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Lénine e as artes

O trabalho político e revolucionário não lhe darão tempo para se ocupar das questões artísticas como poderia pretender, mas as questões artísticas nunca lhe foram estranhas nem indiferentes.

Em 1905, durante a primeira revolução, ele (Lénine) teve de passar uma noite em casa de D. Lechtchenko, onde havia, entre outras, uma colecção das publicações de Knachfuss consagradas aos maiores pintores do mundo inteiro. Na manhã do dia seguinte, Vladimir Ilitch disse-me: «Que fascinante domínio o da história de arte. Quanto trabalho para um marxista. Não preguei olho durante a noite, percorrendo os livros um após outro. E lamentei não ter tempo – e não terei provavelmente nunca – para me ocupar das questões artísticas»
A. Lunatcharski, Lenine tel quel fut, Souvenirs de Contemporains, Editions du Progrès,  Moscovo, 1959 II volume, p. 422-426.

O trabalho político e revolucionário não lhe darão tempo para se ocupar das questões artísticas como poderia pretender, mas as questões artísticas nunca lhe foram estranhas nem indiferentes, muito pelo contrário, pelo que teve sempre um grande e directo envolvimento nas questões artísticas e literárias ligadas aos problemas políticos e filosóficos, antes da Revolução Bolchevique e no agitadíssimo período que se viveu depois da tomada do poder pelos sovietes, sempre intransigente em relação aos princípios e sempre politicamente flexível. Há um conceito que é nuclear em todo o pensamento e na acção de Lénine em relação à cultura: «a cultura revolucionária tem que ser o desenvolvimento lógico do acervo dos conhecimentos conquistados pela humanidade submetida ao jugo da exploração capitalista, de uma sociedade de latifundiários e burocratas. Esses são os caminhos e os atalhos que nos irão orientar e conduzir até alcançarmos uma cultura revolucionária»1 o que será mais explícito quando afirma «no capitalismo a cultura é de uma minoria. É com essa cultura que temos que construir o socialismo. Não dispomos de outro material. Queremos construir o socialismo imediatamente, na base do material que o capitalismo nos legou, ontem, hoje, agora mesmo e não com homens criados em estufas, se é que alguma vez podemos ter dado crédito a essas fábulas (...) se não somos capazes de construir a sociedade comunista com esses materiais, seremos uns charlatães».2. É a expressão do pensamento de um revolucionário marxista, conhecedor profundo do pensamento marxista, em consonância com a crítica sem complacências que Marx e Engels fazem do capitalismo sem deixarem de reconhecer, como Engels escreve no prefácio à edição italiana do Manifesto do Partido Comunista, que «o Manifesto presta inteira justiça ao papel revolucionário que o capitalismo representou em relação ao passado». É um tema de uma enorme dimensão e ainda actual que, obviamente, só poderá ser enunciado numa nota tão breve quanto esta.

Antes da Revolução de Outubro

Antes da Revolução, de 1893 a 1917, enquanto debatia as inúmeras questões políticas e filosóficas que se colocavam aos revolucionários marxistas, contra os erros ideológicos de todas as forças políticas que anulavam a intervenção e a acção revolucionária, Lénine refere frequentemente as questões literárias e artísticas, mais as primeiras que as segundas, intimamente ligadas aos problemas políticos revelando um considerável conhecimento sobre esse universo.

Os grandes debates políticos travavam-se entre os marxistas e os populistas, e os seguidores pós-Revolução destes, os socialistas-revolucionários. Os populistas tinham uma presença importante na literatura russa. Nos seus primeiros escritos Lénine polemiza violentamente contra a sua visão da sociedade russa, uma polémica que se irá prolongar durante vários anos. O que critica nos populistas, realçando como uma expressão estética revela uma ideologia política, é a negação que fazem de ser possível uma revolução na Rússia, contra a convicção de Lénine, que haveria de a tornar real, de que era possível uma revolução e que seria o proletariado a efectuar essa transformação. Lénine, no entanto, reconhece que os populistas fazem descrições exactas da realidade russa, cita-as com frequência, enquanto denuncia que na maior parte dessas obras, que expõem a evolução brutal da vida social, as novas formas de miséria ligadas ao aparecimento do capitalismo, se dissimula uma ideologia que prolonga a desgraça que denunciam e julgam combater.

Essas polémicas literárias em que Lénine se envolveu vão adquirir maior expressão com a criação da imprensa revolucionária, Iskra, Vperiod, que considera nucleares para lutar contra os adversários ideológicos do marxismo, para a formação de um partido revolucionário, onde se permitisse a discussão dos diversos pontos de vista: « é impossível conduzir a luta política se todo o partido não puder pronunciar-se sobre todas as questões políticas e guiar as diversas manifestações de luta. Só se poderão organizar as forças revolucionárias, discipliná-las e desenvolver a técnica da acção revolucionária se todas estas questões forem discutidas num órgão central, se forem elaboradas colectivamente certas formas e regras de organização de trabalho, se a responsabilidade de cada membro do Partido perante todo o Partido for estabelecida por intermédio de um órgão central para debater as questões de teoria e de prática (…) devem dar amplo lugar aos problemas teóricos, isto é, tanto à teoria social-democrata em geral como à sua aplicação à realidade russa. A urgência da discussão pública destes problemas, actualmente, não é objecto de dúvida e dispensa comentários, depois do que acaba de ser dito (…) Devemos proceder de maneira a que cada social-democrata e cada operário consciente tenha uma opinião determinada sobre todos os problemas essenciais: é impossível, sem isto, organizar em grande escala uma propaganda e uma agitação metódicas»3. A história da Iskra é inseparável da luta de Lénine para criar um partido revolucionário, onde se retoma o combate às teorias populistas, onde se avolumam as divergências fundamentais entre Lénine, Plekhanov, Trotsky e Martov quanto à organização de um partido revolucionário, que seriam mais evidentes com a publicação de Que Fazer? (Editorial Avante!, 1984). O avolumar de divergências que culminariam na cisão, em 1903, do Partido Operário Social-Democrata da Rússia (POSDR) em Mencheviques e Bolcheviques e que também está na origem do Vperiod como órgão dos Bolcheviques, opondo-se ao Iskra que passou a reflectir as ideias mencheviques e, mais tarde todas as polémicas suscitadas pela plataforma organizada em torno do Vperiod, animada por Bogdanov, quando depois de terem sido reconhecidos pelo plenário do partido, em 1910, como «grupo de edição do partido», tendo recebido do Comité Central os fundos para o seu funcionamento, se recusaram a aplicar as directivas do mesmo Comité, juntando-se aos mencheviques e trotskistas para lutar contra as decisões nele tomadas. Um conflito que se arrastou durante anos, até à sua desagregação em 1913 e à sua oficial dissolução em Fevereiro de 1917, quase sempre em perpétua dissidência com o Partido Bolchevique, com uma ideologia flutuante sem unidade teórica mas, no plano cultural reivindicando-se de uma «filosofia e cultura proletária» que terá expressão depois da Revolução de Outubro.

Os debates sobre o trabalho literário e o papel dos escritores é largamente debatido tanto na Iskra como no Vperiod e se Lénine faz severas críticas aos intelectuais, seus desvios e erros, é porque reconhece a importância que têm na luta contra o czarismo. A sua correspondência com Gorki, que não era membro do Partido, é bem reveladora do interesse de Lénine pelo papel dos intelectuais na luta revolucionária. É também neste período na Novaia Jizn, em 13 de Dezembro de 1905, que Lénine escreve um célebre texto que dará origem a imensos debates e equívocos, pelo que merece atenção mais particular A Organização do Partido e a Literatura de Partido (ibidem, tomo. X, p. 37) que deve ser fundamente analisado até pela especulação que Estaline e Jdanov fizeram desse texto, ignorando propositadamente todos os esclarecimentos feitos por Lénine.

São muitas as polémicas literárias antes da Revolução de Outubro em que Lénine participou. Particularmente interessantes são os seis textos de Lénine sobre Tolstoi, compará-los com os escritos por Plekhanov e Trotsky. Quando Tolstoi fez 80 anos e na celebração da sua morte dois anos depois, coincidiram a direita mais reaccionária, esta com a suprema hipocrisia de continuar a proibir os textos em que o escritor condenava a sua prática política, e os mencheviques que elogiaram Tolstoi «anarquista conservador», para evidenciarem a sua teoria reaccionária da não resistência ao mal pela violência, a fusão mística com a natureza, o culto do trabalho manual. O que é de sublinhar é que Lénine, assinalando todas essas contradições de Tolstoi, manifesta a sua profunda admiração pelo escritor que considera um dos maiores escritores vivos, «um observador e um crítico profundo do regime burguês, apesar da ingenuidade reaccionária da sua teoria». Anota que «se não simpatiza com os nossos objectivos revolucionários, sabemos que é porque a história lhe recusou toda a compreensão dos seus caminhos. Não o condenaremos por isso. Admiraremos sempre nele o génio que viverá tanto tempo quanto a própria arte, e também a coragem moral indomável que não lhe permite ficar no seio da sua Igreja hipócrita, da sua Sociedade e do seu Estado, o que o condenou a ficar isolado entre os seus inúmeros admiradores». Os seis textos de Lénine sobre Tolstoi, são o trabalho teórico mais extenso desenvolvido por um dos fundadores do marxismo-leninismo sobre um escritor. São uma visão crítica da obra de Tolstoi e a apreciação da importância histórica da sua obra, da importância política da sua obra e o que ela significava para a história do movimento social russo. O agudo olhar crítico de Lénine sobre Tolstoi, condenando «o ataque sem cambiantes de certos elementos de esquerda, os quais confundindo Tolstoi e o tolstoísmo, recusam em bloco a obra e a sua ideologia» está claramente a apontar para Plekhanov e Trostsky, entre outros socialistas, que passam por cima de todas as contradições de Tolstoi para, sem negar a sua valia literária, verem nele apenas um reaccionário, um representante da aristocracia, um inimigo do movimento operário. São textos que revelam a atitude revolucionária de um revolucionário marxista intransigente nos princípios e acutilante e flexível nas apreciações políticas e estéticas, de uma sageza crítica rara, o que é particularmente importante para se entender a sua relação com as artes e as letras depois da Revolução de Outubro.

A Cultura, a Educação, as Artes e a Revolução

As fotografias da revolução russa, não só a de 1917, mas também a de 1905, mostram uma curiosa literarização da rua. As cidades e mesmo as aldeias, estão consteladas de fórmulas, como símbolos. A classe que se apodera do poder inscreve em grandes pinceladas as suas opiniões e as suas palavras de ordem nos edifícios de que se apoderam.
Berthold Brecht, Les Arts et la Revolution, L’Arche, 1997

A Revolução modificou as ruas porque mudou as relações entre os homens. Na Rússia Soviética, nos anos da Revolução, em condições políticas e económicas duríssimas, uma guerra civil com a participação activa dos países ocidentais, a penúria imposta por um herdado aparelho produtivo esclerosado que era urgente transformar, a arte respondeu aos novos tempos históricos com um dinamismo sem precedentes nem paralelos. Um movimento que se expandiu em todas as direcções e por todas as disciplinas artísticas.

A arte de propaganda revolucionária, a agit-prop, não foi um género particular, é o principal traço de toda a arte soviética nesses tempos de Revolução. As vanguardas artísticas, com todo o seu potencial criativo inovador, colaboram e coincidem com a vanguarda política, mantendo a sua autonomia relativa, sem se deixarem colonizar pela política mas fazendo dela uma parte activa da sua criação. É uma síntese nunca antes vista nem nunca antes experimentada. A Revolução influencia decisivamente as artes porque é um material vivo impregnado de um espírito social inovador. Em simultâneo, as fronteiras tipológicas entre as artes foram abolidas e os mesmos artistas trabalham em várias áreas. A arte liga-se estreitamente à vida social nos seus múltiplos e complexos aspectos. Contribui activa e conscientemente para a construção de um novo modo de vida e para a educação e instrução artística e ideológica das massas populares, opondo-se à cultura de massas burguesa e às suas propostas de consumo, fachadas de uma falsa democratização da arte. São o caldo de cultura na Rússia Soviética em que se tempera a democratização da cultura e das artes que catalisam uma extraordinária efervescência artística. A literalização das ruas inscreve-se nessa metamorfose radical da vida quotidiana depois de Outubro. O estoirar das velhas estruturas coexiste com uma explosão da criatividade entre artistas, operários, soldados escrevendo música, poemas, peças de teatro, cinema, num enorme esforço de trabalho de agitação e propaganda para motivar as imensas massas iletradas, para as fazer aderir aos ideais revolucionários. Lado a lado trabalham os maiores artistas soviéticos, Meyerhold, Eisenstein, Maiakovski, Malevitch, Rodzchenko, Tatline, Dziga Vertov, El Lissitsky, que melhor compreendiam os objectivos da Revolução, mas também os que dela tinham imagens parcelares, algumas distorcidas como é o caso de Essenine, Chagall, de algum modo Pasternak, até por vezes místicas como em Blok, ao lado de operários, soldados, simples cidadãos, muitos deles iletrados.

Lénine, assoberbado com o trabalho imenso de transformação económica, social e política da Rússia, enfrentando uma situação de grande penúria, a contra-revolução e os revisionismos que minavam a Revolução, tem um papel central na área da cultura e das artes. Refira-se, quando da formação do Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lénine, a integração de um Comissariado do Povo para a Instrução Pública, para o qual indicou Anatoli Lunatcharski. A tarefa não era de somenos: organizar uma educação nova, socialista numa Rússia maioritariamente analfabeta, representar o poder soviético junto dos artistas e intelectuais, um caldeirão efervescente, em que muitos dos empenhados na Revolução se digladiavam violentamente entre si, por opções estético-artísticas inconciliáveis, e muitos outros opunham-se vigorosamente à Revolução. Uma tarefa de vulto dispondo de meios materiais escassos num tempo em que tudo era escasso e tinha que ser muitíssimo bem equacionado.

Lunatcharki definia-se como «um intelectual entre os bolcheviques e um bolchevique entre os intelectuais». As suas polémicas com Lénine são dos tempos de exílio na Suíça. Com formação filosófica, era um homem de imensa cultura, um orador apaixonado e apaixonante. A sua divergência de fundo com Lénine enraizava nas concepções empiriocriticistas que tinha estudado com Averenius e que perfilhava, ainda que com algumas reservas, mas muitíssimo distanciado da violenta e arrasadora crítica feita por Lénine em Materialismo e Empiriocriticismo (Editorial Avante!, 1978), que nunca lhe poupou críticas reconhecendo-lhe todas as suas qualidades, empenhamento na Revolução e dedicação ao Partido apesar das suas indecisões e oscilações. Esse é um dos traços da personalidade de Lénine. Recorde-se, a talhe de foice, que apesar de todas as discordâncias com Rosa Luxemburgo, foi ele que incentivou e apoiou a edição em russo de Reforma ou Revolução (Editorial Estampa, 1972).

O Comissariado do Povo para a Instrução Pública (Narkompros) defrontava-se com inúmeras dificuldades, de que as menores não eram a desorganização entre departamentos, iniciativas mal estruturadas, o recrutamento de recursos humanos com competências culturais e de ensino mas poucas ou nenhumas em matérias de administração, a recusa activa de muitos membros da anterior intelligentsia em colaborarem com os bolcheviques, as estruturas arcaicas que herdara e os militantes mais competentes dos Partido estarem absorvidos pelas tarefas de reconstrução de um país a enfrentar dificuldades desmesuradas. Reinava uma certa anarquia contra a qual N. Krupskaia, ardente defensora do Narkompros, era porta-voz, por diversos departamentos do Comissariado escaparem à sua autoridade. A outra questão central era a do orçamento. Os representantes do orçamento do Conselho de Comissários do Povo criticavam o Narkompros por pedirem o impossível. O apoio de Lénine ao Narkompros e a Lunatcharski, olhado com desconfiança por muitos membros do Partido que ironizavam o seu esteticismo, foi fulcral. O seu orçamento, se relativamente baixo em termos absolutos, era até exorbitante em comparação com outros Comissariados. Foi objecto de várias reorganizações até à ultima, que instituiu o Narkompros como Comissariado do Povo para a Educação e as Belas-Artes. Os primeiros decretos incidiram na reorganização da educação em todo o extenso território da Rússia, defrontando-se com o gigantesco problema de encontrar professores para o realizar. Apesar disso as primeiras realizações, com o apoio directo de Lénine, foram notáveis, como os projectos de jardins infantis, as escolas comunais, maternas e artísticas, os métodos de ensino pedagogicamente revolucionários, um universo rico de experiências, impossíveis de descrever aqui mas em que se deve referir o trabalho, avançadíssimo para a época de Makarenko pelas suas teorias pedagógicas com uma ideia central: «exigir o mais possível do homem e respeitá-lo o mais possível» (Les Problèmes de la Éducation Scolaire Soviétique, Editions du Progrès, Moscovo, 1962).

O programa de ensino afrontava outra questão muito particular que era as dos idiomas locais, das diversas nações que coexistiam no território da Rússia, que muitos queriam normalizar pela imposição de uma língua unificada. Uma questão que imbricava noutra mais vasta, a de uma cultura nacional. A participação de Lénine é decisiva. É contra a ideia de uma cultura nacional unificada que classifica de reaccionária. Sublinhava que «a Rússia é um país misto no aspecto nacional» e que «uma cultura nacional exerce-se em detrimento do povo, favorecendo o nacionalismo burguês» (…) «não se trata de construir uma cultura nacional mas uma cultura internacional para a qual cada cultura nacional contribui apenas com uma parte, a saber, unicamente o conteúdo democrático consequente e socialista de cada uma das culturas nacionais (…) nós somos contra a cultura nacional enquanto palavra de ordem do nacionalismo burguês. Somos pela cultura internacional do proletariado socialista e democrata até ao fim». (ibidem, tomo XIX) Serão as palavras de ordem do Partido Bolchevique: a igualdade em direitos culturais, o direito à identidade de todas as nações no seio do Estado, a recusa da imposição de uma «autonomia nacional cultural» que conduziria a progressivamente anular as culturas regionais pelo seu não reconhecimento enquanto parte activa da cultura de toda a Rússia. Registe-se que, em linha com esta posição de Lénine, no trabalho de alfabetização de toda a Rússia, as línguas das diversas nacionalidades foram protegidas, o seu uso incentivado. Algumas delas, que eram orais, não tinham expressão escrita e só começaram a tê-la pelo trabalho dos linguistas soviéticos. Pela mesma ordem de razões, Lénine opor-se-á à imposição de uma «cultura proletária», mesmo a reconhecer a existência de uma «cultura proletária», como os partidários do Proletkult pretendiam, como mais adiante se referirá.

Outras das grandes questões a resolver pelo Narkompros era a dos monumentos e da riqueza artística da Rússia. Os combates de rua e a guerra civil eram uma ameaça. Os bolcheviques tomaram medidas eficazes para os salvaguardar, empenhando os responsáveis do Partido, os militares e os operários. A palavra de ordem de Lénine era «o povo dos trabalhadores é agora senhor absoluto do país. Além das riquezas naturais, herdou enormes riquezas culturais, edifícios de grande beleza, museus, bibliotecas, colecções particulares. Tudo isso é agora propriedade do povo». A propaganda contra a Revolução de Outubro apresentava os revolucionários como uma horda de bárbaros e de iconoclastas saqueando a velha cultura secular. Há um episódio relatado por John Reed, em Dez Dias que Abalaram o Mundo (Editorial Avante!, 1997) bem expressivo em relação a essa propaganda contra-revolucionária. «A 15 de Novembro, na sessão do Conselho de Comissários do Povo, Lunatcharski rebentou bruscamente em lágrimas, precipitou-se para fora da sala, gritando: É mais forte que eu! Não posso suportar esta destruição monstruosa da beleza e da tradição. No mesmo dia, a sua carta de demissão aparecia em todos os jornais: “Acabo por saber por testemunhas oculares o que se passou em Moscovo. Estão a destruir a igreja de Basílio, o Bem-Aventurado e a catedral Uspenski. Bombardeiam o Kremlin, onde se encontram os tesouros artísticos de Petrogrado e Moscovo, há milhares de vitimas. A luta atinge o último grau de selvajaria. Até onde irá isto? Que pode acontecer mais? Não posso suportar isto. A medida está cheia e sou impotente para deter estes horrores. É-me impossível trabalhar, perseguido por pensamentos que me enlouquecem». Era tudo mentira, as noticias falsas, as fake news, ontem como hoje e no futuro serão sempre uma arma, uma poderosa arma dos reaccionários. Lunatcharski retirará o seu pedido demissão.

Sublinhe-se que poucos foram os antigos monumentos destruídos, mesmo os que eram símbolos do poder czarista, desde que apresentassem valor artístico. No assalto ao Palácio de Inverno os guardas vermelhos foram os primeiros a dar o exemplo, impedindo actos de pilhagem e recuperando os que os fiéis ao czar queriam roubar. Logo a seguir à tomada do Palácio de Inverno foi publicado um decreto a proteger o edifício e os tesouros artísticos aí albergados.

O Narkompros com o apoio do Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lénine, e de várias comissões ad hoc, nomeadas por esse Conselho, inicia o trabalho de inventariar todas as obras de arte, de nacionalizar castelos, galerias, bibliotecas e colecções particulares, de proibir a exportação de objectos antigos e de obras de arte, foi mesmo decidido restaurar alguns palácios e castelos, como o palácio Stroganoff ou o castelo Pavlovsk, o Kremlin que estava devastado antes da Revolução, iniciar escavações arqueológicas. Em Novembro de 1917, por iniciativa de Lénine e do Comissariado do Povo da Instrução Pública, foi criado um colégio para se ocupar dos assuntos dos museus, deram-se cursos de formação para os trabalhadores dos museus. A Narkompros, enfrentando uma penúria generalizada, contradições e polémicas fez, nos anos da Revolução, um trabalho notabilíssimo dirigida por Lunatcharski, a quem Lénine, nunca o poupando a críticas, também nunca deixou de activamente apoiar.

As Vanguardas Artísticas e a Revolução

Alguns aspectos da relação das artes com a Revolução de Outubro já foram referidos. É, como todos os outros aqui mencionados e muito debatidos ao longo dos anos, um tema extenso que tem que ser necessariamente resumido num texto deste género. Uma primeira nota, que merece uma longa reflexão e um longo debate, é o referente às vanguardas artísticas, o que foram e a decadência e o descrédito de tal conceito na actualidade, a sua validade e a sua relação com as vanguardas históricas revolucionárias e políticas. Não é um acaso que na Rússia da Revolução de Outubro se assista à explosão das vanguardas artísticas com toda a sua radicalização, o que colocou problemas e questões novas ao poder político e deu lugar a grandes polémicas, entre as vanguardas artísticas entre si e com o poder dos sovietes. Uma única certeza – com tudo o que as certezas têm e que devem ser sempre questionadas com hipóteses provisórias que as fazem equacionar sempre enquanto certezas relativas do ponto de vista do materialismo dialéctico – estavam empenhadas por inteiro, ainda que muitas vezes não compreendendo a sua evolução, com a Revolução.

As vanguardas artísticas, futuristas, cubo-futuristas, suprematistas, expressionistas, construtivistas, imagistas, etc. reivindicavam uma arte radicalmente nova e mesmo a destruição das obras de arte anteriores consideradas inquinadas pelo gosto e pelas ideias da burguesia. Cite-se a título de exemplo a drástica proposta de Avraámov – um pioneiro da música concreta que pintava filmes virgens para reproduzir os sons assim obtidos e que escreveu uma sinfonia com sirenes e ruídos de rua – que exigia que o Narkompros destruísse todos os pianos para acabar de vez com a música tonal. Noutra trincheira o Proletkult, que queria assumir-se como representante de uma nova cultura proletária, combatia vigorosamente as vanguardas artísticas que não se faziam rogadas em o combater e combater-se entre si. Um ambiente efervescente que no entanto não impedia que todos se concentrassem, cada um a seu modo, a glorificar e propagandear a Revolução, fosse com os lendários comboios de propaganda, fosse com as depuradas linhas e formas de El Lissitsky, com poucas cores, negro, cinzento, vermelho, as legendas inscritas nas figuras geométricas de que o exemplo mais icónico é «Com a Cunha Vermelha derrota os Brancos», fosse com as celebradas «Rosta» de Maiakovski, que com ferocidade caricatural teatralizava os acontecimentos de forma facilmente perceptível. fosse mesmo com o «Quadrado Negro sobre fundo Branco» de Malevitch que decorou as ruas de Vitebsk e que, surpreendentemente, foi base usada extensivamente em toda a Rússia para muitos cartazes anunciando eventos culturais e políticos por muitos autores, a maioria anónimos. Tudo isto se sucedia enquanto os criadores artísticos se digladiavam, chegando muitas vezes a via de facto. Refiram-se as sucessivas humilhações a que Malevitch submeteu Chagall, quando viviam e tinham as suas academias em Vitebsk, que culminou numa carta que aquele dirigiu a Estaline, já no poder, denunciando Chagall como contra-revolucionário, isto depois de ele e os seus discípulos terem invadido e praticamente destruído a academia de Chagall, que se vê obrigado a emigrar. Presume-se a perplexidade de Estaline e Jdanov ao olharem para os quadros suprematistas do revolucionário Malevitch.

É esse ambiente que faz perceber porque é o teatro, onde concorrem diversas géneros de arte, salta para as ruas e a praças, celebrando a Revolução e os seus sucessos, que no 1º de Maio, em Petrogrado os operários tenham construído e exibido no desfile o monumento construtivista de Tatlin à III Internacional, enquanto o de Moscovo era antecedido por uma gigantesca marioneta simbolizando o capitalismo. Tudo isto enquanto o Narkompros desenvolve um projecto muito caro a Lénine, monumentos que celebrassem os revolucionários e personalidades públicas, escritores, poetas, filósofos e sábios, pintores, compositores, artistas, patrimónios da humanidade na luta por outra vida. Uma longa lista em que figuravam, entre muitos outros, Espártaco, Marx, Engels, Bakunine, Marat, Robespierre, Tolstoi, Dostoievski, Gogol, Mendeleev, Rublev, Mussorgski, Chopin, Scriabine. Era um projecto de propaganda monumental-heróica. Foram postos a concurso e o seu resultado decepcionou Lénine, como refere Lunatcharski, no livro já citado: «ora em Moscovo Vladimir Ilitch justamente teve a possibilidade de vê-los, os monumentos eram bastante maus (…) um dia disse-me enfadado, que a “propaganda monumental” dera em nada. Respondi-lhe, referindo-me à experiência de Petrogrado e ao testemunho de Zinoviev. Abanou a cabeça em ar de dúvida e replicou: “isso quer dizer que todos os talentos se reuniram em Petrogrado e que todos os falhados estão em Moscovo?”». Esta primeira vaga de monumentos, dedicados à propaganda, foi tão violentamente criticada pelo Prolekult como pelas vanguardas.

O entusiasmo acendido pela Revolução de Outubro transformou as vidas e teve fortes repercussões na poesia que invade os comícios políticos, as fábricas, as ruas, os cafés. Escreve-se nas paredes ao lado das palavras de ordem. Poetas como Maiakovski, Essenine, Pasternak deram-se a conhecer nesse fervilhar quotidiano, mesmo o simbolista Blok adquire um novo fôlego, surgem os poetas proletários sob a bandeira do Prolekult. Cometem as maiores extravagâncias e o poder soviético mostra para com eles uma rara indulgência, muito pela intervenção de Lénine que dava mais importância ao seu contributo para a Revolução do que as seus excessos públicos, ao seu contributo para os ideais da Revolução do que para as suas propostas estéticas. Benjamin Goriely relata muitos desses sucessos como o dos poetas imagistas que querem imediatamente a celebridade universal, consagrada na própria cidade.


«Substituem nomes ilustres das placas pelos seus próprios nomes (…) A rua Petrokva passou a ter o nome do imagista Marienhoff. O beco dos Camaristas, onde está o teatro Stanislavski, fui mudado para rua Essenine, O Beco da Gazeta passaria a chamar-se Kussikoff. (…) Os cocheiros foram os primeiros a aperceberem-se da coisa. Foi o próprio Essenine que lhes chamou a atenção. Chamou um trem, disse ao cocheiro:
– Leve-me à rua Essenine
– Como disse, perguntou o cocheiro.
– Rua Essenine.
– Essenine, não conheço
– Como? Não conheces os grandes homens da Revolução?
– Mas claro que conheço, responde o cocheiro a tremer, como foi que disse camarada? A rua Essenine, conheço-a mas pode-me dizer o antigo nome da rua.
– Beco dos Camaristas.
– Pois claro que conheço. Como podia eu não conhecer o grande revolucionário Essenine?

Essas brincadeiras valeram aos imagistas uma severa repreensão, mesmo uma ameaça de prisão por Kamenev, então presidente do Comité Central do Soviete, que a relatará a Lénine. Este riu-se a bandeiras despregadas, de modo algum pensou em punir os imagistas: melhor ainda, os seus poemas foram editados.4

Lénine compreendia que o processo em curso implicava as mais amplas massas na criatividade revolucionária e na construção de uma nova cultura num contexto em que iriam surgir projectos extraordinários e reivindicações radicais. Em conversa com Clara Zetkin, referiu-se a esse processo: «O despertar de novas forças, o trabalho com o objectivo de criar na Rússia Soviética uma arte e uma cultura novas, é uma coisa boa, muito boa. O ritmo tempestuoso do seu desenvolvimento é compreensível, mesmo útil. Devemos dar futuro ao que foi, durante séculos, descuidado, nós assim o queremos. A efervescência caótica, as novas consignas febris das aventuras artísticas, consignas que hoje cantam “hossanas” em relação a determinadas correntes da arte e amanhã as “crucificam”, são coisas inevitáveis. A revolução liberta todas as forças ontem amarradas, impulsionam-nas das profundidades para a superfície da vida» (Écrits sur l’Art et la Littérature. Éditions du Progrès, 1969).

No entanto, não estava desatento a esses movimentos que se tinham juntado à Revolução. Os de vanguarda intensificando a sua acção a favor de uma nova arte, criando células literárias e artísticas entre os operários, e o Prolekult criando estúdios, também entre os operários, para impor a «cultura proletária», enfrentando-se não só por palavras mas muitas vezes a murro. Entre todos os que alcançam maior notoriedade estão o futurista Maiakovski e o poeta proletário Demian Bedny. Um é o grande poeta da Revolução como hoje é reconhecido, o outro é um poeta medíocre que se limita à agitação e propaganda sem grande estro poético, hoje quase esquecido. O julgamento que na altura sofreram por parte de Trotsky (La Littérature et la Révolution, Le Monde em 10/18, 1972) e Lénine, apesar de ambos preferirem Bedny a Maiakovski, é bastante diferenciado. Lénine fá-lo em alguns telegramas a Lunatcharski: «não será uma vergonha votar a favor da publicação do poema 150 000 000 de Maiakovski em 5000 exemplares? Tolice, extravagância e pretensão, tudo isto. Na minha opinião, só um em cada dez desses escritos vale a pena ser publicado, e não mais do que em 1500 exemplares, para as bibliotecas e para os maníacos»

Em benefício de Lénine, refira-se a imensa escassez de papel que deveria ser direccionado prioritariamente para as escolas e para os jornais. Natália Kruspskaia confirma a admiração crítica de Lénine por Bedny. Gorki, conta nas suas recordações o paralelo que Lénine traçava entre os dois poetas. Sublinhava o alcance da propaganda na obra de Demian Bedny, embora dizendo «é um pouco grosseiro. Vai atrás do leitor, em vez de marchar à frente dele». Em relação a Maiakovski «grita, inventa não sei que palavras estapafúrdias. Não é assim, acho eu, não é assim, e é pouco compreensível. Tudo disperso, tudo difícil de ler. Dizem que é dotado? Até muito dotado? Hum, veremos».

Trotsky, brutal em relação a Maiakovski, que considera «um vadio anarquizante, sem qualquer valor poético», tem um imenso entusiasmo por Demian Bedny: «é curioso verificar que aqueles que fabricam as fórmulas abstractas da poesia proletária passam habitualmente ao lado de um poeta que, mais que ninguém, tem o direito ao poeta da Rússia revolucionária» (…) «tem a capacidade de fazer da poesia um mecanismo de transmissão incomparável das ideias bolcheviques» (…) «Demian Bedny não criou, nem criará uma escola: ele mesmo foi criado por uma escola que se chama P.C.R., para as necessidades de uma grande época que não terá igual» (Ibidem, obra citada). Uma formulação no mínimo inquietante por excluir a arte de encontrar aquilo que quer fazer com os seus materiais e instrumentos, para a entregar pura e simplesmente nas mãos da política e dar à política o comando, o que acabava por sancionar a «cultura proletária». Uma concepção diametralmente oposta à de Lénine, que sempre lutou contra as tentativas do Prolekult impor uma «cultura proletária» autonomizando-se do Narkompros. No primeiro Congresso sobre a Educação, em 6 de Maio de 1919, Lénine criticou o Proletkult e os intelectuais burgueses que desdobravam a sua fantasia no domínio da filosofia e da cultura ditas proletárias, «como se a cultura proletária surgisse de uma fonte desconhecida, brotasse do cérebro de alguns que se dizem especialistas na matéria, um total absurdo». A fracção comunista nesse Congresso, liderada por Lénine, votou a submissão do Prolekult ao Narkompros por 166 votos a favor, contra 36, e 26 abstenções. No discurso final, um discurso não previsto, Lénine atacou ainda mais violentamente os teóricos da «cultura proletária» considerando-a um desvario.

Sempre inflexível em relação aos princípios, Lénine foi também sempre um revolucionário flexível nas políticas que os não violassem, o que aplicou coerentemente em relação às artes, nunca aceitando que a política a colonizasse.
 

Bibliografia Resumida

Brecht, Berthold, Les Arts et la Révolution, L’Arche, 1997
Ehrenburg, Ilya, Un Écrivain dans la Révolution, Éditions Gallimard, 1962
Goriely,Benjamin, Les Poètes dans la R'evolution Russe, Éditions Gallimard, 1934
Gorki, Máximo, Lénine, Modo de Ler, 2009
Lénine, Oeuvres Complètes, em 45 volumes, Éditions du Progrès, 1958-1976
Lénine, Écrits sur l’Art et la Littérature, Éditions du Progrès, 1969
Lénine, Obras Escolhidas, em 3 volumes, Editorial Avante!, 1978
Lénine, Que Fazer?, Editorial Avante!, 1984
Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Editorial Avante!,1979
Lunatcharski, Anatoli; Gorki, Maxim e outros, Lénine tel quel fut. Souvenirs de Contemporains, Editions du Progrès, 1959
Palmier, Jean Michel, Lénine, A Arte e a Revolução. Ensaio sobre Estética Marxista, Moraes Editores, 1976
Prévost, Claude, Literatura, Política, Ideologia, Moraes Editores, 1976
Reed, John, Dez Dias que Abalaram o Mundo, Editorial Avante!, 1997
Trotsky, Leon, La Littérature et la Révolution, Le Monde em 10/18, 1972

  • 1. «As tarefas das uniões da juventude», discurso pronunciado no III Congresso das Juventudes Comunistas, in Oeuvres Complètes, em 45 Volumes, tomo 31, Éditions du Progrès, 1958-1976
  • 2. Êxitos e Dificuldades do Poder Soviético, in Oeuvres Complètes, em 45 Volumes, tomo 29, Éditions du Progrès, 1958-1976
  • 3. Lénine e la Presse, Lénine, Oeuvres Complètes, em 45 volumes, tomo 4, Éditions du Progrès, 1958-1976
  • 4. Benjamin Goriely, Les Poètes dans la Revolution Russe, Éditions Gallimard, 1.ª edição 1934, citado Jean Michel Palmier em Lénine, A Arte e a Revolução. Ensaio sobre Estética Marxista, Moraes Editores, 1976.

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