|José Goulão

Catorze certezas da vitória terrorista em Damasco

A nova situação criada em Damasco proporciona condições para que seja dado mais um passo importante na estratégia sionista, dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia, para desmembramento dos grandes Estados seculares do Médio Oriente.

CréditosBilal Alhammoud / EPA

Uma primeira advertência ao leitor. Esta é uma leitura ainda a quente do que está a passar-se na Síria, e as leituras a quente são um risco, principalmente quando se fazem a partir do exterior e sob uma enxurrada de dislates mediáticos que factualmente dizem o mesmo, lugares comuns, e depois espremem a imaginação num combate imbecil travado nos  campos do atrevimento, da mentira e, sobretudo, da ignorância.

Por tudo isto, os leitores que me perdoem algumas imprecisões em relação ao futuro próximo, porque entre as certezas possíveis há muitos elementos factuais em falta.

Uma primeira certeza: o presidente Bashar Assad caiu, essencialmente, porque agravou a situação nos últimos tempos, desde 2015, ao não capacitar o exército nacional para resistir ao crescimento e reforço da capacidade militar, que não eram segredo, da al-Qaida (renomeada Hayat Tharir al-Sham – HTS – por recomendação das forças estrangeiras de intervenção, ocidentais, desejando assim disfarçar o seu apoio directo ao terrorismo da organização fundada por Bin Laden). Além disso, Bashar Assad e os seus comandos militares minimizaram uma situação de guerra que apenas baixou de intensidade a partir de 2017 e num quadro onde 30% do território permanecia em mãos de grupos armados ao serviço de interesses estrangeiros e do objectivo de derrubar o regime.

Assad fragilizou igualmente a sua posição ao rejeitar um projecto de Constituição proposto pela Rússia, na sequência do processo de Astana (participação de Moscovo, Ancara e Teerão), elaborado com respeito estrito pelo direito internacional e as normas da ONU.

Uma segunda certeza: os terroristas da al-Qaida ou HTS, chefiados pelo encartado seguidor de Bin Laden chamado Abu Mohammad al-Julani, deitaram as mãos a Damasco para se apoderarem dos instrumentos do Estado – o mais antigo do mundo – e tentarem assim estender, quando sentirem chegada a altura (se chegar), a sua «lei islâmica» a todo o país.

Terceira certeza: al-Julani e o seu grupo são ainda considerados terroristas pelos Estados Unidos da América (e também pela União Europeia); todas as tentativas de sectores do Estado profundo norte-americano para retirar a al-Qaida, al-Nusra ou HTS, os seus heterónimos, da lista de grupos terroristas foram vetadas pelos próprios órgãos legislativos dos Estados Unidos: Congresso e Senado.

Isso não impediu, contudo, que um al-Julani com a barba bem aparada, um penteado e uma indumentária ao estilo ocidental tenha sido amigavelmente entrevistado pela Voz da América, porta-voz da CIA e do regime norte-americano, para expor o seu novo linguajar e simular distanciar-se – no visual e no discurso – da sua essência terrorista. A biografia deste capo fascista explica que tanto a al-Qaida como o ISIS ou Estado Islâmico lutaram para recrutar o então jovem e prometedor al-Julani, optando este pela agremiação de Bin Laden. E a população da região de Idlib, permanentemente ocupada pela al-Qaida desde o início da intervenção estrangeira, pode muito bem explicar, por experiência própria, o terror que é ser governado por al-Julani.

«Os terroristas da al-Qaida ou HTS, chefiados pelo encartado seguidor de Bin Laden chamado Abu Mohammad al-Julani, deitaram as mãos a Damasco para se apoderarem dos instrumentos do Estado – o mais antigo do mundo – e tentarem assim estender, quando sentirem chegada a altura (se chegar), a sua "lei islâmica" a todo o país.»

Quarta certeza: a queda de Bashar Assad e a tomada do poder por al-Julani – foi isto que aconteceu, por muito que a rede mundial de propaganda tente garantir que não é bem assim – significa uma vitória da intervenção militar dos Estados Unidos, da União Europeia e da NATO, por interpostos grupos terroristas, iniciada em 2011 na Síria. Por outro lado, traduz uma derrota da Rússia, que foi forçada a deixar cair Assad quando este assumiu desviar-se dos contornos da aliança com Moscovo. Além disso, confirmou-se que a prioridade de Moscovo é resolver favoravelmente os problemas criados pelo regime nazi-banderista de Kiev.

Quinta certeza: começa agora verdadeiramente a guerra civil na Síria. Até aqui estivemos perante uma intervenção estrangeira ao serviço dos interesses económicos, geopolíticos e geoestratégicos do mundo ocidental, com os Estados Unidos à cabeça, os quais, pela voz de Donald Trump, no seu primeiro mandato presidencial, admitiram estar a roubar o petróleo sírio.

Tudo indica que será uma guerra civil entre as várias facções que lutaram contra Assad, principalmente as Forças Democráticas Sírias (curdos do YPG e contingentes do ISIS treinados na base de al-Tanf, ocupada por tropas norte-americanas), e o Exército Nacional Sírio (um ramo das forças armadas da Turquia e da NATO), cada uma com as suas zonas de influência. Além disso, há uma nebulosa de grupos e milícias armadas, cada qual com os seus próprios interesses regionais, religiosos e étnicos que não ficarão de fora nos confrontos que irão seguir-se durante o falacioso «período de transição».

As Forças Democráticas Sírias são também militarmente apoiadas pelos Estados Unidos, como a HTS, mas perseguidas pela Turquia, no âmbito da sua guerra contra os curdos, onde quer que eles estejam. Nesta frente específica existe, portanto, uma oposição militar entre os regimes de Washington e Ancara, isto é, uma guerra fratricida no interior da NATO. Na prática, todas estas organizações, incluindo o HTS, são apoiadas pelos Estados Unidos e a NATO, formando o chamado grupo dos «rebeldes moderados» – apesar de nele existir uma facção considerada «terrorista» por Washington. Mais um exemplo da conhecida coerência ocidental, «a nossa civilização».

Uma vitória do procurado Benjamin Netanyahu

Sexta certeza: a tomada de poder por al-Julani significa uma enorme vitória do sionismo comandado por Benjamin Netanyahu, conhecido aliado dos terroristas islâmicos, ao ponto de lhes dar rectaguarda em acampamentos e hospitais no interior de Israel e no sector ocupado dos Montes Golã. São conhecidas as centenas de bombardeamentos aéreos israelitas contra território sírio em apoio do HTS e também no âmbito da sua guerra contra o Hezbollah e o Irão.

Esta vitória do terrorismo islâmico e o previsível fracionamento da Síria abre mais uma via na concretização do objectivo maior do sionismo internacional, a criação do Grande Israel do Nilo ao Eufrates, rio que passa na região Leste e Norte do território sírio. 

Sétima certeza: a queda de Damasco é uma grande vitória da Turquia, no âmbito da teoria expansionista do neo-otomanismo praticada pelo neo-sultão Erdogan. Ancara fica também com o caminho muito mais livre para prosseguir a perseguição contra o povo curdo no interior da Síria.

Oitava certeza: a nova situação criada em Damasco proporciona condições para que seja dado mais um passo importante na estratégia sionista, dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia, para desmembramento dos grandes Estados seculares do Médio Oriente; o objectivo é criar pequenas entidades  de cariz étnico e religioso teleguiadas de fora e inofensivas, facilitando assim a expansão do controlo militar e económico sionista e imperial sobre o Médio Oriente, além de reforçar o domínio económico e o saque das matérias-primas da região, principalmente petróleo e gás natural. Essa estratégia funcionou no Iraque e na Líbia e os resultados estão à vista de todos.

«Começa agora verdadeiramente a guerra civil na Síria. Até aqui estivemos perante uma intervenção estrangeira ao serviço dos interesses económicos, geopolíticos e geoestratégicos do mundo ocidental, com os Estados Unidos à cabeça, os quais, pela voz de Donald Trump, no seu primeiro mandato presidencial, admitiram estar a roubar o petróleo sírio.»

Uma nota a reter: o caso sírio demonstra, uma vez mais, que uma das mais importantes estratégias ocidentais no caminho do globalismo é o desmembramento dos Estados e organizações transnacionais que defendem a vigência do direito internacional e não reconhecem a ordem internacional baseada em regras. A intenção expressa manifestada por círculos ocidentais de fraccionar a Rússia numa miríade de Estados, no seguimento da implosão da União Soviética, teve agora uma confirmação de grande envergadura.

Nona certeza: o mais antigo Estado do Mundo, um mosaico de comunidades, religiões, etnias e confissões, que permaneceu unido e cordato durante séculos, até ao início da invasão ocidental em 2011, segue rapidamente a caminho do desmoronamento e da extinção, não sendo difícil de prever as perseguições e o terror contra comunidades minoritárias, designadamente os cristãos ainda apegados a ritos e tradições do tempo de Jesus Cristo.

Desde o início da agressão ocidental o número de cristãos na Síria desceu de sete para três por cento da população. Em numerosas aldeias cristãs como al-Sukhna, Kanayé, Maloula, Chabadin e Bakha as populações sobreviventes podem testemunhar o terror e os episódios de matanças a que têm sido submetidas pelos grupos ditos islâmicos «rebeldes» e «moderados», no seu papel de procuradores da NATO. Nas três últimas aldeias citadas fala-se ainda o aramaico, língua que era usada há dois mil anos, nos tempos de Cristo.

Décima certeza: a queda de Damasco nas mãos de terroristas sunitas, aliados objectivos do sionismo, encoraja ainda mais o Estado de Israel a desenvolver a tão desejada guerra contra o Irão xiita, outro caminho possível para a guerra nuclear. A transformação e eventual extinção da Síria enfraquece profundamente o chamado Eixo da Resistência, a única entidade que, no panorama internacional e regional, tem feito frente aos desígnios do sionismo internacional e lutado de maneira consequente pela aplicação do direito internacional para que sejam respeitados os direitos inalienáveis do povo palestiniano.

Democracia? Nem vê-la

Décima primeira certeza: da mesma maneira, o Líbano fica ainda mais fragilizado perante o sionismo porque a ascensão sunita na Síria é um golpe muito sério para o Hezbollah, movimento de base xiita responsável pela resistência nacional e pelas derrotas humilhantes infligidas ao Estado de Israel, mantido em respeito quanto às suas ambições em território libanês. Israel pretende ocupar parte do Sul do Líbano como tampão para os ataques contra a região norte do país, a Galileia, além de, a partir de agora, ter praticamente garantido o acesso franco às jazidas petrolíferas recentemente descobertas no Mediterrâneo Oriental e que vem disputando com Beirute, naturalmente com objectivos cleptómanos, perante os quais o direito internacional e o direito marítimo de nada valem.

Décima segunda certeza: o histórico das guerras imperiais, principalmente as mais recentes desde a longa e fracassada intervenção militar no Afeganistão, prova que essas acções terroristas nada têm a ver com a implantação da democracia e a democratização dos países atacados – ao contrário do que rezam a propaganda e a opinião única que nos subjuga ou, pelo menos, pretende subjugar-nos. Olhemos para o regresso dos Talibãs a Cabul, para a situação caótica dos poderes regionais fragmentados no Iraque – com o governo oficial barricado em fortificações para lá da «linha verde» em Bagdade – e para o desaparecimento, em termos reais, do Estado líbio: fica claro o que significam democracia e democratização no discurso ocidental.

Décima terceira certeza: o caso sírio é mais um exemplo do tipo de respeito que os Estados membros das organizações e alianças ocidentais cultivam em relação aos acordos que assinam com partes terceiras. A Turquia estabeleceu com a Rússia e o Irão, em Setembro de 2017 em Astana, um acordo segundo o qual tudo fariam para reduzir a intensidade dos combates de modo a criar condições para estabelecer uma plataforma política capaz de assegurar uma nova, mais pacífica e mais inclusiva realidade nacional síria.

«O histórico das guerras imperiais, principalmente as mais recentes desde a longa e fracassada intervenção militar no Afeganistão, prova que essas acções terroristas nada têm a ver com a implantação da democracia e a democratização dos países atacados – ao contrário do que rezam a propaganda e a opinião única que nos subjuga ou, pelo menos, pretende subjugar-nos.»

O regime de Ancara, ao invés, aproveitou a espécie de limbo criado por este acordo para reforçar o apoio ao HTS e ao Exército Nacional Sírio e criar condições para o levantamento armado com efeitos fulminantes que agora se registou.

Em relação ao acordo de Astana, tal como aconteceu com os acordos de Minsk sobre a Ucrânia, ficou demonstrado que países da NATO, como a França, a Alemanha e a Turquia, e a aliança propriamente dita, assinam entendimentos com outras nações e entidades deliberadamente de má-fé, explorando afinal as decisões orientadas para a procura de soluções pacíficas e as garantias dadas por eles próprios como instrumentos para promover o regresso à guerra com capacidade e intensidade redobradas.

Este comportamento é, como se demonstra, um pilar da essência da NATO. E o regime russo caiu por duas vezes na armadilha em menos de uma década.

Décima quarta certeza: existe uma aliança operacional militar entre o nazi-banderismo do regime de Kiev e os grupos fascistas que se reclamam do islamismo e assumiram agora o poder em Damasco. O regime de Zelenski treinou bandos de mercenários «islâmicos» em território ucraniano para depois se infiltrarem na Síria, recorrendo aos prestimosos serviços dos banderistas do Azov e dos conselheiros da NATO – na «reserva», é claro, presentes no terreno, pelo menos a partir do golpe da praça Maidan, em 2014. A colaboração entre as forças nazis ucranianas e os terroristas ditos islâmicos, sobretudo os oriundos de territórios da antiga União Soviética, remonta pelo menos a 2009, segundo investigações independentes que têm vindo a ser publicadas – e censuradas nos media globais.

Os terroristas na Síria receberam informações sensíveis do GRU, o serviço de espionagem e polícia política do regime de Kiev, conforme revelaram dirigentes desta instituição; além disso, o aparelho militar banderista forneceu drones e meios de guerra electrónica à al-Qaida e afins, que estes utilizaram na etapa decisiva da agressão estrangeira identificando alvos e «cegando» comunicações do exército ao serviço de Assad.

Conclusão a extrair no imediato: a queda de Damasco nas mãos da al-Qaida e seus vários heterónimos representa uma vitória da estratégia ocidental e da NATO, em particular o recurso operacional ao terrorismo dito islâmico, para destruir Estados fortes e seculares do Médio Oriente. Esta vitória foi alcançada contra a corrente da história actual, no sentido da multipolaridade, podendo significar um novo fôlego da ordem internacional imperial e colonial «baseada em regras» para se impôr à instauração global da vigência do direito internacional. Porém, tal como aconteceu no Afeganistão, onde os Talibãs sucederam aos Talibãs vinte anos depois; ou na Líbia, onde o caos montado pela invasão atlantista dificulta a exploração plena pelo Ocidente dos recursos naturais do território; ou no Iraque, onde as forças de ocupação da NATO, entre as quais predomina o contingente norte-americano, não têm um momento de sossego devido aos sucessivos ataques de forças patrióticas, pode acontecer que o êxito alcançado em Damasco não passe de uma patética vitória de Pirro, embora criminosa, devastadora e sangrenta, e o feitiço acabe por virar-se contra o feiticeiro.

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