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A farsa de «pausas humanitárias» e a força da ONU

A guerra Israel/Hamas transformou-se já no conflito Israel/Palestinianos e inscreve-se como o acontecimento que no presente mais tem abalado o mundo, pela sua violência, crueldade e desumanidade.

Uma mulher é retirada dos escombros da sua casa, no campo de refugiados Al-Shati, em Gaza, Palestina, depois de um ataque das forças de ocupação israelitas. Entre 7 e 14 de Outubro de 2023, pelo menos 724 crianças palestinianas foram assassinadas por Israel, que bombardeia indiscriminadamente escolas, habitações, hospitais e edifícios da ONU. 
CréditosMohammed Saber / EPA

A questão

Por estranho que pareça, o escrito não aborda a barbaridade do ataque/Hamas, nem a implacável «autodefesa» de Israel, nem a calculada indiferença do Egito, nem a frágil fogachada do Hezbollah, nem a farsa do envolvimento dos países árabes da região. Procuro assim evitar comentar aspetos desta guerra, porventura tema grato de uma certa comunicação social e comentadores procurando animar a morbidade oculta do ser humano face ao sofrimento alheio.

Em apreciação estão as chamadas pausas humanitárias e o papel da ONU nesta contenda, enquanto organismo representativo internacional. Com efeito, os EUA e a UE têm vindo virtuosamente sugerindo estas pausas para alimentar e cuidar os palestinianos, que o humanismo do governo de Israel decidiu ampliar de quatro para as sete horas. Sem ironia ou gracejo, esta modalidade de pausas faz lembrar um pouco a Guerra do Solnado – parar a guerra para recomeçar e matar. As propostas desses países carregam o mesmo tipo de mensagem, apenas para o pior – primando pela sua natureza farsante, contendo o que de mais desumano pode existir na natureza humana.

O inferno de Dante

É possível falar-se de uma «pausa humanitária» numa guerra, essencialmente virada para matar e destruir? Como distribuir alimentos no torpor de uma atmosfera plena de poeira e fumaça dos bombardeamentos intensivos, enquanto uns carregam os cadáveres para locais mais distantes para serem enterrados ou simplesmente abandonados, tudo no meio de pedras, lixo e restos de balas e mísseis, do barulho ensurdecedor de sirenes, bombas, tanques e de um tiroteio traiçoeiro a competir com os gritos de ansiedade e choro da população forçada a defender-se, fugindo uns, outros carregando crianças e feridos para logo a seguir balas traiçoeiras os fulminarem implacavelmente de morte, após uma refeição mal digerida?

É no meio deste torpor existencial, durante quatro/sete horas que se irão processar a «conta gotas» a entrada de caminhões da ONU para alimentar a população esfomeada e carenciada, nunca se sabendo como, quem, e quantos serão os «beneficiados», com luz e eletricidade cortadas e os hospitais a aproximarem-se de cemitérios. E assim se tranquilizam as consciências.

Palestinianos procuram vítimas entre os destroços de prédios destruídos pelos bombardeamentos israelitas no campo de refugiados de Jabaliya, nos arredores da Cidade de Gaza, na Faixa de Gaza, a 31 de Outubro de 2023 CréditosAbdul Qader Sabbah / AP News

Os pezinhos de lã

Alimenta-se o sofrimento para logo a seguir entrar no domínio da incerteza de vida ou mais provavelmente da morte. É neste ignominioso jogo de ficcionado altruísmo que reside o farisaísmo que caracteriza os políticos envolvidos noutros conflitos desastrosos como os de Iraque, Líbia, para citar alguns, e do que os náufragos no Mediterrâneo são a expressão mais acabada.

Ao solicitar moderação na legítima defesa israelita, estes mesmos políticos enfiaram-se de cabeça na mais ignóbil tarefa de legitimar o fenómeno de guerra, admitindo à partida o que sempre sabiam ia ocorrer – a tentativa de aniquilação de um povo vitalmente atrofiado animado sob a quimérica promessa de um Estado palestiniano. A guerra já leva mais de um mês de duração.

O rescaldo

Estamos em pleno séc. XXI. A guerra Israel/Hamas transformou-se já no conflito Israel/Palestinianos e inscreve-se como o acontecimento que no presente mais tem abalado o mundo, pela sua violência, crueldade e desumanidade. Há notícia de 101 funcionários das Nações Unidas em missão de paz em Gaza terem perecido; de quatro hospitais estarem inativos por falta de água e eletricidade cortada pelo governo israelita. Segundo o nosso MNE (13.11.2023), em cinco semanas do conflito em Gaza já morreram tantas pessoas como em 23 meses de combate na Ucrânia. A comunicação social dava conta de 11 000 mortos e 27 000 feridos, números que são de molde a ultrapassar de longe aquilo que se pode considerar efeitos colaterais do conflito por parte de quem quer apenas destruir a armadura operacional de um grupo terrorista.

Um palestiniano chora com uma criança morta nos braços, entre as ruínas de um prédio atingido por bombas israelitas no campo de refugiados de Nusseirat, no centro da Faixa de Gaza, em 31 de Outubro de 2023  CréditosMohammed Dahman / AP News

Justificativos para a guerra

Tudo isto não condiz com o propósito do governo de Netanyahu quando afirma agora que o objetivo primacial é o retorno de reféns. É uma desculpa camuflada e sobretudo ilusória. Sabe-se que a situação de reféns se resolve por negociação e não pelas armas. Nas circunstâncias do caso, os desenfreados bombardeamentos das Forças Israelitas até põem em perigo a vida desses reféns. Basta só haver um engano no bombardeio. Em termos humanos, temos para nós que a vida de um refém, vale tanto quanto a de um civil inocente e não há notícia de uma criança palestiniana nascer terrorista.

E… a apregoada supremacia israelita?

Se o que se pretende é a destruição do potencial bélico do Hamas, é então caso para questionar a supremacia do aparelho militar israelita configurado como o 4.º melhor do mundo ou ainda a capacidade dos seus serviços secretos, tidos como dos mais eficazes.

Seja como for, e como no início asseguramos, não é propósito estar-se a prognosticar os objetivos próximos ou longínquos de Israel ou quanto ao fatalismo do projetado «Estado palestiniano».

A ONU e a sua Carta

O papel determinante que neste momento se aguarda é o da Organização das Nações Unidas, o areópago indiscutivelmente responsável pelos destinos dos povos, como uma «super-partes» isenta para acudir aos problemas e conflitos que martirizam Nações e Povos. Assim procedeu no passado. Espera-se ansiosamente que o faça no presente.

A Carta das Nações Unidas prevê nos seus artigos 5.º e 6.º a suspensão ou a expulsão do seu seio, da Parte (sic. Nação) que se mostre renitente ou se recuse a cumprir as Resoluções do Conselho de Segurança. Israel talvez merecesse uma dessas medidas, pela sistemática recusa dos seus Governos em não cumprir as dezenas de Resoluções do Conselho de Segurança condenando as centenas de ilegais «colonatos» com expulsão de residentes palestinianos, e particularmente pela postura desrespeitosa do seu Embaixador face à ONU. Penso, no entanto, que seria uma medida contraproducente, pois corria-se o risco de Israel entrar em roda livre, não se livrando então do qualificativo de um «rogue-State». Resta-nos, assim, os normativos dos artigos 42.º, 43.º, 44.º,45.º, e 46.º da Carta, que permitem fazer uso de força, porventura socorrendo-se da sua Comissão de Estado Maior.

A esperança nunca morre

Seria a única forma desse devastador conflito ficar sob direto controlo da ONU, começando por um imediato cessar-fogo, a que se seguiriam as diligências tidas por necessárias para a libertação dos reféns, propiciando o calar das armas beligerantes, o regresso dos palestinianos para o que resta das suas casas e aldeias e dando início a uma descompressão gradual da mórbida tensão coletiva das duas partes.

Então, sim, estariam criadas as mínimas condições para o fornecimento condigno de alimentos às pessoas carenciadas, restabelecendo o direito humano à saúde, evitar mortes inocentes e até fazer frente ao antissemitismo.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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