Memória de Adriano, no seu 75.º aniversário

Há vozes que nos chegam do fundo dos tempos, mas que nunca deixaram de estar ao nosso lado. Vozes de ontem que parecem de hoje. E, por isso, o exercício da memória não se torna demasiado difícil e envolve um misto de encanto e comoção. Mas, para os mais jovens, a sensação não pode ser a mesma. Daí este breve testemunho.

Adriano Correia de Oliveira
Créditos / O Castendo

Activo por isso a lembrança das vozes que, ainda adolescente, me ensinaram o que era o fascismo. E o que era ter a coragem de resistir à ignomínia. Antes ainda dos muitos livros que li, e em simultâneo com as mais terríveis descobertas: prisões, tortura, assassinatos, exílio, censura, exploração, analfabetismo... Mais a espada de Dâmocles da Guerra Colonial sobre a cabeça de várias gerações... Vozes que iluminavam a partilha e discussão de ideias, as que abriam horizontes e nos alicerçavam a vida. Melhor dizendo: um lugar na vida.

Três mestres, por excelência, importa honrar por essas «lições», gratuitas e generosas, que chegavam da rádio, quando os censores o permitiam. As que entravam pelo ouvido aberto (o ouvido desperto) e que, mais do que lições, em boa verdade eram senhas de liberdade e sonho sob a forma de canto e música: a esperança num país livre, numa vida melhor. Adriano Correia de Oliveira (1942-1982), José Afonso (1929-1987), Carlos Paredes (1925-2004): os nomes desses mestres da arte de estar vivo, para todos os que, nos anos 60 e 70 do século XX, viviam os verdes anos.

Na voz limpa e de timbre irrepetível de Adriano, vinda do fado e da balada de Coimbra, singrava uma poesia que a minha primeira adolescência nunca tivera ocasião de escutar antes – começando por algumas cantigas populares portuguesas que o cantor comunista, natural de Avintes, soube arranjar e interpretar como ninguém («Lira», «Para que quero eu olhos»…). E era difícil dissociar a voz dos versos e da melodia, fosse ela da autoria do próprio intérprete ou de, entre outros, José Niza, António Portugal, Luís Cília ou José Afonso (Adriano cantou também, recorde-se, a célebre «Menina dos olhos tristes»). Nas suas canções, a fusão da poesia com a música era mais que perfeita. Por isso, aqui desafio os professores de hoje a revelarem aos seus alunos os poderes e mistérios da poesia recorrendo à música de Adriano Correia de Oliveira – que deu voz (é grato lembrá-lo) às palavras de Manuel da Fonseca, Manuel Alegre, António Gedeão, Fiama Hasse Pais Brandão, Urbano Tavares Rodrigues, Reinaldo Ferreira ou da galega Rosalía de Castro (1837-1885), no inesquecível «Cantar de emigração».

Com estas canções cresci, com estas e outras e tantas outras coisas me fui formando, me fui desatando de uma teia de incertezas e de pequenos medos, e me fui agarrando, cada vez com maior firmeza, ao tronco da árvore da insubmissão.

Quando, vencida a noite, Abril enfim chegou, numa festa de luta e cor e claridade, já eu tinha Adriano como um mestre seguro. Melhor direi se disser: como um amigo para todas as horas, para todas as lutas. Alguém que não é preciso conhecer em pessoa, para o saber um amigo. Reencontrado nos Cantos Livres de boa memória. O primeiro foi em 6 de Maio de 1974, e lá estava eu, sentado com alguns milhares, no Palácio de Cristal, no Porto. E lá estavam cantando, em fraterna unidade, José Afonso, Adriano, José Mário Branco, Luís Cília, Fausto, Francisco Fanhais, Manuel Freire, Samuel, Vitorino, José Jorge Letria e Aristides. Adriano, que reencontraria depois nos muitos combates pela justiça, pela sobrevivência da Revolução, pelo socialismo. Um amigo que nem a lei da vida e da morte conseguirá impedir-me de reencontrar. Porque Adriano é, sê-lo-á sempre, um ramo impossível de quebrar. Um ramo da árvore da insubmissão. Ontem como hoje.

Uma sessão evocativa e um poema de Ary

Sábado, 21 de Abril, o Centro Adriano Correia de Oliveira (CACO) organiza uma sessão evocativa, no âmbito do 75.° aniversário do cantor e compositor, que nasceu a 9 de Abril. Será em Vila Nova de Gaia, no Auditório da Liga. Vale pois a pena recordar, a tal propósito, esta bela «Memória de Adriano», que José Carlos Ary dos Santos escreveu para o seu amigo e camarada:

Nas tuas mãos tomaste uma guitarra
copo de vinho de alegria sã
sangria de suor e de cigarra
que à noite canta a festa da manhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra
o que à Terra chamou amante e irmã
mas também português que investe e marra
voz de alaúde e rosto de maçã.

O teu coração de oiro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generoso como a liberdade.

Resta de ti a ilha de um Tesouro
a jóia com as pedras mais antigas.
Não é saudade, não! É amizade.

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