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Morreu Celina Pereira, cantora e «verdadeira embaixadora» de Cabo Verde

A cantora cabo-verdiana Celina Pereira, uma das principais figuras da cultura de Cabo Verde na diáspora, morreu em Lisboa, onde residia, vítima de doença.

Celina Pereira em Porto Brandão, Almada, a 30 de Dezembro de 2009, por ocasião do lançamento do terceiro volume de contos populares e infantis «Estória, estória - do tambor a Blimundo», ilustrados pelo pintor Roberto Chichorro
CréditosMIGUEL A. LOPES / LUSA

A informação foi confirmada à agência Lusa pelo ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde, Abraão Vicente, que descreveu Celina Pereira de «grande vulto» e «figura incontornável» da cultura cabo-verdiana, não só como artista de palco mas também como investigadora – referindo-se ao seu trabalho, de muitos anos, de divulgação e recuperação do património imaterial de Cabo Verde.

Abraão Vicente sublinhou que a cantora foi a primeira pessoa que verbalizou a ideia de se candidatar o género musical morna a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, o que acabou por acontecer o ano passado.

O ministro, que falou desta distinção como a conclusão «do sonho de uma geração», sublinhou que Celina Pereira esteve no «pelotão da frente dos que mais batalharam e mais fizeram para que o dossier de candidatura da morna tivesse sucesso».

Para o titular da pasta da Cultura, Celina Pereira encarnava o espírito não só da diáspora, mas também da imigração cabo-verdiana e da sua eterna ligação com as raízes no país, sublinhando a componente pedagógica do seu trabalho, divulgando a cultura cabo-verdiana em escolas e promovendo a integração da comunidade imigrante.

Tanto o o primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva como o Presidente da República de Cabo-Verde, Jorge Carlos Fonseca, manifestaram a sua tristeza e pesar pelo falecimento da cantora, aos 80 anos.

Para o chefe de Estado cabo-verdiano, além de cantora, Celina Pereira era «uma verdadeira embaixadora» da cultura do país, promovendo-a e divulgando-a através das estórias tradicionais que contava, um pouco por todo o lado.

«Era uma artista no sentido mais lato da palavra e uma figura que se tornou um ícone de Cabo Verde: culta, poliglota, viajada, amiga, solidária, sempre interessada nos assuntos do seu país», afirmou, acrescentando que, «com a sua morte, fica a sua voz inconfundível e a enorme contribuição na recuperação do património e do cancioneiro tradicional das ilhas, bem como o trabalho desenvolvido na educação dos mais novos».



Um percurso mais do que uma carreira

Nasceu na ilha da Boa Vista e passou a infância e a adolescência em São Vicente. Herdou a veia artística dos dois lados da família, mas tendo por grande referência o avô paterno, filólogo, poeta, músico e pintor.

Outra referência familiar, esta política, foi o seu tio Aristides Pereira, combatente anticolonialista pela libertação de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e primeiro Presidente de Cabo Verde independente.

A sua primeira actuação profissional foi em 1968, a convite do grupo Ritmos Caboverdianos, ao qual se seguiram os convites do Bana para actuações nos saraus organizados pelo mítico cantor cabo-verdiano.

Em 1970 veio estudar em Portugal, onde cursou o magistério primário, e «razões do coração», como contou um dia, fizeram-na ficar e estabelecer-se definitivamente no nosso país, sem nunca perder a ligação estreita ao seu Cabo Verde natal.

A cantora costumava dizer que não tinha tido uma carreira – que achava coisa de promotores de espectáculos – mas sim um percurso artístico. Apresentava-se como cantora, educadora, contadora de estórias e escritora.

Publicou o seu primeiro single Bobista, Nha Terra/Oh, Boy! em 1979. Seguiram-se Força di Crêtcheu (1986), Nôs Tradição (1993) e Harpejos e Gorjeios (1998).

Participou nos discos Cabo Verde 82 (EUA) e Mar Azul - Cantá Mudjers (1984), pelo colectivo Vozes Femininas, com Cesária Évora, Zenaida e Ana Marta. A apresentação deste trabalho levou-a pela primeira vez à televisão, em programa de Júlio Isidro.

Os seus trabalhos, desde o primeiro disco, são marcados pela vontade de preservação da memória colectiva e identidade do povo cabo-verdiano. Com pesquisas e recolhas efectuadas em Cabo Verde e na diáspora cabo-verdiana espalhada pelo mundo, Celina Pereira recuperou mazurcas, cantigas de casamento e mornas, cantigas de roda, lunduns, choros, lenga-lengas, toadas rurais, e possibilitou a salvaguarda destes temas.

Participou em inúmeros espectáculos ao vivo. «Entre Mornas e Fados», realizado no Cinema São Jorge, em 2009, foi uma expressão da sua vontade de diálogo cultural permanente entre as culturas musicais populares cabo-verdiana e portuguesa.

Em 1990 publicou o disco Estória, Estória… No Arquipélago das Maravilhas, onde recolhia contos tradicionais e cantigas infantis de Cabo Verde. Desenvolveria essa linha de trabalho nos audiolivros Estória, Estória... Do Tambor a Blimundo (3 vls.), para apoiar as suas acções de divulgação dos contos tradicionais e histórias infantis de Cabo Verde, em Portugal e noutros países da diáspora cabo-verdiana.

Em 2018 publicou, em edição biligue português/crioulo, A Sereia Mánina e Seus Sapatos Vermelhos / Serêa Mánina e Sís Sapóte Burmêdje (Vermêlhe).

Recebeu os prémios Antonio Alba (Itália, 1991), Cabo Video Brockton (Massachussets, EUA, 1994), C.A.C.D. (Providence, EUA, 1996), Amílcar Cabral (Nápoles, Itália, 2007), e o Diploma de Honra e Mérito da A.I.P.A. (Açores, 2009).

Foi condecorada com a medalha de mérito – grau de comendadora – pelo Presidente da República português, Jorge Sampaio, pelo trabalho na área da educação e da cultura cabo-verdiana (2003) e recebeu a Medalha do Vulcão de 1.º Grau, atribuída pelo Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires (2007).

Em 2014 foi galardoada com o Prémio Carreira na 4.ª edição do Cabo Verde Music Awards (CVMA).

A cantora foi recentemente homenageada na Casa da Morna, em São Nicolau e, anunciou o ministro da Cultura de Cabo Verde, será uma das «figuras centrais» da mesma estrutura projectada para a ilha da Boa Vista.


 


com Lusa

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