O apagão verificado em Portugal, com origem em Espanha e causas ainda por apurar, não pode deixar de colocar no centro da discussão a importância dos sectores estratégicos do Estado, assim como as políticas que colocaram o país num grau de dependência. É certo que mesmo que o Sistema Eléctrico Nacional fosse público os impactos do verificado continuariam a sentir-se, no entanto, a capacidade de resposta seria mais ágil e a segurança colectiva salvaguardada.
Por fruto do processo de integração europeia e seguinte submissão aos ditames da União Europeia, a liberalização do mercado de energia eléctrica em Portugal foi um processo gradual. A UE pressionou os Estados-membros a abrirem seus mercados de energia à concorrência e deu-se a desagregação vertical (separação entre produção, transporte e distribuição).
Com a directiva 96/92/CE estabeleceram-se as regras comuns para o mercado interno da electricidade e as regras comuns relativas à produção, transporte e distribuição de electricidade, obrigando à reorganização do sector. Nesta directiva, ficou definido que o produtor não pode praticar actividades de transporte ou de distribuição de electricidade no território abrangido pela rede onde se encontra estabelecido.
Assim, foi separada a produção, do transporte e da distribuição e criada a Redes Energéticas Nacionais (REN) para gerir a rede de transporte, retirando esta valência à EDP. Em 1997 o governo PS de António Guterres vendeu, em bolsa, 30% da EDP, no sentido da liberalização do mercado.
A criação de um mercado eléctrico potenciou a criação do Mercado Ibérico de Electricidade, o que poderia não ser negativo se não fosse definido por obrigação, grossista, regido por regras de mercado voláteis e especulativas, em prol da maximização dos lucros ao arrepio de uma cooperação entre Estados e do lucro de grandes grupos económicos.
A senda de liberalização não cessou com isto, e em 2006, novamente num governo PS, ao abrigo da diretiva 2003/54/CE vinda da União Europeia que exigia a abertura total do mercado até 2007, deu-se a desagregação final da EDP com a separação da produção (EDP Produção), da rede (REN) e da Comercialização (EDP Comercial). A par disto, abriu-se ainda mais o mercado e a Galp, a Endesa e a Iberdrola passaram a competir directamente com a EDP. Deste modo, o que até então era um sector controlado pelo Estado, que garantia a segurança e soberania, passou a estar cada vez mais dependente de interesses privados e condicionado na sua acção e missão.
O último prego no caixão foi já no governo PSD/CDS-PP de Passos e Portas que com o memorando da Troika viu a justificação perfeita para vender 21,35% da EDP à chinesa Three Gorges. Analisando o negócio, em 2015, um relatório de auditoria do Tribunal de Contas (TdC) sobre os «processos de (re)privatização do sector eléctrico» alertava para o perigo da política levada a cabo.
O relatório relembra que «o Estado Português, no âmbito do plano de resgate financeiro, comprometeu-se a acelerar o programa de privatizações, vigente até 2013, que abrangia, além de outros sectores, as participações detidas pelo Estado no setor da energia (GALP, EDP e REN), até ao final de 2011».
Neste sentido, após analisar os diplomas que possibilitaram as operações, o TdC verificou que «a lei n.º 102/2003 eliminou os limites à participação de entidades estrangeiras no capital de sociedades reprivatizadas» e que «a lei n.º 50/2011 suprimiu as cláusulas que garantiam o interesse nacional através das golden shares, bem como o controlo sistemático que era exercido pela Comissão de Acompanhamento das Reprivatizações (CAR), substituída pela Comissão Especial para Acompanhamento (CEA), de natureza eventual e consultiva, para acompanhamento do processo de privatização dando ao Governo a capacidade de decidir quanto à sua intervenção e eliminou ainda o nº 2 do artº 5º. Esta lei alterou, ainda, a obrigatoriedade de reservar uma parte do capital da empresa a privatizar aos pequenos subscritores».
No mesmo relatório consta também que no processo de privatização da EDP e REN «não foi prevista qualquer cláusula de penalização para o seu incumprimento [de salvaguarda do interesse nacional], pelo que, nestes dois processos, não foram tomadas medidas legislativas que acautelassem os interesses estratégicos do Estado Português após a conclusão do processo de privatização, tal como estatuído no art.º 27-A da Lei-Quadro das Privatizações».
O próprio TdC considerou que, ao contrário de outros países europeus onde os interesses e a segurança nacionais são acautelados, «a postura do Estado Português revela-se menos adequada». «Alguns destes países asseguram aqueles ativos através da fixação de limites na aquisição de activos estratégicos por entidades estrangeiras que não integram o espaço europeu (Alemanha, Áustria e a Finlândia), reforço/controlo do Estado através de poderes especiais "golden shares" (Bélgica, França, Polónia e a Itália) e/ou "detenção" da maior parte de capital (Lituânia e da Islândia)», pode ler-se no relatório.
Associado à política de privatizações e de liberalização do mercado, houve ainda um conjunto de decisões precipitadas no quadro de uma transição energética desenhada para agradar interesses privados que não acautelou possíveis situações de urgência ou emergência, deixando o país demasiadamente exposto.
Exemplo disso é o encerramento das centrais termoeléctricas a carvão e fuelóleo, alinhado com as metas climáticas da UE. Em 2011 foi encerrada a central do Carregado (da EDP) e em 2019 a central de Lares (da Galp), ambas fuelóleo. Já em 2021 foi encerrada a central de Sines (da EDP) e no Pego (da Tejo Energia, operada pela Endesa), ambas a carvão.
A par dos despedimentos, com o encerramento das centrais, e sem o futuro devidamente acautelado, as alternativas passaram por apostas no hidrogénio e no aumento das importações de energia de Espanha. Na altura do apagão, Portugal encontrava-se a ser abastecido por Espanha, já que através do Mercado Ibérico de Electricidade comprou-se energia mais barata.
A débil infra-estrutura portuguesa condicionou a capacidade de resposta, sendo que no caso das barragens hidroeléctricas, foi precisamente pelo facto de estarem cheias, graças à chuva que se fez sentir no passado mês, que se pode retormar o fornecimento de energia. No entenato, das cinco maiores barragens, três localizam-se no Douro, no Norte do país, a primeira zona a voltar a ter energia. Nas restantes duas, o Alqueva localiza-se a Sul, e a barragem de Castelo do Bode é a única situada no centro do país. Este leque de decisões faz questionar o que seria de Portugal neste momento se a central da Tapada do Outeiro tivesse sido encerrada.
Conforme lembrou a Federação Intersindical Das Indústrias Metalúrgicas, Químicas, Eléctricas, Farmacêutica, Celulose, Papel, Gráfica, Imprensa, Energia e Minas (Fiequimetal/CGTP-IN) num comunicado emitido ontem, «em 2022, após o encerramento da central do Pego, Portugal passou a importar energia, com um custo de 1695 milhões de euros. No momento do apagão, 30% do consumo estava a ser suprido através de importação. No passado, já ocorreram situações em que as importações foram superiores a 50 por cento, provenientes de Espanha. Estes números colocam em evidência a necessidade de Portugal diminuir a sua dependência energética e reforçar a sua capacidade de produção».
Sendo certo que um apagão podia existir, mesmo num cenário de rede integralmente pública, tal não deve descurar a necessidade de se discutir a submissão nacional a ditames externos e a interesses privados, que, como se percebe no novo aeroporto de Lisboa, deixam o País de mãos atadas, limitando a adopção das soluções que melhor servem ao desenvolvimento nacional. Fica claro que os destinos do povo não podem ficar nas mãos de um punhado de accionistas.
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