Dizem os cronistas, jocosos com tamanha invulgaridade, que pode não haver salas suficientes na Assembleia Nacional francesa para acolher a enxurrada de deputados eleitos na super maioria absoluta conquistada pelo partido de Emmanuel Macron nas eleições gerais.
E dizem-no saudando a Macron-mania, uma moda como qualquer outra, saída do nada para «revolucionar o cenário político francês». A partir daqui, as considerações em redor dos fait-divers são ainda mais vazias de conteúdo, pouco importando o facto de tamanha maioria ser obtida com os votos de menos de metade do eleitorado, em favor de um partido que é um projecto pessoal lançado há menos de um ano, sem programa a não ser o de ir andando «em marcha» – sigla EM, tal como EM de Emmanuel Macron, o que, naturalmente, não é simples coincidência. Lembra-nos a História que os regimes «personalistas», ou como lhes queiram chamar, também podem nascer de eleições democráticas.
«Em Marcha» sob o comando de Macron, numa situação de estado de emergência, cuja renovação foi uma das primeiras medidas do novo presidente quando chegou ao Eliseu, tirando proveito do atentado em Manchester praticado por um terrorista formado nas milícias a que também o Estado francês recorreu para destruir a Líbia.
«Em Marcha» sob estado de emergência, sem oposição e num processo legislativo para militarização da Constituição. Aonde conduzirá este caminho?
Apesar das nutridas biografias e das avalanchas de encómios, na verdade sabe-se pouco do político Macron, não devido à sua juventude mas porque há coisas sobre as quais deve conhecer-se quanto baste, ou nem tanto.
Sabe-se que Emmanuel Macron foi ministro da Economia da desastrosa administração de François Hollande; mas desconhece-se quase tudo sobre a sua responsabilidade primeira na elaboração do pacote laboral patronal e anti-trabalhadores contestado nas ruas por centenas de milhares de pessoas e cujas consequências nefastas milhões de cidadãos sofrem já.
Sabe-se que Emmanuel Macron foi eleito presidente e conquistou a gigantesca maioria absoluta com apoio dos principais bancos nacionais, e alguns internacionais, e também da esmagadora maioria dos presidentes das principais empresas do CAC 40, o índice da Bolsa de Paris; desconhece-se quase tudo sobre a participação na sua campanha, como «conselheiros», de enviados da National Endowment for Democracy (NED) e de ex-membros das campanhas de Barack Obama e Hillary Clinton. A NED é uma falsa ONG norte-americana utilizada pelo sistema político de Washington para exportar a «democracia à americana», isto é, apoiar mudanças de regime e mesmo golpes de Estado onde seja conveniente para o complexo militar, industrial e tecnológico. Os casos mais recentes com o dedo desta organização são os golpes na Ucrânia e em curso na Venezuela, a guerra na Síria, as «primaveras árabes» e as «revoluções coloridas» um pouco por todo o lado.
Sabe-se que um dos primeiros momentos da vertiginosa carreira de Emmanuel Macron foi a presidência dos jovens da Fundação Franco-Americana; mas desconhece-se quase tudo sobre a sua presença em 2014, como convidado, na conspiração anual do Grupo de Bilderberg.
Porém, o mais importante do que se sabe sobre Emmanuel Macron, e que raramente se esmiuça nas análises perspectivando as suas actuações, é a defesa, sem piedade, das soluções políticas, económicas, financeiras e militares indispensáveis para a vigência plena do capitalismo selvagem. É esse o conteúdo da expressão «próximas reformas» na boca do novo presidente francês e da sua imensa maioria na Assembleia Nacional, onde não tem oposição. Um quadro permitido, é altura de lembrá-lo, por uma lei eleitoral que subverte os princípios da proporcionalidade e da representatividade. Daí que sejam facilmente identificáveis os objectivos pretendidos por quem insiste em alterar a lei eleitoral em Portugal no sentido da francesa e da britânica, mais gravosa ainda esta.
Como se esperava, as eleições gerais francesas confirmaram o suicídio do Partido Socialista Francês, desejado e trabalhado por altos dirigentes como François Hollande, Manuel Valls e o próprio Emmanuel Macron, ministro que foi de um governo socialista. Esta hecatombe sucede a outras, na Europa e não só, devido a um efeito de dominó que já passou pela Bélgica, Holanda, Grécia, Itália, países nórdicos, Israel, Hungria, Polónia, Croácia, que continua a ameaçar Espanha e tem sob mira o outrora poderoso SPD alemão – agora vergado a uma cumplicidade neoliberal suicida com Angela Merkel.
Até agora salvou-se, para surpresa e desencanto de muitos, o histórico Partido Trabalhista britânico, nas mãos de Jeremy Corbyn, eleito pelos militantes e não pela armadilha das «primárias» – que além de não democrática e contrária aos princípios da existência de partidos, também pode ser auto-destruidora. Raramente se ouve ou lê que os trabalhistas britânicos escaparam à extinção porque se deixaram de «terceiras vias» e foram recuperar valores tão actuais hoje como ontem: a defesa dos trabalhadores e assalariados de todos os sectores, dos sindicatos, dos pequenos e médios empresários, da inclusão social, dos serviços públicos, dos mais desfavorecidos e, de grande repercussão eleitoral, o apoio aos jovens. A recuperação da essência do partido foi, afinal, o grande trunfo de Corbyn.
E, como se pode constatar, a desastrada e reaccionária Theresa May foi logo mendigar uma coligação com o extremismo cristão dos colonialistas da Irlanda do Norte, também chamados «unionistas», cujo ideário político-religioso é comparável ao do fundamentalismo fascista. Assim é o comportamento padrão das direitas.
Macron não necessita de coligações: o PS suicidou-se; a esquerda continua à procura da esquerda através de uma traiçoeira estratégia personalista em torno de Mélenchon que implica o desaparecimento de cena de uma referência como o Partido Comunista Francês (PCF); Macron é a própria direita neoliberal, com um conveniente toque propagandístico de “centrismo”, mesmo mal-amanhado; quanto à extrema-direita, está de regresso ao covil, com o seu espaço cada vez mais ocupado pela maioria nascente depois de o circo mediático asfixiante e macroniano ter feito dela, estrategicamente, um verdadeiro «tigre de papel».
A ascensão de Macron ficará como a primeira completa e bem-sucedida estratégia de resposta à fase actual do regime de selvajaria capitalista caracterizado pelo arrastamento da crise – que os casos avulsos de crescimento soluçante não disfarçam – e o agravamento das contradições entre os principais gestores. A consolidação do absolutismo de uma figura como Macron e o previsível reforço da afirmação de Merkel solidificarão o eixo franco-alemão num quadro de ditadura financeira, monetária, económica e política que se reflectirá em toda a União Europeia.
Sob o poder absoluto dos interesses que manipulam o tecnocrata Macron, a França está «em marcha» para a ditadura política que institucionalizará a arbitrariedade económica e financeira, atropelando o que resta dos direitos laborais, sociais e humanos.
Conjugada com o diktat alemão e do Banco Central Europeu, a situação francesa completa o processo de gestão centralizada da União Europeia em registo ditatorial.
Dignidade, coragem, resistência, energia, ousadia e criatividade são agora como o pão para a boca dos cidadãos dos países da União Europeia.
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