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Cem anos de Bauhaus (II)

Em 1 de Abril de 2019, comemoram-se cem anos da fundação da Bauhaus, cuja importância continua a marcar e a influenciar a história das artes, da arquitectura e do design. Celebre-se olhando criticamente a sua história.

Pavilhão da Alemanha para a Exposição Universal de Barcelona, 1929. Projecto de Mies van der Rohe,
Créditos / Jamie Strong

Em Janeiro/Fevereiro de 1928, quando Walter Gropius anuncia a sua demissão, a Bauhaus funcionava já no seu novo edifício e a escola estava no auge da sua fama e reputação internacional. Uma decisão inesperada, que surpreendeu mestres e alunos. O argumento era que a Bauhaus tinha alcançado a sua segurança – o que era incerto – e que queria dedicar mais tempo à arquitectura. Na verdade, ia abrir um atelier com Adolf Sommerfeld1, com a garantia de projectar a terceira fase de construção de Törten, um projecto que tinha sido iniciado na Bauhaus. Alguma surpresa causou a indicação por Gropius de Hannes Meyer.

O director ignorado da Bauhaus

Meyer era um arquitecto suíço com fortes convicções comunistas, que tinha trabalhado para o movimento cooperativo – que então procurava abrir caminho entre o capitalismo e o socialismo. Nos anos 20 juntou-se a um grupo que era dominante no jornal de arquitectura suíço ABC Beiträge zum Bauen constituído por Mart Stam, Hans Schmidt e El Lissitsky e outros importantes artistas vanguardistas inspirados no movimento holandês De Stijl (O Estilo) e no construtivismo soviético, que defendiam uma arquitectura radicalmente funcional que rejeitava o conceito de «arte». Meyer tinha um perfil intelectual e ideológico oposto a Gropius, que durante meses andoua à procura de alguém para dirigir o departamento de arquitectura. Mart Stam foi a sua primeira escolha mas recusou, indicando Hannes Meyer. Os dois tinham visitado a Bauhaus. Meyer não escondeu as suas críticas aos trabalhos expostos durante a inauguração da escola em Dessau. Considerou-os «sectários e estéticos». Gropius, guardando as suas distâncias em relação a Meyer, ficou sobretudo impressionado pelo seu projecto para o edifício da Liga das Nações, «espectacular e revelador de uma experiência prática invulgar». Foi nesse contexto que Meyer aceitou o convite para dirigir o departamento de arquitectura, não ocultando as directivas que ia implementar: «o fundamental do meu ensino será absolutamente dirigido ao construtivismo-funcional». A dirigir a Bauhaus tinha que encontrar soluções para os problemas económicos que a escola enfrentava. As críticas a Gropius foram fortes: «durante 3/4 de um ano não fizemos mais do que teoria no departamento de arquitectura e temos que estar sentados a olhar, enquanto o atelier de Gropius está permanentemente cheio de trabalhos».

«Necessidades do povo primeiro, luxo depois», foi a máxima de Meyer para reformar a Bauhaus, introduzindo alterações organizativas fundamentais nas oficinas procurando a maior rendibilidade possível, a auto-administração de cada célula, princípios de ensino produtivo. Se Gropius tinha declarado que o objectivo principal da Bauhaus era desenvolver projectos para os bens industriais, Meyer deu um passo em frente orientando a Bauhaus para projectar objectos que se adaptassem às necessidades do povo. Queria que se criassem um número restrito de objectos, de produtos standard que sendo produzidos em massa estivessem ao alcance do maior número possível de compradores. Colocava ao processo do design uma situação nova, alterando a máxima de Gropius de que todos os objectos tinham uma natureza própria, «restringidos a formas e cores típicas, universalmente compreendidas» para o design não ser o estudo das naturezas mas sim o das necessidades. Obteve grande êxito, sobretudo no design de mobiliário, com recurso a materiais mais baratos, de muito maior flexibilidade por poderem ser dobrados, articulados, ajustados e armados em várias posições diferentes. Foram conquistas significativas e pela primeira vez, em 1929, os objectos, tanto os das oficinas de carpintaria como os das oficinas de metais, a que se adicionaram padrões têxteis e de papel de parede produzidos pela Bauhaus, tornaram-se lucrativos.

Outra grande alteração introduzida por Meyer foi a de organizar os alunos em «células cooperativas», incluindo seniores, juniores e novatos na mesma brigada, um modelo que, segundo ele, substituía o arquitecto tradicional, formando equipas criativas em que mesmo os alunos eram remunerados, pagando assim as suas propinas. Vários foram os projectos realizados por essas equipas, os mais significativos dos quais a Escola Estatal para a Federação dos Sindicatos de Bernau e o seu equipamento, a expansão do Bairro Törten, onde pela primeira vez o acesso às casas foi feito pelas varandas, para incentivar as relações de vizinhança da urbanização com o mundo exterior, as cozinhas protótipo para a Reichsforchungsgesellschaft (de Reich Research Society, em Reich Research Society for Efficiency in Building and Housing) e o protótipo de apartamentos populares com 50 metros quadrados – que foram um grande êxito. Meyer reorganizara e redireccionara os propósitos da Bauhaus que herdara de Gropius com intenções sociais e políticas, dando prioridade à cooperação e à estandardização. Numa sociedade em que as forças reaccionárias iam conquistando posições, a Bauhaus de Meyer criava grande alarme, a que não era estranho o crescimento das células comunistas entre os estudantes da Bauhaus, o que ampliou um contra-movimento entre alunos e professores que permaneciam fiéis ao princípio de Gropius «não quero saber de política», opondo-se sistematicamente a qualquer proposta do grupo comunista que, na verdade, queria organizar a Bauhaus do modo mais liberal possível, sendo a maioria as suas propostas justificadas e captando o apoio dos estudantes e mestres que não alinhavam nem com um nem com o outro grupo.

Desde o princípio Meyer esteve no centro das intrigas internas dirigidas por Kandinsky e Albers, das calúnias da imprensa de direita, dos golpes políticos do burgomestre Hesse e das autoridades superiores de Dessau, determinados a demiti-lo, o que só não fizeram mais cedo por não terem encontrado no imediato um substituto. De nada valia a Meyer o ter colocado a Bauhaus numa atitude contemporânea em que os critérios sociais e científicos adquiriram importância na elaboração dos projectos, o enorme êxito da exposição itinerante «Dez Anos de Bauhaus», que durante um ano percorreu as cidades de Basileia, Zurique, Dessau, Essen, Breslau e Manheim, contribuindo para o prestígio da escola. Mal conseguiram que Mies van der Rohe aceitasse o cargo de director, com a garantia de ressuscitar a pureza original apolítica da Bauhaus, Meyer foi demitido sem grande alarde, e a maioria das histórias sobre a Bauhaus praticamente o ignoram-no ou mesmo rasuram, para o que muito contribuiu Gropius que nunca lhe perdoou as críticas.

Da ilusão da sobrevivência ao fim da Bauhaus

A Bauhaus começou a viver a grande ilusão de poder sobreviver, apesar da crescente ferocidade dos nacional-socialistas. Dois anos depois, por pressão destes, a Bauhaus foi encerrada. A consumação da vingança dos nazis concretizar-se-ia quando em 1933, com Hitler no poder, a sede da Bauhaus foi suprimida e entregue a uma qualquer organização juvenil nazi, e as coberturas planas projectadas por Gropius foram ocultadas por uma cobertura inclinada na «tradição nacional germânica».

Mies van der Rohe era considerado um dos mais proeminentes representantes da arquitectura de vanguarda. Trabalhara, tal como Gropius, no atelier de Peter Behrens. Famoso era o seu projecto, nos anos 20, de um arranha-céus em vidro. Em 1929 tinha feito um projecto notável que continua a ser paradigmático da arquitectura moderna, o Pavilhão Alemão na Exposição Universal de Barcelona. A clareza da organização espacial dos seus projectos era deslumbrante. Era, segundo as autoridades de Dessau, a pessoa indicada para reinstalar a autoridade na Bauhaus.

Mies van der Rohe cuidava de se apresentar como rigorosamente apolítico. Tanto desenha um memorial celebrando Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht no cemitério de Berlim, que viria a ser destruído pelos nazis, como assina uma moção de apoio a Hitler, ou contribui com Gropius para uma exposição organizada pelos nacionais-socialistas em 1934. Inicia a sua direcção na Bauhaus com um estilo autoritário. Reformula os estatutos obrigando todos os alunos a fazerem um exame de readmissão, que era de facto um meio de calar a contestação dos estudantes, excluindo os mais activos.


Os estudantes deixaram de estar representados no Conselho da Escola, o Conselho de Mestres foi transformado numa Conferência deixando a autoridade final ficar nas mãos do director. Foram proibidas todas as actividades políticas até mesmo fumar. Recorreu à polícia para expulsar estudantes comunistas. A actividade dos ateliers foi suprimida deixando a Bauhaus de fabricar objectos ou fazer parte de contratos de produção de design e de arquitectura, o que deixava os estudantes impossibilitados de ganharem dinheiro extra para subsidiarem os seus estudos enquanto, paralelamente, as propinas foram significativamente aumentadas. O ensino de arquitectura de Mies suprimiu um aspecto fundamental do programa Bauhaus de Gropius, a integração da teoria e da prática, que fora respeitado e aprofundado por Meyer e que tornara a Bauhaus tão notável. Triunfavam a teoria, as relações espaciais e estéticas.

As medidas radicais de Mies para aplacar os políticos reaccionários e os nazis foram, como deveria ter previsto, ineficazes. Os subsídios governamentais à Bauhaus foram drasticamente reduzidos. Em 22 de Agosto, o burgomestre Hesse foi mais uma vez obrigado a incluir na ordem do dia uma petição nazi para o encerramento da Bauhaus. Só ele e os quatro comunistas votaram contra. Os sociais-democratas, como sempre oportunistas, abstiveram-se, argumentando que o seu apoio à escola lhes tinha custado votos. Duas cidades, Magdeburgo e Leipzig, ofereceram-se para receber a Bauhaus. Mies van der Rohe, recusou deslocando-se para Berlim, tentando continuar a Bauhaus como uma escola privada. As malhas da política apertavam-se. O Ministério Público e a Gestapo assaltaram a Bauhaus, selando-a. Mies e os estudantes envidaram todos os esforços junto das autoridades nazis e mesmo junto de Goebels, para que fosse reaberta. Numa derradeira tentativa Mies protestou alegando que «o encerramento da Bauhaus afectava quase exclusivamente pessoas com crenças nacionalistas». A 19 de Julho de 1935 a Bauhaus fechou para sempre as portas. A grande maioria dos seus professores, com destaque para Walter Gropius, Mies van der Rohe e Marcel Breuer, emigraram para os Estados Unidos. Meyer já tinha ido para a União Soviética.

Em 1 de Abril de 2019, comemoram-se cem anos da fundação da Bauhaus. A sua importância continua a marcar, mesmo a influenciar, a história das artes, da arquitectura do design. Continua a ser objecto de estudos e acesos debates, que prolongam aqueles que marcaram a sua existência de 1919 a 1933.

A Bauhaus, abarcando a arquitectura, a escultura, a pintura, o design, numa só unidade, desenvolve-se como um processo de decantação das vanguardas europeias, sintetizando e seleccionando os seus contributos para resolver as exigências da realidade produtiva. Os seus antecedentes são o movimento Arts and Crafts de Morris e Ruskin, as vanguardas soviéticas, sobretudo os construtivistas, o cubismo, o futurismo, o De Stjil. Procura superar os processos artesanais do séc. XIX da Arts and Crafts, do sonho do socialismo romântico de Morris e Ruskin de uma arte feita por todos e para todos, reconfigurando-os no trabalho industrial para ultrapassar as limitações do trabalho artesanal. Reconfiguração que tem raízes em Peter Behrens, que projectou com igual talento a fábrica de turbinas da AEG e as caçarolas aí produzidas, e Henry Van de Velde, o construtor e o primeiro director da Escola Superior de Artes e Ofícios em 1907, onde mais tarde se alojaram ao ateliers da Bauhaus. Impõe uma radical alteração nos métodos de produtividade na arquitectura que seria simultaneamente o instrumento e a imagem de uma nova ordem social. Procura também ultrapassar a questão das vanguardas artísticas seguirem o modelo das vanguardas políticas, o dadaísmo e o surrealismo enquanto expressões singulares do anarquismo, o De Stjil e as vanguardas soviéticas apoiando decididamente o comunismo, vanguardas artísticas que não hesitam em colocar-se explicitamente como alternativas políticas globais que a Bauhaus recusa, embora esteja em linha com elas enquanto opção ética.

A Bauhaus ainda é hoje um arquétipo, um conceito que se internacionalizou na arquitectura mas sobretudo no design, uma área em que se pode considerar pioneira dando continuidade e novo impulso às vanguardas soviéticas. A reforma pedagógica que iniciou é lendária como são lendários os seus mestres Kandinsky, Klee, Feininger, Schlemmer e os pilares da sua metodologia Johannnes Itten, Josef Albers e László Moholy-Nagy, que mudaram radicalmente os currículos escolares em todo o mundo, Walter Gropius, o seu primeiro director, Marcel Breuer e Mies van der Rohe que deixaram marca indelével na história da arquitectura.

A Bauhaus tem um vasto historial de rupturas e contradições que não são suficientes para embaciar a sua importância histórica, mesmo quando os seus herdeiros directos e indirectos sejam responsáveis pelas desastrosas políticas urbanísticas da social-democracia europeia enquanto tentativa de controlo dos movimentos de classe.

Celebrem-se os 100 anos da Bauhaus olhando criticamente para a sua história.

 

Bibliografia

Argan, Giulio Carlos, Walter Gropius e a Bauhaus, Editorial Presença (1984)

Droste, Magdalena, Bauhaus, Taschen (1990)

Forgacs,Eva, Bauhaus Idea and Bauhaus Politics, Central European University Press (1995)

Gropius, Walter, Bauhaus Novarquitectura, Perspectiva (1997)

Huyghe,Pierre Damien, Art et Industrie, Philosophie du Bauhaus, Circé (2015)

Miller, J.Abbott/Lipton, Ellen; ABC da Bauhaus, a Bauhaus e a Teoria do Design, Cosac Naify (2009)

Monier, Anne/Gabet, Olivier; The Spirit of Bauhaus, Thames & Hudson (2018)

Richard, Lionel, Comprendre le Bauhaus, Infolio (2010)

 

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