|Aviação

Da socialização dos prejuízos da Air France à privatização da TAP

Apesar do valor ser astronómico, a notícia teve pouco relevo em Portugal: o Grupo Air France/KLM teve um prejuízo de 10,4 mil milhões de euros nos anos de 2020/2021.

O novo diretor-geral Ibérico do Grupo Air France-KLM, Laurent Perrier, fala sobre as novidades da Air France e da KLM para 2022 em Portugal, num hotel em Lisboa, a 9 de Março de 2022
CréditosTiago Petinga / LUSA

A apresentação dos resultados de 2021 da Air France/KLM indicou um prejuízo de 3,3 mil milhões em 2021, para um total de prejuízos de 10,4 mil milhões em 2020/2021. A companhia só sobreviveu graças à injecção de 4 mil milhões de euros do estado francês e a dois empréstimos de emergência, concedidos pelos estados francês e holandês, no valor de 10 mil milhões de euros. Uma ajuda que foi concedida mesmo tendo em conta que apenas 40% do capital da companhia é público.

Se olharmos à dimensão relativa da TAP e da Air France/KLM, vemos que a Air France é cerca de 6 vezes maior que a TAP (104 milhões versus 17 milhões de passageiros em 2019, 542 versus 96 aviões), nada de estranhar pois que os seus prejuízos sejam proporcionalmente maiores que os da TAP (que teve 1,3 mil milhões de prejuízo em 2020). Tal como não deve ser de estranhar que o total de apoios recebidos da França e da Holanda sejam proporcionalmente maiores que os apoios recebidos pela TAP do Estado português.

Em qualquer da situações, os estados fizeram o que tinham de fazer para salvar a Air France/KLM e a TAP.

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Continua o bullying contra a TAP

Como a palavra do ano parece ser «resiliente», creio que poucas coisas em Portugal ilustram tão verdadeiramente o que é ser resiliente. O facto de ainda existir uma empresa como a TAP é mesmo um monumento à resiliência.

O Sitava alerta para a possível transformação da TAP num negócio para os accionistas privados
Avião da TAP a descolar CréditosAlex Beltyukov / CC BY-SA 3.0

Detenhamo-nos no longo processo de bullying (outra palavra da moda) que a TAP vem sofrendo:

– Todas as directivas da União Europeia para o sector aéreo têm dois únicos objectivos: promover a concentração à escala europeia em três companhias aéreas, liquidando as companhias de bandeira de todos os restantes estados-membros; promover a máxima exploração da força de trabalho no sector. Há mais de 30 anos que a TAP sobrevive à União Europeia, que a quer destruir apesar de não poder assumir esse objectivo.

– A Assistência em Escala era um sector lucrativo da TAP, que a União Europeia impôs ser primeiro separado, depois privatizado, resultando num longo processo de instabilidade, com duas renacionalizações forçadas pelo meio.

– A TAP foi obrigada a comprar a manutenção da ex-Varig, num processo que já lhe trouxe mais de 500 milhões de euros de prejuízos, e sem o qual a actividade da TAP teria sido amplamente lucrativa.

– A TAP passou por três processos de privatização, cada um mais desastroso que o outro. Primeiro, foi oferecida à Swissair, que faliu antes de comprar a TAP, mas quando já estava implementado um conjunto de medidas (na emissão de bilhetes e afins) que arrastaram parcialmente a TAP para essa falência. Depois, foi oferecida à Avianca, que também já faliu, para à última da hora, perante os riscos do processo, a privatização ser travada. Por fim, foi oferecida à Azul, que já saiu da TAP, depois de ganhar uns milhões muito largos e que pretende agora capturar o mercado mais lucrativo da TAP antes da pandemia (a ligação do Brasil à Europa).

«Todas as directivas da União Europeia para o sector aéreo têm dois únicos objectivos: promover a concentração à escala europeia em três companhias aéreas, liquidando as companhias de bandeira de todos os restantes estados-membros; promover a máxima exploração da força de trabalho no sector.»

– A TAP viu o Governo português entregar os aeroportos nacionais a uma multinacional, que passou a esmifrar a TAP, pois esta não tem alternativa à utilização dos aeroportos nacionais, enquanto as companhias estrangeiras exigem (e conseguem) melhores condições para cá se instalarem.

– A TAP, enquanto empresa pública, é objecto de uma verdadeira perseguição pela comunicação social dominada, que consegue convencer a maioria dos portugueses de que a TAP recebe apoios crónicos do Estado português, quando a verdade é que até esta pandemia, e neste século, a TAP recebeu menos apoios do Estado português que a Ryanair!

– Aquilo que está a acontecer à TAP é ainda o exemplo das implicações para o Estado português das orientações da União Europeia: a TAP representa mais de três mil milhões de euros de exportação de serviços para Portugal, mas isso tem que ser indiferente ao Estado português; a TAP representava mais de dez mil postos de trabalho directos em Portugal, mas isso tem que ser indiferente para o Estado português; a TAP depositava 100 milhões de euros por ano na na Segurança Social portuguesa, mas isso também deve ser indiferente ao Estado português. Aliás, até o facto de uma Ryanair assentar a sua operação em contratos zero horas (só se recebe o que se voa) ou em contratos dignos também deve ser indiferente ao Estado português.

– A União Europeia sabe que só os estados têm a capacidade de defender empresas como a TAP, que numa concorrência sempre desigual com empresas maiores tendem a ser destruídas ou assimiladas pelo processo económico capitalista. Uma consequência que traz ainda uma importante vantagem do ponto de vista da UE: ao limpar as TAP limpa-se mais um pedacinho da soberania nacional, que é um objectivo estratégico do processo de concentração e centralização de capitais a que nos habituámos de chamar UE.

Com a paralisação da actividade aérea entre Março e Junho de 2020 e o seu brutal condicionamento desde então, duas coisas eram inevitáveis: (1) os privados iam fugir da TAP e (2) o Estado português teria de salvar a TAP ou iniciar um processo longo de assumpção de custos, desde logo os custos directos da destruição (por exemplo, com subsídios de desemprego), e depois todos os indirectos, desde a brutal retração do PIB até aos custos da não existência de uma TAP (basta imaginar qual seria a chantagem sobre o Estado se a nossa indústria do Turismo dependesse totalmente de operadores como a RyanAir).

Não é difícil perceber que uma empresa que paga centenas de milhões de euros em salários a cada ano, e outro tanto nos leasings para aquisição da sua frota, como é o caso da TAP, não consegue estar três meses sem operar, e depois dois anos severamente limitada na operação, sem receber qualquer tipo de apoio público ou privado. Foi por isso que em Agosto de 2021 a IATA já contabilizava 239 mil milhões de euros injectados pelos diferentes estados nas companhias aéreas de todo o mundo.

A parte desse dinheiro que foi para apoiar empresas privadas (o grosso) não sofreu qualquer contestação pública. Quando foram os estados a apoiar as suas próprias empresas, caiu-lhes em cima todo o aparelho ideológico nas mãos do grande capital (que pesa bem mais que o Carmo e a Trindade juntos). Foi o que aconteceu à TAP.

«Quando foram os estados a apoiar as suas próprias empresas, caiu-lhes em cima todo o aparelho ideológico nas mãos do grande capital (que pesa bem mais que o Carmo e a Trindade juntos). Foi o que aconteceu à TAP.»

O Governo português tomou uma primeira opção correcta: não injectou o dinheiro sem exigir que o parceiro privado fizesse o mesmo. Mas quando os capitalistas privados fugiram a qualquer contribuição, e o Governo teve de nacionalizar de facto a empresa para a salvar, o Governo começou a ceder às pressões da União Europeia. A TAP nunca deveria ter entrado num processo de reestruturação, quando o que se impunha era um plano de contingência. A TAP estava financeiramente estabilizada em 2019, se algo se apontava era exactamente o facto de estar a crescer demais. A pandemia não transformou a TAP numa empresa inviável, transformou todo um sector em inviável até a actividade poder ser retomada numa proporção significativa,

Se a pandemia colocou pressão sobre a TAP, a reestruturação colocou ainda mais pressão, aproveitada pelo Governo para retirar direitos aos trabalhadores e desenhar um próximo processo de privatização. E a UE, que exigiu a reestruturação, e manteve o cutelo sobre a empresa um ano a fio, veio ontem autorizar essa reestruturação que exigiu e não fazia falta, e vem, claro, exigir mais: querem dar 18 faixas diárias a um concorrente, querem ser eles a escolher o concorrente, querem que a TAP abdique da SPDH e da Cateringpor, e hão-de querer mais coisas que ainda não são públicas. 

Claro que os apátridas do costume vieram saudar a decisão da Comissão e pedir mais. E o Governo português, incapaz de enfrentar o opressor estrangeiro, submete-se.

O que é impressionante é que a TAP, apesar de tudo, resiste[1]. E ainda bem.

[1] Este «resiste» vem de «resistência», que é a parte da resiliência que arranha os ouvidos dos senhores.

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Opinião
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Mas depois, na União Europeia, os mesmos estados colocam condições draconianas à TAP que não impõem à Air France/KLM, impõem a reestruturação da TAP e. no fundo, empurram a TAP para um novo processo de privatização. E é aí que não se entende mais a postura desses estados sem reconhecer um outro elemento central: o facto de estar em curso a construção de uma UE a duas velocidades, com um centro que concentra capital e propriedade, e uma periferia que perde soberania, instrumentos estratégicos e capital.

E é assim que a Air France/KLM, apesar de ter tido 6 vezes mais prejuízos que a TAP durante a pandemia e graças a ter beneficiado de 6 vezes mais apoios que a TAP, aparece como um dos grupos candidatos a comprar a TAP, sendo que os outros candidatos também estão em situação similar, e todos, no fundo, são candidatos a aproveitar a actual crise para crescer à custa da destruição de concorrentes com maiores dificuldades de a enfrentar. Algo clássico no que respeita às crises capitalistas e suas consequências. Só que neste caso essa consequência é incentivada pelos diferentes estados, incluindo aqueles cujas empresas são as vítimas dela.

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