Os alunos visitaram recentemente os cinco bairros do território da Bela Vista, em Setúbal, para auscultarem os moradores e captarem «imagens demonstrativas da forma como a arte, através da dinamização de vários projectos, tem sido um dos principais factores integradores no âmbito do programa "Nosso Bairro, Nossa Cidade"», informa a Câmara Municipal de Setúbal, através de comunicado.
Há algum tempo que a Bela Vista, em Setúbal, e a Quinta do Mocho, em Loures, deixaram de ser presença assídua nos noticiários... por más razões. O AbrilAbril foi saber porquê. Hoje falamos da Bela Vista. Estruturalmente diferentes, estes bairros de habitação pública têm a uni-los a assinatura de reconhecidos artistas de arte urbana, uma das muitas peças que ao longo dos últimos anos permitiram revolucionar a vida de quem lá mora. Iniciámos esta exploração em território sadino, onde a Câmara de Setúbal e a Junta de Freguesia de São Sebastião têm vindo a fazer um trabalho de maior proximidade com os moradores dos bairros da Bela Vista, Quinta de Santo António, Alameda das Palmeiras, Forte da Bela Vista e Manteigadas, no âmbito do programa «Nosso Bairro, Nossa Cidade». Um projecto de participação e organização popular, com um horizonte temporal de dez anos, onde aquilo que acontece tem por base a vontade dos moradores. O vereador da Câmara de Setúbal com o pelouro das Obras Municipais, Carlos Rabaçal, explica que o conteúdo deste programa de participação política é definido pelos moradores. «Se é mais cultural, mais desportivo, mais social ou mais de reabilitação, são eles que decidem», reforça. Criado em 2012 com o objectivo de coser o território e desfazer a imagem negativa dos bairros, o «Nosso Bairro, Nossa Cidade» permitiu também uma maior aproximação dos moradores aos eleitos da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal, «coisa que neste território andava pelas ruas da amargura». A caracterização, do presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião, Nuno Costa, é explicada facilmente pelo próprio: «Por força de não se resolver uma série de problemas durante anos». Carlos Rabaçal adianta que, «ao fim de tantos anos a fazer este tipo de trabalho para as pessoas, e procurando encontrar as soluções que se pensava que eram as melhores para elas», a situação acabou por se ir degradando. «Tivemos que mudar o paradigma: nós não pensamos no que os moradores precisam, vamos perguntar-lhes e vão eles fazer connosco», indica. Apesar de alguma resistência inicial seguiram-se reuniões com centenas de pessoas com o objectivo de escutar os moradores sobre cada um dos problemas e foram eleitos grupos de trabalho diferentes para trabalhar com a Junta e com a Câmara nas questões que queriam ver resolvidas. E, por isso, este apresenta-se como um programa de capacitação. Identificam-se os problemas e tentam arranjar-se soluções dentro do próprio bairro. No centro estão a organização e o poder dos habitantes, onde cada acção tem uma comissão de moradores previamente eleita. O presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião frisa que o «Nosso Bairro, Nossa Cidade» trabalha com lideranças, ou seja, os moradores que trabalham no âmbito do programa são eleitos pelos seus pares. «Não são nomeados, não são escolhidos, não são aqueles que se evidenciam mais numa reunião, eles são todos eleitos. Portanto, quando é preciso constituir um grupo de trabalho ou desenvolver um determinado projecto dentro do programa, faz-se com moradores eleitos entre os seus pares», realça. E aqui reside, segundo Carlos Rabaçal, o segredo do programa. A chave, não só do funcionamento mas também da mobilização dos moradores, «é o poder que têm de decidir e fazer». Nuno Costa corrobora: «Para além de aprofundar os mecanismos da nossa democracia participativa e representativa, de facto a chave para o sucesso é a participação das pessoas.» A cada ano realizam-se mais de três mil reuniões com o propósito de conversar, discutir, analisar como fazer, avaliar como correu e como fazer de novo. Mas é nos encontros gerais de moradores, realizados anualmente, com uma participação a rondar as 400 pessoas, que são tomadas as decisões fundamentais para o ano seguinte. O projecto «Garrrbage», por exemplo, saiu do segundo encontro de moradores. Criado pelo Grupo de Acção pela Recolha, Reabilitação e Reutilização de Bens Aproveitáveis – Gerações Ecologistas (Garrrbage), apoia a recuperação de móveis através de pessoas «com talento para reparações e recriações, e que queiram dedicar o seu tempo livre a essas actividades». Com o apoio da Câmara de Setúbal, que dá as tintas e os materiais, o grupo vende através da internet, tem uma loja e, afirma Rabaçal, «pode dar um negócio interessante». Para não coincidir com o calendário eleitoral, o quarto encontro geral de moradores foi marcado para Novembro deste ano. Entretanto, no passado dia 7 de Maio realizou-se já uma assembleia geral com o objectivo de avaliar o trabalho dos últimos cinco anos e na qual foi aprovado por unanimidade um documento orientador para os próximos cinco. «Vai ser um instrumento que se vai colar ao documento orientador inicial e o encontro que se realizará em Novembro vai ter em conta as orientações desta assembleia para os próximos cinco anos», explica Carlos Rabaçal. O processo é tão mais complexo pelo facto de haver muitos projectos em curso associados ao programa, sempre com um perfil experimental. Os moradores decidem, realizam, avaliam e reavaliam, enquanto a Câmara e a Junta de Freguesia prestam o seu apoio. O presidente da Junta de São Sebastião congratula-se com os resultados da monitorização dos primeiros cinco anos. «Recolhemos os contributos das pessoas e, de facto, a satisfação é muito grande». Acrescenta que ainda há muito trabalho para fazer, muitos problemas para resolver «mas, em cinco anos, a realidade mudou muito». Entre os aspectos mais marcantes e visíveis dessa mudança está a higiene urbana, um processo encetado com alguma desconfiança inicial por parte dos moradores. O vereador Carlos Rabaçal explica que, até então, havia uma empresa responsável pela limpeza dos pátios, mas que estes «acabavam por ficar sujos na hora seguinte», e daí a desconfiança dos moradores relativamente ao sucesso do projecto. «Mas nós dissemos, deixem-nos experimentar porque achamos que se forem vizinhos, ou se for alguém dos moradores a acompanhar, pode ser que haja outro olhar sobre a limpeza e outro cuidado». Os moradores indicaram nomes de pessoas do bairro interessadas em participar no projecto, foi feita uma parceria com a Associação Cristã da Mocidade (ACM) e, de seguida, as três entidades – ACM, Câmara Municipal e Junta de Freguesia – procederam à selecção dos candidatos. Além da limpeza, a criação destas equipas comunitárias de higiene urbana ajudou a melhorar a taxa de empregabilidade – um dos cinco eixos do programa, mas também a relação comunitária. «Nunca esteve tão limpo», afirma o vereador. O projecto de higiene urbana cresceu e na Alameda das Palmeiras existe também uma equipa de jardinagem. Mas nem só de jardins se compõem os espaços verdes deste bairro. No processo de auscultação, os moradores manifestaram a sua vontade de substituir alguns destes espaços por hortas, dando assim um pequeno contributo à subsistência de algumas famílias. Entre outros espaços cultivados, na cor-de-rosa Alameda das Palmeiras, onde agora reside uma galeria de arte urbana, um conjunto de girassóis surge entre couves, alfaces, tomate, milho e árvores de fruto, entre outras espécies vegetais. A par da formação, educação e emprego, a intervenção com jovens é outro pilar do «Nosso Bairro, Nossa Cidade». E, tratando-se de bairros muito jovens, onde a média de idades – de acordo com os últimos censos – não ultrapassa os 30 anos, a desocupação dos mais novos nas férias escolares era uma preocupação a que urgia dar resposta. Assim nasceu o «Férias no Bairro», acompanhado por técnicos da Câmara de Setúbal e por monitores, que são jovens do bairro formados pela autarquia para esta actividade. «São já perto de uma centena de monitores formados para fazerem essa actividade de férias connosco mas há um núcleo permanente de 30 a 40 monitores que se mantêm no activo», explica Carlos Rabaçal. Desde a sua criação, já terão usufruído deste projecto entre 500 a 600 crianças e jovens de todas as comunidades. Mas desengane-se quem pense que as actividades se circunscrevem ao bairro. Visitas a museus, à Serra da Arrábida, a Lisboa e idas à piscina são algumas das iniciativas definidas neste projecto. Também dirigido a crianças, mas na perspectiva de acentuar o sucesso escolar, arrancou recentemente no bairro da Alameda das Palmeiras um projecto de apoio ao estudo, uma das actividades que terá lugar nos espaços «Nosso Bairro, Nossa Cidade». Recém-criados, estes são espaços geridos pelos moradores para aí desenvolverem as suas iniciativas. Entretanto, está a ser desenvolvida uma outra ideia dos moradores. Ainda sem nome definido, perspectiva-se como um centro cultural e da juventude, onde deverá funcionar o Observatório da Bela Vista. A par deste, prevê-se que este novo espaço integre uma zona de espectáculos, ateliers, um estúdio de gravação, uma televisão e uma rádio digitais. Intervir na promoção de aspectos positivos, de modo a desfazer o estigma e melhorar a auto-estima de quem lá mora, levou ao estabelecimento do terceiro eixo do programa, o da imagem e da visibilidade. Embora seja considerada uma prioridade, os moradores compreendem que mudar o olhar das pessoas sobre estes bairros de habitação pública leva tempo. Por outro lado, também o processo de conquista de confiança nos eleitos e nas instituições se revela moroso, daí que o programa tenha sido projectado a dez anos porque, remata o vereador, «provocar alguma transformação no quotidiano das pessoas leva tempo». Até à aplicação deste programa, o território da Bela Vista era caracterizado por um caldo semântico onde «distúrbios» e «PSP» eram os ingredientes-base. Desde a aplicação do «Nosso Bairro, Nossa Cidade», segundo contas da Câmara, já saíram mais de 300 notícias positivas dos bairros da Bela Vista nas rádios, nos jornais, nas televisões e na internet. Rabaçal denuncia que «antes do programa nunca tinha saído uma notícia positiva dos bairros». E agora, sendo ainda uma mudança «sensível», revela que «há um caminho muito grande a fazer porque a imagem exterior sobre os bairros é negativa, mas no interior não é melhor, embora muitas vezes haja uma mudança muito significativa desse olhar das pessoas». Na visita percebemos essa transformação nos moradores com quem conversámos. Junto ao «Casal Cigano», do artista João Limpinho, três senhoras, por sinal de etnia cigana, sentadas de frente para esta obra escultórica, cumprimentam-nos sorridentes, num misto de curiosidade e orgulho. «Tanta gente que agora visita o nosso bairro», dizem-nos. Apesar de não ser um objectivo do programa, ele trouxe ao bairro uma melhoria em termos de segurança. Segundo dados da PSP, a vida comunitária e participativa provocou uma mudança na segurança real e na percepção de segurança. E foi com o propósito de mudar a percepção das pessoas, dentro e fora do bairro, que surgiu o «Mudar o Olhar – Festival de Música e Dança da Bela Vista». A sexta edição aconteceu no passado dia 15 de Julho. Uma iniciativa multicultural organizada pelo grupo de jovens Mudar o Olhar. Com idades entre os 18 e os 20 anos, estes jovens receberam formação da Câmara de Setúbal em áreas como a organização e promoção de eventos, gestão de palco e locução. E podem, admite o vereador, «organizar qualquer festa em qualquer parte do mundo». Música, dança, um desfile de roupas com tecidos africanos, jogos para crianças e tasquinhas gastronómicas preencheram o programa da sexta edição, participada por cerca de 400 pessoas. A introdução da arte urbana na Alameda das Palmeiras, aconteceu, como não podia deixar de ser, por decisão dos moradores deste bairro, e é um contributo de peso para o objectivo de mudar o olhar e construir confiança. A Galeria de Arte Pública (GAP), em Loures, serviu de modelo aos moradores e permitiu-lhes antever o impacto que poderia ter, dentro e fora do bairro, além do natural embelezamento. Vai daí, organizaram o «Cara ou Coroa Street Art Festival». Enquanto dez artistas, nacionais e internacionais, inscreviam a sua mensagem nas empenas de nove prédios, através de desenhos cheios de cor, houve moradores que dinamizaram momentos de canto, dança e prepararam-se as tradicionais cachupas e moambas, entre outras iguarias. A pintura artística das empenas, que continua a levar cada vez mais pessoas ao bairro, foi avaliada pelos moradores de forma positiva. E, pelo menos na Alameda das Palmeiras, a ideia é prosseguir com o projecto. No processo de mudar o sentimento negativo das pessoas do bairro e de quem vem de fora, a melhoria do aspecto dos prédios deu naturalmente um forte contributo. Porém, Nuno Costa afirma que, «como as coisas estavam, nunca se poderia ter começado pelo tratamento das empenas». Até chegar aqui, os moradores trabalharam no sentido de reconquistar a dignidade e o sentimento de pertença. O ponto de partida foram os acessos aos prédios que, no bairro da Bela Vista, não tinham porta principal de entrada. Constituíram-se aqui também equipas de reabilitação urbana, constituídas por moradores com competências para tal, mas que estavam desempregados. Nuno Costa esclarece que nem tudo é voluntariado, aproveitando para esclarecer que as equipas de reabilitação urbana são constituídas por moradores do bairro, «mas são trabalhadores pagos». Através destas equipas, os acessos aos prédios foram fechados, foram colocados portões, intercomunicadores, trincos automáticos, e a vida do bairro mudou, cumprindo-se assim o quarto eixo do projecto – vida em comunidade. Durante a nossa visita, uma das moradoras rapidamente se disponibilizou para ir buscar a chave e mostrar-nos o pátio que resultou de se fechar o acesso ao edifício. Um espaço que é de todos e que agora se encontra decorado com plantas de várias espécies. «Não só se reabilitou, como se melhorou a vida comunitária, a relação entre vizinhos, a higiene, a limpeza, a segurança, melhorou tudo. Mas isso foi ideia deles, nós fizemos esses projectos a pedido dos moradores e, dos 50 e tal edifícios da Bela Vista e do Bairro Forte da Bela Vista, faltam três que ainda estão a discutir, porque só se faz isso nos edifícios em que eles decidem fazer», defende Carlos Rabaçal. A par da reabilitação do edificado, estas equipas de moradores executam outras obras necessárias à melhoria da qualidade de vida dos bairros. Actualmente, está em curso a construção de um passeio pedonal em torno do Forte da Bela Vista. No âmbito desta gigantesca equação de reabilitar e cuidar, 2017 marca o início do projecto criado na área da saúde com o objectivo de fazer um acompanhamento prédio a prédio. Nuno Costa explica que as iniciativas não são desenvolvidas pela Junta de Freguesia nem pela Câmara, «porque isso não é a nossa competência». Mas que as autarquias «oferecem a organização» para que a Cruz Vermelha, o Serviço Nacional de Saúde e o Instituto Politécnico de Setúbal, através da Escola Superior de Saúde, façam o seu trabalho, a começar pelo diagnóstico das necessidades. Apesar de o protocolo ter sido assinado há poucos meses, foram já desenvolvidas várias acções apreciadas pelos moradores, nomeadamente workshops na área da saúde alimentar e rastreios. O presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião explica que as equipas do centro de saúde vão aos bairros, fazem os rastreios e depois encaminham as pessoas para os serviços. «As pessoas gostam muito porque não têm esta ligação com os serviços de saúde», esclarece. Além de ser «um projecto muito interessante e original, envolve todo o sistema de saúde, que é o pivô deste processo e está muito interessado e empenhado neste trabalho, de grande proximidade e de grande intervenção comunitária», acrescenta Carlos Rabaçal. No fundamental, o «Nosso Bairro, Nossa Cidade» gira em torno da participação das pessoas – quinto eixo do programa. Apesar das inúmeras vantagens reconhecidas, há a intenção de avaliar não apenas os mecanismos de gestão utilizados, mas também todo o programa. Uma avaliação científica, a realizar pelo Observatório da Bela Vista. O vereador afirma que o primeiro estudo será uma actualização do que foi realizado há dez anos sobre as condições de vida e as perspectivas da população dos bairros. Depois, acrescenta, «vamos manter uma permanente intervenção de estudo sobre o impacto de cada um dos projectos, os resultados obtidos e novos interesses das pessoas», através da ligação de várias universidades ao programa, além do Instituto Politécnico de Setúbal. Sem conhecer ainda os resultados do trabalho que os académicos virão a produzir, o conhecimento empírico adquirido ao longo desta reportagem permite-nos concluir que, quando o poder está do lado do povo, muda tudo. Na próxima semana publicaremos o artigo referente ao bairro da Quinta do Mocho. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Local
Não há forma de mudar a imagem dos bairros, a não ser por dentro
O poder de decidir e fazer
A participação é a chave
ficha técnica da bela vista
«A vida do bairro mudou radicalmente»
«Nunca tinha saído uma notícia positiva dos bairros»
Mudar o olhar
Reabilitação de edifícios melhorou vida comunitária
Saúde, prédio a prédio
Ligar ao mundo académico
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Organizado pelas comissões de moradores dos bairros da Bela Vista, Forte da Bela Vista, Alameda das Palmeiras, Quinta de Santo António e Manteigadas, em articulação com os técnicos municipais, o plano de visita incluiu uma reunião, na qual os moradores partilharam testemunhos sobre os projectos no domínio das artes, e nos quais se encontram envolvidos. Seguiu-se um périplo pelas empenas de Arte Urbana e pelo espaço Nossa Casinha, na Alameda das Palmeiras. A escultura do Renascer, no Forte da Bela Vista, a Associação Garrrbage e o Espaço da Quinta, na Quinta de Santo António, foram outros espaços visitados.
Assim que estiver concluído, o documentário será divulgado nas redes sociais do programa «Nosso Bairro, Nossa Cidade».
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