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Lénine e a eletricidade

Durante o VIII Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, foi avançada a importante e muito divulgada tese: «O comunismo é o Poder Soviético mais a eletrificação de todo o país»

Isba (habitação camponesa) electrificada na aldeia de Botino, em Shatura, a leste de Moscovo (1925). Em Shatura foi construída, em 1920, uma das primeiras centrais termo-eléctricas do poder soviético. As lâmpadas eléctricas eram chamadas, pelos camponeses, «lâmpadas de Ilitch» (patronímico de V. I. Lénine)
CréditosArkady Shaikhet / russiainphoto

Em 1920, num período crucial para a transição russa em direção a um Estado socialista, a segunda revolução industrial, ou, numa nomenclatura preferível, a segunda fase da revolução industrial, encontrava-se num período de crescimento exponencial.

A Rússia pré-revolucionária, ao contrário da imagem de rusticidade atrasada muito vulgarizada, tinha um nível médio de desenvolvimento capitalista e tentava passar à fase monopolista. Nesse sentido, importa sublinhar que aquele imenso país se encontrava em quarto lugar quanto à produção industrial, acima da Itália a da Áustria-Hungria1.

E, já então, os representantes da metafísica idealista e burguesa, afirmavam que as novas descobertas científicas, como a radioatividade e a estrutura subatómica complexa, punham em causa o conceito de matéria e das conceções filosóficas e políticas materialistas. Lénine respondeu-lhes2 esclarecendo que a categoria filosófica matéria não inclui características concretas (físicas, químicas, biológicas, etc.,), e que a única propriedade a cujo reconhecimento o materialismo está ligado é a «propriedade de ser uma realidade objetiva, que existe fora da nossa consciência...».

Trazer aqui este tema apenas significa a sugestão de que as atuais correntes de pensamento económico neoliberal que, baseando-se na desmaterialização cibernética, nas aplicações produtivas da designada inteligência artificial e nos vetores informáticos suporte de uma comunicação universal instantânea, defendem a caducidade das lutas sociolaborais e das soluções socioeconómicas socialistas, têm uma matriz velha de cento e cinquenta anos.

Como consequência do poderosíssimo intervencionismo estrangeiro perpetrado na Rússia revolucionária em articulação com a ação contrarrevolucionária interna, que conduziram, no seguimento da retirada russa de um contexto europeu beligerante, a uma terrível guerra civil, a grande indústria russa produzia, em 1920, sete vezes menos do que em 1913. A população sofria grandes privações e carências3 não havendo pão e muitos bens de primeira necessidade.

Depois de derrotada a ingerência inicial dos EUA, Grã-Bretanha, França e da marionete polaca, era vital colocar o acento tónico na atividade económica, e, em particular, na reestruturação agrária, na produção de bens de equipamento e na infraestruturação de base. Já durante a trégua que ocorreu no início de 1920, Lénine referia-se à importância nuclear da transformação económica baseada no desenvolvimento técnico-científico.

Assim, durante o VIII Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, foi avançada a importante e muito divulgada tese: «O comunismo é o Poder Soviético mais a eletrificação de todo o país»4.

Lénine, através desta fórmula sintética e genial, apontava as condições políticas e económicas fundamentais para a construção de uma nova sociedade. Talvez o líder revolucionário, pouco dado a espontaneísmos, tenha pensado na fórmula quando, sob um candeeiro de luz elétrica, conversou com camponeses de Kachino.

O poder revolucionário soviético considerou, muito justamente, que a grande indústria produtora de bens de equipamento, designadamente tratores, era a chave para a reorganização socialista da agricultura.

A produção e o transporte, baseados na eletricidade «serão o primeiro degrau no caminho para a organização comunista da vida económica da sociedade», afirmou Lénine a um correspondente americano do jornal The World.

Em função da necessidade técnico-material de eletricidade foi lançado o GOELRO5 (Plano de Estado de Eletrificação da Rússia), o primeiro instrumento de planeamento de longo prazo da república socialista, neste caso com um horizonte apontado para quinze anos. Tratava-se de um plano muito amplo e arrojado num país arruinado e faminto que, muitos, dentro e fora da Rússia, consideraram irrealizável, designadamente porque, argumentava-se6, se tratava de um vastíssimo e plano país, sem recurso hidroelétricos significativos, sem capacidade técnica estruturada, boicotada quanto aos necessários financiamentos e, para mais, recheada de «camponeses analfabetos».

Contudo, o VIII Congresso aprovou-o e, quinze anos depois, a meta apontada no GOELRO foi ultrapassada em quatro vezes.

Nesta senda histórica, o carvão, o gás e a eletricidade de origem nuclear tiveram, e continuam a ter, um papel muito importante, até porque, devido aos já referidos fracos recursos hídricos transformáveis em energia elétrica, eram as fontes primárias que de forma objetiva podiam ser utilizadas. Tal como o petróleo, este mais reservado aos transportes e à indústria petroquímica.

Ainda hoje a hidroeletricidade significa apenas 18% da produção russa, e a termoelétrica baseada no gás natural e no carvão tem uma grande componente de produção combinada de calor e eletricidade. O electronuclear significa, através de 30 reatores, 17% da produção de eletricidade. Não obstante, Chernobil.

Neste imenso país, que produzia, em 2018, 725 mil milhões de m3 de gás natural, 440 milhões de toneladas de carvão e 1 000 milhões de megawatt-hora (MWh) de eletricidade, também se verifica uma grande pressão no sentido da utilização das fontes limpas e renováveis. Talvez porque o Sr. Al Gore, a Sr.ª Merkel, a jovem Greta Thunberg, além do incontornável o lóbi português das renováveis, onde agora pontua o CEO da EDP de braço dado com o ministro Fernandes, estão muitíssimo preocupados com a deriva climática antropogénica.

Ou será, que o grande objetivo deste multifacetado naipe de militantes e empreendedores, uns idealistas e outros pragmáticos ou oportunistas, são os lucros e os dividendos, bem como a reciclagem do cansado neoliberalismo?!

Quem pode propor, com seriedade e os pés assentes no chão da realidade natural e económica, proceder a uma tão grande substituição de fontes energéticas num curtíssimo período histórico, para mais à custa da enorme destruição de capital não amortizado e do abandono precoce de vitais recursos ainda em plena vida económica?

Mesmo dando por adquirida a existência de alterações climáticas derivadas das atividades socioeconómicas, e que se considerasse provado cientificamente que tais alterações são lesivas dos interesses e da segurança das sociedades humanas a médio e longo prazos, será que, através das asfixiantes propostas de transição neoliberal feita a mata-cavalos, o bem comum é salvaguardado de forma equitativa em termos mundiais? Na escala de pungentes necessidades humanas é a transição hipocarbónica que tem a prioridade? Por que motivo?

Necessário é saber que os principais gases com efeito de estufa, em particular os CO2 e o vapor de água, não são poluentes. E que, nas atuais formas de produção de eletricidade por via térmica, há soluções tecnológicas economicamente viáveis para afastar com elevado grau de eficiência a poluição por partículas, SOx e NOx.

E, o que diria sobre esta candente polémica, Lénine, se cá estivesse?

Partindo daquilo que o pensador e revolucionário produziu, mesmo procedendo à necessária adaptação que o passar dos tempos e o evoluir técnico-científico impõem, não é de crer que a solução passasse por montar painéis fotovoltaicos ou geradores eólicos em cada kolkhoz e, não obstante, interligá-los através de uma rede inteligente que permitisse fazer negócios com este bem fundamental.

É que, em matéria de revoluções, políticas e tecno-económicas, é sempre necessário ter em conta a realidade objetiva e, sobretudo, que a as transições não sejam operadas à custa da maioria desfavorecida de trabalhadores em favor dos interesses da minoria capitalista cada vez mais rica.

  • 1. V.I. Lénine, Cadernos sobre o Imperialismo, Obras Completas, Tomo 28, p. 178.
  • 2. V.I. Lénine, Cadernos Filosóficos, Obras Completas, Tomo 29, p. 177.
  • 3. Biografia (Lénine), Edições Avante, p. 400.
  • 4. Notar que esta formulação é diferente de outra muito difundida, «O socialismo é igual aos sovietes mais a eletricidade» que até conta com uma fórmula quase einsteiniana: Socialismo=Sovietes+ Eletricidade.
  • 5. Deriva o seu nome do acrónimo russo da comissão com o mesmo nome, encarregada de o preparar: ГОЭЛРО (Государственная Комиссия по Электрификации России), à letra Comissão Estatal para a Electrificação da Rússia. (N da R)
  • 6. P. ex., disse-o o americano H. G. Wells na sua obra Russia in the shadows.

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