Um romance com linhagem e um desafio à reflexão

«Gennaro Clean: mafioso sem mácula», de Romeu Cunha Reis

Leiam o livro, divirtam-se a lê-lo e discutam-no, que ele merece.

Fotograma do icónico «The Godfather», com Marlon Brando
Créditos

Personalidade conhecida, desde antes do 25 de Abril, pelo seu empenhamento cívico e político em prol da liberdade, da justiça social e de uma democracia autêntica, Romeu Cunha Reis é um escritor natural de Vila do Conde e com formação jurídica, que manifesta, na sua produção romanesca, um interesse recorrente por aspectos ligados à vida política e ao destino de personagens muito marcadas pela estreita relação com as vicissitudes de um determinado tempo histórico.

Cultor da ironia e do cómico, ao serviço de uma tessitura crítica e satírica, de contornos sociopolíticos, Romeu Cunha Reis gosta das revisitações ficcionais da História, recorrendo por vezes a um registo hiperbolizante, introduzindo em alguns dos textos elementos de fantástico e jogando com a intertextualidade. Os seus livros dialogam aliás com escritos de filosofia política, de autores como Marx, Engels, Lenine e Popper, jogo que adquire especial relevância semântico-pragmática, considerando os enredos e as temáticas escolhidos.

Na sequência dos romances Esta Noite Forniquei com a Liberdade (Braga: Inovação à Leitura, 2005), O Sentido de Estado de Patolino XVI (V. N. de Gaia: Calendário de Letras, 2008), Relatório ao Comité Central (V. N. de Gaia: Calendário de Letras, 2013) e Adeus Karl Popper (V. N. de Gaia, Calendário de Letras, 2014), o autor traz agora a lume Gennaro Clean: Mafioso sem Mácula (Lisboa: Esfera do Caos, 2016), prolongando algumas das linhas referidas, mas reforçando, sobretudo, um diálogo crítico com o tempo histórico que lhe é dado viver. De facto, um elemento que singulariza esta escrita é a atenção ao mundo contemporâneo, às suas contradições, às perplexidades e interrogações que ele suscita.

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Mais uma vez, em Gennaro Clean, o leitor intui uma voz questionadora da realidade, voz de quem faz questão de problematizar o mundo à luz dos instrumentos que lhe são facultados pela cultura, pela História contemporânea e pela teoria revolucionária, em particular. Sendo tudo menos um exercício frívolo, este é um romance escrito para fazer o leitor pensar, um livro muito crítico, obviamente, em relação à sociedade capitalista contemporânea e aos monstros por ela gerados. Mas um livro que evita maniqueísmos simplistas preferindo o debate e a argumentação – não é por acaso que várias passagens permitem testemunhar interessantes discussões sobre a evolução do capitalismo contemporâneo à luz da teoria de Marx. Têm lugar em Roma e envolvem a personagem principal, Gennaro, e a secundária Marco Mattarella, marido de Francesca, irmã gémea de Rafaella, a namorada do protagonista.

Matarella e Gennaro, convém dizê-lo, são ambos economistas, o primeiro provindo dos escombros da esquerda revolucionária italiana, o segundo originário da miserável região da Calábria, no sul da Itália, cujo status quo socioeconómico e político se encontra totalmente minado pela ‘Ndrangheta, uma das três principais estruturas mafiosas ligadas ao crime organizado em Itália – as outras duas, como é sabido, são a Máfia de raiz siciliana e a Camorra de matriz napolitana. (Um aparte: não sei se alguma vez o leitor teve oportunidade de passear nas ruas de Palermo, de Catânia, de Nápoles ou de Reggio Calabria, ali donde se atravessa o belo estreito de Messina, para entrar na Sicília – não é uma experiência propriamente tranquila, devo dizer…)

É nessa cultura mafiosa, imposta à região mais pobre da Itália, que Gennaro cresce, com o amparo da avó Antonella, personagem de perfil positivo, prostituta da noite de Rapolla di Calabria, que sonha para o neto, órfão de pais assassinados pela ‘Ndrangheta, um destino susceptível de escapar ao juramento de fidelidade à organização criminosa, o mesmo é dizer, à violência e ao crime que tudo inquinam na pequena cidade: a política, as forças de segurança, a igreja, a educação, a vida social e económica… E porque se trata de um romance que aborda a formação e o processo maturativo de um protagonista desde a sua juventude, pode-se dizer que algo existe do género Bildungsroman em Gennaro Clean: Mafioso sem Mácula.

«Este percurso ascendente de Gennaro é, portanto, o de um capitalismo aparentemente sem violência física directa (era-o, sim, a violência da ‘Ndrangheta), a de um capitalismo clean, cada vez mais inteligente, informado e tecnicamente apurado.»

Aos dezassete anos, Gennaro está em Roma, tendo interiorizado, e em parte cumprindo, o desiderato da avó – abandonada agora, durante anos, à sua sorte e à miséria da cidadezinha calabresa. Na sequência de uma bem-sucedida carreira como jogador de vermelhinha, primeiramente em festas populares e, empregado já em Roma, em festas de casamento – inventando, de um modo que desafio o leitor a descobrir mas não a praticar, uma forma facilmente aceite de se tornar gerador de proventos quer para o patrão quer para os próprios clientes, oriundos da alta sociedade –, Gennaro, que nesta condição se auto-rotula como banqueiro ladrão, segue o seu caminho rumo ao êxito, evidenciando aos poucos as suas características de herói picaresco. Pícaro, recordo, é uma personagem-tipo cuja linhagem remonta a certas obras da Antiguidade, sendo no entanto a partir de El Lazarillo de Tormes (1554), que verdadeiramente se afirma. Romances e novelas dos séculos XVII e XVIII, em Espanha e não só, desenvolveram o tipo, na sua faceta de personagem que vive de expedientes, recorrendo a ardis e transitando entre as classes sociais, das quais retira o sustento. Entre Sancho Pança, de Cervantes, e o Cândido, de Voltaire, passando pelo Tartufo, de Molière, diversas personagens recriam a figura típica do pícaro.

Na capital italiana, Gennaro faz o seu curso universitário de economia e gestão e, passo a passo, torna-se o típico empresário de sucesso de ascensão rápida. O patrão vê-se na contingência de o admitir como sócio e o leque de empresas de ambos vai-se alargando, à medida que o engenho empresarial do herói e a sua rede de relações sociais, na alta-roda de Roma, se expande e se começa a articular com o poder político, num quadro já, de corrupção. Uma senda que o leva até ao limiar da alta finança, por via do acesso ao famoso Banco do Vaticano e a uns edificantes diálogos empresariais, e até morais – pode-se dizer –, com Monsenhor Gandolfini, em torno da estratégia de viabilização de um banco de crédito ao consumo controlado pelo Vaticano.

Este percurso ascendente de Gennaro é, portanto, o de um capitalismo aparentemente sem violência física directa (era-o, sim, a violência da ‘Ndrangheta), a de um capitalismo clean, cada vez mais inteligente, informado e tecnicamente apurado. O protagonista torna-se, portanto, um «mafioso sem mácula», como aponta o título. Vejamos a explicação deste título, numa passagem do texto:

«Na altura da constituição da Falconetti & Clean, Lda., o seu conceito de limpo, em termos negociais, teria já evoluído um pouco por influência do meio. Estava já prestes a terminar o segundo ano do curso de economia e gestão, já concluíra cadeiras de direito, e outras estava em vias de concluir – o que lhe permitia avaliar melhor a legalidade dos actos negociais –, e os sucessivos processos por crimes praticados por homens de negócios que nada tinham a ver com a violência contra as pessoas que a comunicação social noticiava, bem como as correlativas frequentes condenações a penas de prisão, iam-no tornando consciente a pouco e pouco de que lhe era necessário reajustar o seu conceito de clean.

Todavia, bastava-lhe contemplar práticas negociais correntes da banca, dos seguros, de alguns oligopólios de empresas prestadoras de serviços que, ou eram proibidas por lei, ou, sendo-o, eram de uso corrente sem que os tribunais as punissem, para concluir que era ainda larguíssimo o leque de expedientes de que um empresário podia servir-se para acumular riqueza mantendo o seu nome clean.» (p. 78)

Interessante é notar como este empresário de novo tipo leva o seu pensamento ao ponto de dominar os clássicos da teoria económica e política do marxismo e de perversamente os utilizar quer prevendo, numa perspectiva científica, a evolução do capitalismo quer contribuindo a seu modo, e na esteira de outros, para meter um pau nessa engrenagem evolutiva, desviando-a assim do seu previsível rumo (isto se bem interpretei esta desafiadora provocação intelectual que Romeu Cunha Reis, pela voz do seu herói, deixa aos seus leitores oriundos de áreas políticas anti-capitalistas e progressistas…). Dir-se-ia, pois, que nada melhor do que conhecer os clássicos do marxismo para, a contrario sensu, apurar e refinar os modos de exploração dos trabalhadores e do povo…

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Muito haveria a dizer sobre esta espécie de retrato parcial do estádio actual do capitalismo, em particular nas sociedades ditas desenvolvidas do mundo ocidental, que é traçado pelo romance de Romeu Cunha Reis. Um retrato com ampla matéria colocada à nossa reflexão – assim queiramos ler e debater este livro. Até porque a leitura do texto se torna agradável, sem escolhos e, ao mesmo tempo, divertida.

Vejamos: Romeu Cunha Reis sabe como tornar fluído e simultaneamente rigoroso o discurso do seu narrador heterodiegético e sabe também temperá-lo com saborosos momentos de humor – como as cenas da avó Antonella no atendimento aos clientes, ou como a de Gennaro, na igreja de S. Carlo, quando se abalança para a conquista do seu primeiro posto de trabalho na empresa de organização de casamentos do seu futuro sócio Falconetti. O cómico de situações, a ironia, a já referida vertente picaresca são, por conseguinte, três dos principais recursos deste romance de temática inovadora, onde não é difícil encontrar alusões à situação política e económica italiana que o inspira (veja-se o pequeno peritexto introdutório da p. 2).

Um romance que não nos leva apenas a pensar na era Berlusconi (com as suas célebres festas reservadas, onde certas elites políticas e empresariais se inter-relacionavam, cumpliciavam e divertiam), mas também em todo o convulso lastro histórico da vida política italiana nas três últimas décadas do século XX: as ligações da democracia cristã italiana de Giulio Andreotti ao grande patronato e à Cosa Nostra; os casos dos assassinatos de Aldo Moro e do juiz Giovanni Falcone; o episódio da loja maçónica P2, de Licio Gelli, e o escândalo do Banco Ambrosiano; a queda de Bettino Craxi e do Partido Socialista Italiano, por acusações de financiamento ilegal, e outros casos.

Romeu Cunha Reis faz questão de sublinhar a ligação do seu romance à realidade italiana e, por isso, procede deste modo curioso: num original peritexto, as primeiras frases de cada capítulo surgem-nos em língua italiana e, só depois, o texto em português principia.

E, porque existe toda uma estirpe cultural e artística à qual podemos, com as devidas proximidades e distâncias, ligar o romance de Romeu Cunha Reis, importa ainda recordar que a situação italiana e italo-americana, no que respeita às complexas conexões entre sistema político, alta finança e grande patronato, hierarquia católica e crime organizado que a tornam singular, se encontra na origem de toda uma produção literária, cinematográfica e televisiva de qualidade que merece ser referida.

Não resisto a alguns exemplos, começando pelo grande romancista e contista siciliano Leonardo Sciascia (1921-1989), autor de narrativas caracterizadas pela crítica à corrupção política e ao poder arbitrário. Lembro também o norte-americano, de ascendência italiana, Mario Puzo (1920-1999), cujos livros e argumentos inspiraram a magnífica saga The Godfather, I, II e III, de Francis Ford Coppola (filmes realizados respectivamente em 1972, 1974 e 1990). Registe-se ainda a obra Gomorra: viagem ao império económico e ao sonho de domínio da Camorra (2006), de Roberto Saviano (1979-), que se encontra na origem da série televisiva Gomorra (2014) e do filme com o mesmo título, dirigido por Matteo Garrone em 2008.

É de mencionar também a excelente série televisiva La Piovra (O Polvo), produzida pela RAI entre 1984 e 2001, num total de dez temporadas não consecutivas, e que narra a história do comissário Corrado Cattani (interpretado pelo actor Michele Placido) e do seu heróico e trágico combate à Mafia. No tocante a filmes inspirados nas vidas e aventuras de mafiosos de origem italiana, assinale-se ainda, além das fitas de Coppola e de muitas outras, o belo filme de Francesco Rosi, Lucky Luciano (1973), interpretado por, entre outros, Gian María Volontè, e baseado na história do gangster Charles «Lucky» Luciano, nascido Salvatore Lucania, em Lercara Friddi, em 1897, e morto em Nápoles, em 1962, depois de uma vida entregue ao crime e à luta entre famílias mafiosas, nos Estados Unidos.

Em suma, que estes exemplos literários, televisivos e cinematográficos sirvam apenas para lembrar uma certa linhagem a que é talvez possível ligar Gennaro Clean, de Romeu Cunha Reis.

O meu conselho final é: leiam o livro, divirtam-se a lê-lo e discutam-no, que ele merece.

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