|E o mundo é a nossa tarefa

O Sim Contra o Sim

E o mundo é a nossa tarefa é uma escolha semanal de Manuel Augusto Araújo

“Aidez l'Espagne”, Joan Miró, 1937
Créditos

O Sim Contra o Sim

(...)

Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.

A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.

(...)

Cesário Verde usava a tinta
de forma singular:
não para colorir,
apesar da cor que nele há.

Talvez que nem usasse tinta,
somente água clara,
aquela água de vidro
que se vê percorrer a Arcádia.

Certo, não escrevia com ela,
ou escrevia lavando:
relavava, enxaguava
seu mundo em sábado de banho.

Assim chegou aos tons opostos
das maçãs que contou:
rubras dentro da cesta
de quem no rosto as tem sem cor.

Augusto dos Anjos não tinha
dessa tinta água clara.
Se água, do Paraíba
nordestino, que ignora a Fábula.

Tais águas não são lavadeiras,
deixam tudo encardido:
o vermelho das chitas
ou o reluzente dos estilos.

E quando usadas como tinta
escrevem negro tudo:
dão um mundo velado
por véus de lama, véus de luto.

Donde decerto o timbre fúnebre,
dureza da pisada,
geometria de enterro
de sua poesia enfileirada.

João Cabral de Melo Neto

Tópico

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