Não foi apenas um momento. Ao longo de várias horas de emissão da gala do 30.º aniversário da TVI, sucederam-se as ocasiões em que administradores, jornalistas, apresentadores e actores se revezaram na exaltação pouco subtil da figura de Mário Ferreira: o novo patrão.
Foi uma afirmação repetida ao longo da cerimónia de lançamento da CNN Portugal. Ouvir jornalistas da TVI a dizer que agora é que se vai falar verdade na estação com a marca americana é tão surpreendente quanto inacreditável. Era tudo «novo», mas afinal não. As caras, salvo as dos americanos que foram passando pelo ecrã e pela festa que se fez no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, que contou com a presença do Presidente da República e do primeiro-ministro, eram as costumeiras e nalguns casos as de sempre, como é o caso de Judite de Sousa e de Júlio Magalhães, a quem coube fazer a entrevista que foi o grande (e único) destaque de lançamento do canal, que graficamente mais parece uma CMTV 2.0. A entrevista a João Rendeiro é a típica receita para angariar audiências, seja pelo facto de se tratar de um fugitivo à Justiça dos ricos, seja pela leveza da argumentação do arguido, que diz fazer uma vida «normal» e que aproveitou para deixar a notícia de que vai pedir uma indemnização ao Estado de 30 milhões de euros. Tão impressionante quanto a ligeireza com que o ex-banqueiro diz não voltar a Portugal, foi a forma como se falou do «rigor» e «credibilidade» da emissora norte-americana, que ainda nas últimas eleições presidenciais foi acusada por um funcionário de elaborar uma estratégia a favor de um dos candidatos, e da qual foram transmitidas ontem imagens de propaganda dos EUA, designadamente da Guerra do Iraque, onde todos reconhecem agora que não havia armas de destruição maciça. Ao mesmo tempo, não deixa de ser curiosa a forma como jornalistas e convidados falaram da «verdade» como novidade do projecto, com Nuno Santos a dizer inclusive que a marca vai contribuir para «tornar a nossa democracia mais robusta», como se a TVI não andasse a dizer sempre a verdade. E a verdade é que não andou. Recorde-se a campanha de notícias falsas (as tão vulgarizadas fake news) que a estação da Media Capital, agora liderada por Mário Ferreira, preparou no último ano de eleições legislativas. Reconhecida pela ERC como um exercício de «enviesamento» e «falta de isenção», a desinformação articulada então pela TVI constituiu a antítese da velha afirmação, que ontem se exibia no vídeo de lançamento da cerimónia: factos não são interpretações. E mesmo assim não chega. Quando milhares de pessoas vão para a rua manifestar-se no nosso País contra a precariedade que colaram às suas vidas e a estação de Barcarena opta por abrir o noticiário com protestos na Áustria, e noutros países da Europa (contra o confinamento), fica clara a necessidade de separar o acto de informar da agenda de interesses dos seus accionistas. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Editorial|
Agora é que vão falar verdade?!
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Até aqui nada de novo. A constrangedora submissão à figura patronal já vem sendo praxis no mundo do entretenimento privado. Celebra-se o dinheiro do patrão, ao qual todos estão subjugados. Tornou-se até uma storyline recorrente em séries e novelas: o miúdo rico que se faz rodear por uma trupe de yes-man, dispostos a concordar com tudo (desde que o dinheiro e as vantagens continuem a circular).
Noite adentro, após sucessivos, desinspirados e intermináveis momentos musicais e humorísticos, de maneira a que ao espectador já tudo lhe pareça um sonho mau, vários jornalistas, conhecidos pivots da estação, ergueram-se dos seus lugares na plateia para defender a sua profissão. Segundo estes, sem individualizar, o jornalismo permite «que os outros tenham voz; que os outros possam contar as suas histórias; partilhar, revelar, contar, mudar o mundo».
Trava-se, na TVI, uma «guerra pela verdade». A estação é um espaço de «coragem – ouviram esta palavra – coragem», afirmou o jornalista que, dois dias depois, ilustraria uma notícia com uma montagem de António Costa vestido de Pai Natal: «cada pessoa é uma história e essas histórias merecem que nós, os jornalistas, nunca desistamos. Nós na TVI não desistimos nunca! Escolhemos exercer a coragem!».
O STT assume a defesa dos trabalhadores do Grupo Media Capital, perante a denúncia da preparação de um despedimento colectivo encapotado na TVI/CNN. O Sindicato dos Trabalhadores de Telecomunicações e Comunicação Audiovisual (STT) esclarece em comunicado que, depois de intervir «na tentativa da transferência de 76 trabalhadores da TVI para a EMAV, foi confrontado com a denúncia de trabalhadores relativa à «preparação de um despedimento colectivo encapotado na TVI/CNN», nomeadamente «através da antecipação do fim de contratos a prazo, da não renovação de outros contratos a prazo» e da tentativa de reduzir o ordenado a alguns trabalhadores. O STT assume a defesa da salvaguarda de todos «os postos de trabalho nas empresas da Media Capital» e, «neste combate contra a prepotência», manifesta a intenção de «pedir a colaboração de outros sindicatos do sector», nomeadamente dos sindicatos dos Jornalistas e dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA/STE). Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Trabalho|
Postos de trabalho ameaçados na TVI/CNN
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Proteger os mais fracos, defender os ofendidos e humilhados, atacar a corrupção e qualquer abuso, desmascarar os poderosos. Quem naquele momento tiver mudado de canal (evitando com sucesso as danças e as cantatas), quase se convenceria que não tínhamos acabado de assistir a um exercício de mais baixa retórica. Felizmente, nem a TVI teve coragem suficiente para fingir que acreditava genuinamente no que ali se dizia.
Segundos após a intervenção dos jornalistas, dois colegas sobem ao palco e aliviam a tensão: «Ser jornalista é, digamos assim, amar a verdade, ser-lhe fiel todos os dias da nossa vida». 20 segundos depois ribomba a buzina de um barco. «oioioioioi! está a chegar o Mário Ferreira! Está a estacionar a viatura [é dono da Douro Azul, empresa de cruzeiros no Rio Douro]. Não se riam, daqui a uns anos [ele chega] de nave espacial!».
A plateia aplaude, efusiva, os jornalistas abrem grandes sorrisos amarelos e Mário Ferreira, na primeira fila, contempla, satisfeito, a excelente prestação dos seus funcionários, que parece ter adquirido com a compra da estação de televisão privada. Seria de esperar que jornalistas, pelo menos em teoria, cientes do seu papel na sociedade, não vendessem as suas convicções ao primeiro empresário que lhes batesse à porta.
Se milionários têm dinheiro para ir ao espaço é porque não os estamos a taxar convenientemente. Há uns anos, o jornalista Carlos Santos Pereira explicava como a multiplicação dos canais de informação e a concorrência entre televisões e, sobretudo agora, nos media digitais, tem um efeito de afunilamento. «Nunca a informação foi tão uniforme, tão igual. A resposta à concorrência não é tentar fazer diferente do vizinho. É garantir que eu não deixei de dar aquilo que ele também deu», disse em 2016. Toda a informação se tornou igual: a agenda é a mesma para todas as redacções, condicionada pelas agências e, depois, reflectida pelas redacções no osso, sem pessoal, dependentes de takes da Lusa ou de jornais internacionais. Jornais esses que os jornalistas (em Portugal também) lêem e citam com regularidade: o The Guardian, a BBC, o The New York Times, o Washington Post, o El País e, para os que ainda lêem francês, o Le Monde. E as agências AP e Reuters. Uma leitura atenta dos mesmos, todos os dias, revela que também eles se lêem e se citam entre si, afunilando ainda mais aquilo que poderia ser a cobertura do espaço mediático. O exclusivo transformou-se num «quem dá primeiro a notícia», abrindo a porta à falta de precisão, de mínimos de investigação, ausência de contraditório, disseminação de informação incompleta, errónea e fake news. Isto quando esse exclusivo de «última hora» ou «ao minuto» não se transforma, enfim, numa massa uniforme e acrítica de notícias iguais reproduzidas, mais ou menos à letra, traduzidas para variadíssimas línguas no mundo inteiro. Basta procurar no Google News e perceber como um qualquer assunto é coberto em todo o país ou todo o mundo: uma imensidão de copy-paste que não nos permite saber mais ou para além daquilo que o take de uma agência nos proporcionou. O problema não é a agência em si: ela existe para reportar factualmente, e, quase sempre, ao minuto (ou de acordo com a sua agenda). O problema é que há, nas redacções, cada vez mais pouquíssima iniciativa, e a que resta é quase sempre olhada com desconfiança por um «quem mais está a falar sobre este ponto de vista?». «O exclusivo transformou-se num “quem dá primeiro a notícia”, abrindo a porta à falta de precisão, de mínimos de investigação, ausência de contraditório, disseminação de informação incompleta, errónea e fake news. Isto quando esse exclusivo de “última hora” ou “ao minuto” não se transforma, enfim, numa massa uniforme e acrítica de notícias iguais reproduzidas, mais ou menos à letra, traduzidas para variadíssimas línguas no mundo inteiro» Só isso pode explicar que o Público e o Observador tenham, por exemplo, acompanhado em directo, ao minuto, a viagem do multimilionário Richard Branson ao espaço no passado domingo. Não se pense que por estarmos a falar de Branson, de Elon Musk, Jeff Bezos, ou dos milionários que os media gostam de vender como os últimos Steve Jobs do deserto, os que «começaram do nada» e, a pulso, com muitos sacrifícios, chegaram às estrelas (à custa de muita exploração laboral e inúmeras ajudas dos estados em que operam), essa cobertura, afinal, seja muito diferente da cobertura mediática da prisão de Luís Filipe Vieira pela CMTV. Enquanto redacções acompanham em directo aquilo que podemos simplesmente ver na internet (aliás, o próprio Branson transmitiu ao vivo), ou no The Guardian e na BBC (que, na verdade, têm o «seu» milionário de serviço coberto mediaticamente), há inúmeras histórias por contar e para as quais nunca há «espaço» ou «dinheiro» (nos media, espaço é dinheiro). Até a análise do momento fica por fazer com profundidade e relevância – e não, não é o Nuno Rogeiro na SIC que vai explicar como isto «é bom para economia». É fácil chamar Luís Filipe Vieira de ladrão e depois aplaudir a «conquista do espaço» pelo Richard Branson. Lembro-me sempre dos dois mil milhões de compensação pela gestão ruinosa da linha de comboio Edimburgo-Londres ao fim de míseros três anos de concessão à Virgin Trains (que teve de ser renacionalizada em 2018). Ou dos processos de falência da companhia Virgin Atlantic, sediada nos EUA, que precisou de ajuda pública para pagar uma dívida de 93 milhões de dólares e estabelecer um plano de reestruturação, vendendo dois aviões Boeing 787 da sua frota. A Sky News reportava em Novembro que a venda dos aviões serviria para pagar parte da dívida de 170 milhões que a Virgin tinha ao fundo de investimento norte-americano Davidson Kempner Capital Management. A Virgin Australia também foi reestruturada. E no Reino Unido, o Supremo Tribunal permitiu um bail-out de 1.2 mil milhões de libras (de fundos privados, vá lá) para salvar o império de Richard Branson, que pediu ajuda ao governo logo no início da pandemia. «Aquilo que nos foi vendido como um passo na “investigação científica” não foi mais do que um devaneio exótico pago (no meu caso, que vivo no Reino Unido) com os nossos impostos. Dizer que uma viagem onde nem sequer iam cientistas foi um passo para a “inovação aeroespacial” é atirar areia para os olhos dos que ficámos cá em baixo a ser explorados na terra» Que isto não se leia, de todo, como uma defesa de Vieira; pelo contrário, apenas a análise da proporção entre a cobertura glamourosa das «excentricidades» de multimilionários estrangeiros, comparada ao sensacionalismo bacoco do «sultão dos pneus». Ao contrário de Vieira, nem casa para palheiro Branson ofereceu como hipoteca. Nem as suas inúmeras propriedades. Nem os balões. Nem os jets privados. Nem a sua companhia de telefone-internet-televisão por cabo. Nem a produtora de cinema e audiovisual. Nem a empresa de comboios. Nem a sua ilha no Caribe. Esta «burguesia do teletrabalho» na ilha privada das Caraíbas é que o(s) governo(s) não foram taxar. Aquilo que nos foi vendido como um passo na «investigação científica» não foi mais do que um devaneio exótico pago (no meu caso, que vivo no Reino Unido) com os nossos impostos. Dizer que uma viagem onde nem sequer iam cientistas foi um passo para a «inovação aeroespacial» é atirar areia para os olhos dos que ficámos cá em baixo a ser explorados na terra. Aliás, tudo pode ser resumido na frase do próprio Branson: «Estamos aqui para tornar o espaço mais acessível a todos». Todos quem? Centenas de passageiros já compraram os bilhetes para o(s) próximo(s) voo(s) (não se lhes pode propriamente chamar «expedições»). E quem são? Ler jornais que não sejam do arco noticioso, ajuda. Por exemplo, a revista Semana, da Colômbia, revelava que o primeiro colombiano a ir ao espaço será provavelmente David Mendal, empresário bogotano em Miami, chairman de uma empresa de aviões privados e férias de luxo para executivos. Aqueles que conseguiram acumular riqueza e para quem 250 mil dólares por um bilhete «ao espaço», num ano de contracção económica em plena pandemia, é um valor insignificante. A Jacobin Brasil trazia um interessante artigo sobre a colonização e privatização do espaço por Bezos, Musk e Branson, entre outros, dizendo «sim à exploração espacial e não ao capitalismo espacial». E na Salon, a escritora de ficção científica Sim Kern, que conhece por experiência própria o trabalho na NASA, explicava que a «corrida ao espaço» dos milionários é apenas um concurso de egos. «Branson e Bezos não estão a investir dinheiro para inovar na ciência ou expandir os limites da possibilidade humana. Estão a fazê-lo para serem o primeiro homem rico a brincar no espaço, por oposição aos astronautas da NASA que fazem ciência. E depois de brincarem por ali inutilmente, esperam convidar os seus amigos obscenamente milionários para fazerem o mesmo.» O turismo espacial é pago pelos milhões de trabalhadores que têm dificuldade em sobreviver aqui na terra. Se Bezos, Branson e Musk têm dinheiro para ir ao espaço é, talvez, porque não os estamos a taxar convenientemente. Nada disto é discutido na cobertura mediática, bastante medíocre, até, deslumbrada por carros eléctricos (Tesla) ou comboios/aviões/telecomunicações (Virgin) que, como sabemos, serão sempre mais glamourosos do que o saloio rei dos pneus. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Milionários no espaço, e nós explorados cá na terra
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A subserviência do jornalismo ao poder económico tem consequências. Desde que Mário Ferreira se tornou o accionista principal da Media Capital, dona da TVI, em 2020, o corajoso e determinado jornalismo da TVI tem "optado" por não dar relevância às suspeitas de fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais que recaem sobre Mário Ferreira, ou os casos que decorrem em tribunal por assédio laboral aos trabalhadores da Douro Azul.
De Mário Ferreira, na TVI, os jornalistas apenas têm a dizer coisas boas, é claro: que o patrão ficou muito satisfeito com os 5 minutos que passou no espaço (gravaram mesmo um documentário sobre a ida ao espaço de Mário Ferreira), com direito a uma entrevista com o Goucha, para falar da sua vida privada, dos seus amores, das dificuldades que enfrentou. No que toca aos muitos casos duvidosos de Mário Ferreira, a coragem jornalística da TVI é frouxa. Evapora-se.
«Isto é como se fosse a sua casa», disse-lhe o apresentador e comentador Cláudio Ramos, na gala. É mesmo. É o seu castelo com vista para a corte de serviçais e – roubando a expressão aos brasileiros - "agradistas".
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