Das espáduas, de onde veremos as águas nascendo
altas para lá das árvores — ao pescoço que me estremece
-subindo eu até à trémula glória da nuca e àquele luar
que se acende quando os teus lábios os olhos me fecham.
-Reconheço a língua que me humedece os cílios
ou contra os dentes me diz a concha interior e
o períneo que me deslizas, deslizo como a uma neve nocturna
e quente e eterna até à escura rosa do ânus.
Como se perdida fosse e sem remédio
a memória perdidamente contornas o contorno das nádegas
que intensas se põem tensas: doce pedra frangível.
E eu com a minha mais íntima boca procurando a tua
pronta e devagar como se dançando e rodando fosse
e to devorasse enquanto devagar avanças; sim,
avanço pela alma da rosa vulvar; e mais dentro me desdobras
envaginando o músculo em que pulsa o novo coração:
O animal amante e a coisa amada trocam de lugar
e confundem a voz e os dedos, os sucos e os nomes
que se enleiam, deslizam e afundam na seda acesa
ou no veludo azul em que a noite sobe até à flor do dia.
Os meus céus bivalves movem-se e são as nuvens rosa
em que te pões poente; — dizes pétalas em torno do centro
vazio da rosa; digo cortinas redondas e macias que na alma
escondem e revelam a cena nocturna da sideração vermelha.
Nuvens, pétalas, cortinas que o meu falo t e fala e há uma praia
movente movediça que me sobes, maré que pelo rio da pele
nos invade, até ao teu pescoço alto e junto aos tenros lóbulos,
até ao cérebro em que o olfacto uma flor abre fluorescente.
Na fronteira do verso, subimos até à explosão esplendente
do outro verso: kíríe: e não sabemos já o nome que dizemos.
Escreves o que não lembras. Seria o eco entre fragas e fráguas.
Seria o jacto e o júbilo: A thing of beauty is a joy foi ever.
Tão longa para tão pequena morte, a alegria seria.
O terceiro : o comum de dois é quem fala: Bons condutores
de luz, eis que a condensam e com ela tecem um alpendre
precário sobre a duna perene; onde o mar os filma. E esse filme
é cosa mentale, mas uma coisa atravessada e que atravessa
de um a outro os corpos ambos, no sangue deitando, abrindo
um veneno dulcíssimo, uma doença vazia e lactescente. E então
o novo e impossível vivente diz: Falem. E alguém responde:
Dos joelhos, onde se dobra a onda, à minha cintura vens
venho e fazes tu dançar a árvore da música e os cabelos
da deusa, na estrofe que o oceano antigamente profere
contra o sol, como se dissesse a sua noite: esta é
a noite minha amada, a matéria do amor, o colar em chamas
que aos amantes abraça os rins — de quem as pernas?
os braços de quem? As dele ou os dela, que importa?
quando é aí a onda, o onde nasce a manhã da terra.
É uma pequena pedra que se abre: e é uma rosa
constelada e sem fim. Metamorfose e incêndio: a doce
transformação do mundo. Subir ao nascimento: inventar:
A via láctea. A terra fluvial da manhã. E tudo recomeça:
O anel de água, o delta da vénus incessante, as aves
Manuel Gusmão, Mapas de Assombro a Sombra
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