Do ponto de vista dos direitos dos trabalhadores independentes, há três aspectos que assumem particular relevância: a aproximação das contribuições ao rendimento real, a eliminação do enquadramento em escalões e o reforço da protecção social.
Em relação ao primeiro, estas alterações promovem a aproximação das contribuições ao rendimento realmente auferido pelo trabalhador, deixando de ser calculado com base nos rendimentos do ano anterior.
Assim, até agora o rendimento relevante correspondia a 70% do valor do lucro tributável apurado no ano civil anterior. Esse valor era dividido pelos 12 meses do ano e, de acordo com o valor apurado, o trabalhador seria enquadrado no escalão cujo valor ficasse imediatamente abaixo, definindo-se dessa forma a sua base de incidência contributiva. Com as alterações agora aprovadas, o rendimento relevante passa a corresponder a 70% da média dos rendimentos obtidos nos três meses imediatamente anteriores ao mês da declaração, passando a base de incidência a corresponder a um terço do rendimento relevante.
Quanto aos trabalhadores independentes abrangidos pelo regime de contabilidade organizada, mantém-se o limite mínimo de 1,5 vezes o Indexante de Apoios Sociais (IAS) para a definição da base de incidência contributiva.
Em ambos os casos, a base de incidência contributiva passa a ser calculada com base em rendimentos reais e não convencionados, sendo revista e recalculada trimestralmente de acordo com a declaração de rendimentos.
Entretanto, mantém-se, ainda que reformulando as premissas, a possibilidade do trabalhador optar por contribuir mais ou menos. Se actualmente o trabalhador independente pode optar por contribuir por dois escalões acima ou abaixo daquele em que foi colocado, com as alterações prevê-se que possa ajustar a base de incidência em 25%, para mais ou para menos.
Um dos elementos que sempre caracterizou o regime dos trabalhadores independentes foi a fraca protecção social que lhe está associada. As alterações prevêem a redução do prazo de garantia para acesso ao subsídio de desemprego (que passa de 720 dias para 360), equiparando assim ao prazo de garantia para acesso ao subsídio de desemprego pelos trabalhadores por conta de outrem. Além disso, prevê-se também que possam aceder ao subsídio para assistência a filho ou neto e, no caso de doença, passarão a receber o respectivo subsídio a partir do décimo dia útil, em vez de a partir de ao 31.º, conforme o regime vigente. Os trabalhadores por conta de outrem começam a receber subsídio de doença a partir do quarto dia de baixa por doença.
No entanto, há um conjunto de alterações que introduzem fragilidades – tanto para os trabalhadores como para o próprio sistema de Segurança Social:
- A eliminação da isenção para os trabalhadores que acumulem rendimentos do trabalho dependente e independente.
Hoje, os trabalhadores estão isentos de contribuições quando acumulem actividade independente com actividade profissional por conta de outrem, quando por via do trabalho por conta de outrem aufiram anualmente mais de 12 vezes o IAS e estejam obrigatoriamente abrangidos por outro regime de protecção social.
O que agora se aprovou é que esta isenção, baseada no princípio de que ninguém pode ser obrigado a contribuir para dois regimes de segurança social de natureza obrigatória, passa a ter como limite mensal quatro vezes o IAS (o que, em 2017, corresponde a 1685,28 euros). O fim desta isenção não só vem colocar em causa esse princípio, como pode abalar a ligação entre as contribuições pagas e as prestações a receber.
- A redução da taxa contributiva e a imprevisibilidade de quanto é que cada trabalhador pagará de contribuições
O que está colocado com estas alterações é a redução da taxa contributiva para os trabalhadores independentes e para os empresários em nome individual e o agravamento da taxa contributiva para as entidades contratantes.
A taxa aplicável aos trabalhadores independentes economicamente dependentes corresponde a 29,6%, passando com estas alterações para 21,41%. Já para as entidades contratantes responsáveis por mais de 80% do rendimento, é agravada de 5% para 10%, passando as entidades que são responsáveis por 50% a 79% do rendimento do trabalhador independente, hoje excluídas, a contribuir com base numa taxa de 7%.
Se fizermos o exercício de somar as taxas, vemos que a taxa contributiva total se reduziu – se actualmente, numa situação de contratante responsável por 80% do rendimento estaríamos perante uma taxa total de 34,6% (29,6% mais 5%), hoje estaremos perante uma taxa total de 31,41% (21,41% mais 10%).
No que toca aos empresários em nome individual, a redução é de 34,75% para 25,2%, ou seja praticamente 10 pontos percentuais, ao mesmo tempo que a sua protecção social também aumenta. Não podemos esquecer que a taxa contributiva dos empresários em nome individual resulta da consideração de que estes devem descontar o mesmo que a taxa total aplicável aos trabalhadores por conta de outrem – 11% a cargo do trabalhador e 23,75% a cargo da entidade patronal.
Considerando, porém, que a base de incidência para os trabalhadores sofreu as alterações, é preciso conjugar esta redução da taxa com esses elementos. Na verdade, ainda que a taxa contributiva diminua, é possível que o valor da contribuição mensal aumente nuns casos e se reduza noutros.
Alguns exemplos:
Imaginemos agora um trabalhador que tenha um rendimento anual de 10 080 euros (correspondendo a uma média mensal de 840 euros), mas que ganha 555 no primeiro trimestre, 1100 no segundo, 805 no terceiro e 900 euros no quarto.
Neste caso, com as alterações passa a pagar menos contribuições em dois trimestres e mais contribuições noutros dois trimestres, acabando a pagar mais anualmente.
- Os impactos no financiamento e sustentabilidade da Segurança Social
Também ao nível dos impactos para a sustentabilidade da Segurança Social, não é possível ter certezas quanto às consequências destas alterações. Sendo certo que houve quem falasse num impacto negativo de aproximadamente 100 milhões, a verdade é o que o ministro Vieira da Silva afirmou que os impactos seriam tendencialmente neutros: «O trabalho que fizemos foi um trabalho que se orienta para uma relativa neutralidade. O acréscimo de receitas e o acréscimo de despesas tenderá a equilibrar-se.»
Ainda que a imprevisibilidade seja muita, basta considerar que o mínimo de contribuições passa a estar fixado em 20 euros, quando o trabalhador não aufira rendimentos ou quando estes sejam inferiores aos necessários para garantir uma base de incidência de que resulte uma contribuição superior àquele valor. Caso esta situação se mantenha durante 12 meses consecutivos, estaremos perante 240 euros anuais de contribuições para a Segurança Social.
É, portanto, preciso ter em conta que, de acordo com o regime legal vigente, quando o rendimento relevante seja igual ou inferior a 12 vezes o valor do IAS, é fixado oficiosamente como base de incidência contributiva 50% do IAS, o que em 2017 corresponde a 210,66 euros. Se a este valor aplicarmos a taxa contributiva em vigor – 29,6% – chegaremos a uma contribuição mensal de 62,36 euros, o que dará uma contribuição anual de 748,26€, contra os 240 euros que resultam da aplicação da aplicação das novas regras.
- Combate à precariedade
A verdade é que esta revisão do regime contributivo aplicável aos trabalhadores independentes passa ao lado de uma questão essencial – o combate à precariedade.
De facto, não se pode ignorar a realidade de que, a coberto do trabalho independente, se escondem dezenas de milhares de trabalhadores na situação de falso recibo verde, sujeitos à precariedade, à exploração e à instabilidade do seu vínculo, para os quais a prioridade deveria ser garantir um contrato de trabalho efectivo, com os inerentes direitos.
A oportunidade que se coloca de revisão do regime contributivo dos trabalhadores independentes não pode servir para gerar novas formas de promoção da precariedade, em especial institucionalizando o recurso aos falsos recibos verdes ou falso trabalho independente para o suprimento de necessidades permanentes, ao mesmo tempo que, a coberto de um falso agravamento da taxa contributiva, continua a desresponsabilizar as entidades patronais das suas obrigações.
Para o patronato é sempre mais vantajoso fazer um contrato precário em vez de assumir um contrato de trabalho – não tem as mesmas obrigações, nomeadamente com os subsídios de férias e Natal, e tem o despedimento ainda mais facilitado. Além disso, também há vantagens do ponto de vista contributivo, uma vez que 7% ou 10% continua a ser muito menos do que os 23,75% correspondentes ao contrato permanente.
Há ainda que considerar o efeito do alargamento do conceito de entidades contratantes, o que à partida pareceria positivo. Para efeitos de regime contributivo aplicável aos trabalhadores independentes, são actualmente consideradas como entidades contratantes as pessoas colectivas e as pessoas singulares com actividade empresarial, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, que no mesmo ano civil beneficiem de pelo menos 80 % do valor total da actividade de trabalhador independente. Com as alterações passam a ser consideradas as entidades que beneficiem de mais de 50% do valor total da actividade de trabalhador independente, alargando o espectro de aplicação.
De acordo com os dados do Governo, em 2016 haveria 23 mil entidades consideradas como entidades contratantes para este efeito, no entanto, para já, parece não haver consenso quanto aos efeitos desta alteração, considerando que há informações muito díspares relativamente ao número de entidades que passarão a estar abrangidas – entre 43 a 45 mil, ou até 60 mil, segundo os números avançados pelo Governo.
As alterações aprovadas pelo Governo, com o apoio do BE, não combatem a precariedade. Pelo contrário, agravaram a taxa nas situações em que a dependência económica é superior a 80%, de 5% para 10%, quando nestas situações o que deveria acontecer era fazer actuar a presunção de contrato de trabalho. Quando alguém está na dependência económica de outra entidade, nestes termos, não é de supor que estamos perante um «falso recibo verde» e, portanto, perante uma violação da lei? A solução é repor a legalidade do vínculo e não a de pagar um pouco mais para manter a ilegalidade.
Sobre este novo regime, importa sublinhar que ainda nem entrou em vigor e já há denúncias sobre empresas que estão a pressionar os trabalhadores a recibos verdes no sentido de estes mudarem o seu enquadramento para o de empresários em nome individual. Desta forma, manter-se-ia a ilegalidade do vínculo no caso dos «falsos recibos verdes», tornando mais remota a possibilidade da sua conversão num contrato de trabalho efectivo e desonerando a entidade patronal de qualquer contribuição para a Segurança Social.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui