Activo por isso a lembrança das vozes que, ainda adolescente, me ensinaram o que era o fascismo. E o que era ter a coragem de resistir à ignomínia. Antes ainda dos muitos livros que li, e em simultâneo com as mais terríveis descobertas: prisões, tortura, assassinatos, exílio, censura, exploração, analfabetismo... Mais a espada de Dâmocles da Guerra Colonial sobre a cabeça de várias gerações... Vozes que iluminavam a partilha e discussão de ideias, as que abriam horizontes e nos alicerçavam a vida. Melhor dizendo: um lugar na vida.
Três mestres, por excelência, importa honrar por essas «lições», gratuitas e generosas, que chegavam da rádio, quando os censores o permitiam. As que entravam pelo ouvido aberto (o ouvido desperto) e que, mais do que lições, em boa verdade eram senhas de liberdade e sonho sob a forma de canto e música: a esperança num país livre, numa vida melhor. Adriano Correia de Oliveira (1942-1982), José Afonso (1929-1987), Carlos Paredes (1925-2004): os nomes desses mestres da arte de estar vivo, para todos os que, nos anos 60 e 70 do século XX, viviam os verdes anos.
Na voz limpa e de timbre irrepetível de Adriano, vinda do fado e da balada de Coimbra, singrava uma poesia que a minha primeira adolescência nunca tivera ocasião de escutar antes – começando por algumas cantigas populares portuguesas que o cantor comunista, natural de Avintes, soube arranjar e interpretar como ninguém («Lira», «Para que quero eu olhos»…). E era difícil dissociar a voz dos versos e da melodia, fosse ela da autoria do próprio intérprete ou de, entre outros, José Niza, António Portugal, Luís Cília ou José Afonso (Adriano cantou também, recorde-se, a célebre «Menina dos olhos tristes»). Nas suas canções, a fusão da poesia com a música era mais que perfeita. Por isso, aqui desafio os professores de hoje a revelarem aos seus alunos os poderes e mistérios da poesia recorrendo à música de Adriano Correia de Oliveira – que deu voz (é grato lembrá-lo) às palavras de Manuel da Fonseca, Manuel Alegre, António Gedeão, Fiama Hasse Pais Brandão, Urbano Tavares Rodrigues, Reinaldo Ferreira ou da galega Rosalía de Castro (1837-1885), no inesquecível «Cantar de emigração».
Com estas canções cresci, com estas e outras e tantas outras coisas me fui formando, me fui desatando de uma teia de incertezas e de pequenos medos, e me fui agarrando, cada vez com maior firmeza, ao tronco da árvore da insubmissão.
Quando, vencida a noite, Abril enfim chegou, numa festa de luta e cor e claridade, já eu tinha Adriano como um mestre seguro. Melhor direi se disser: como um amigo para todas as horas, para todas as lutas. Alguém que não é preciso conhecer em pessoa, para o saber um amigo. Reencontrado nos Cantos Livres de boa memória. O primeiro foi em 6 de Maio de 1974, e lá estava eu, sentado com alguns milhares, no Palácio de Cristal, no Porto. E lá estavam cantando, em fraterna unidade, José Afonso, Adriano, José Mário Branco, Luís Cília, Fausto, Francisco Fanhais, Manuel Freire, Samuel, Vitorino, José Jorge Letria e Aristides. Adriano, que reencontraria depois nos muitos combates pela justiça, pela sobrevivência da Revolução, pelo socialismo. Um amigo que nem a lei da vida e da morte conseguirá impedir-me de reencontrar. Porque Adriano é, sê-lo-á sempre, um ramo impossível de quebrar. Um ramo da árvore da insubmissão. Ontem como hoje.
Uma sessão evocativa e um poema de Ary
Sábado, 21 de Abril, o Centro Adriano Correia de Oliveira (CACO) organiza uma sessão evocativa, no âmbito do 75.° aniversário do cantor e compositor, que nasceu a 9 de Abril. Será em Vila Nova de Gaia, no Auditório da Liga. Vale pois a pena recordar, a tal propósito, esta bela «Memória de Adriano», que José Carlos Ary dos Santos escreveu para o seu amigo e camarada:
Nas tuas mãos tomaste uma guitarra
copo de vinho de alegria sã
sangria de suor e de cigarra
que à noite canta a festa da manhã.
Foste sempre o cantor que não se agarra
o que à Terra chamou amante e irmã
mas também português que investe e marra
voz de alaúde e rosto de maçã.
O teu coração de oiro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generoso como a liberdade.
Resta de ti a ilha de um Tesouro
a jóia com as pedras mais antigas.
Não é saudade, não! É amizade.
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