Vincenzo Natali realizou um dos filmes que mais me ficaram na memória nos últimos 20 anos. Nothing (2003) conta a história de dois amigos que, confrontados com um mundo que lhes é hostil, se apercebem do seu poder em fazer desaparecer tudo o que os irrita. Este poder é levado ao limite até não restar mais nada, apenas os dois amigos. E mesmo assim…
Há uma ambiguidade em Nothing que me entusiasma e me leva a uma possibilidade metafórica, mesmo desconhecendo se foi intencional. Nunca sabemos se estamos realmente perante um poder especial de fazer desaparecer tudo ou se nos confrontamos ali com o caminho para o isolamento e para a atomização daqueles que perdem a capacidade para conviver com a adversidade.
Tenho recordado Nothing a propósito das dinâmicas massivas de censura, que vão buscar instrumentos semelhantes à chamada «cultura de cancelamento» – um fenómeno de denúncia, seja esta justa ou não (uma outra discussão). Tal como em Nothing, a «cultura de cancelamento» é, muitas vezes (não sempre), motivada (ou apropriada) por questões pessoais e ajustes de contas. Não podemos caracterizar os ajustes de contas de outra forma que não seja pelo terreno fértil do ressentimento e da mesquinhez. De um momento para o outro, uma pequena embirração transforma-se numa perseguição coletiva e de uma discussão sobre um determinado assunto faz-se o problema central dos nossos tempos, no qual se abrem duas trincheiras, entre as quais não existe qualquer movimento dialético, apenas maniqueísmo.
«Nunca sabemos se estamos realmente perante um poder especial de fazer desaparecer tudo ou se nos confrontamos ali com o caminho para o isolamento e para a atomização daqueles que perdem a capacidade para conviver com a adversidade.»
Mas se este fenómeno é instrumentalizado, muitas vezes, por quem colhe bastantes seguidores (sejam figuras públicas, como jornalistas, colunistas e comentadores de televisão, sejam perfeitos anónimos, que criaram uma rede online expressiva), ele também tem servido para a polarização em frentes de propaganda, como as que têm surgido nos últimos anos a propósito das guerras. A discussão pública e a análise são substituídas pela perseguição de determinadas pessoas face ao seu posicionamento relativo. Por isso, desde o início da guerra na Ucrânia tivemos jornalistas por todo o mundo acusados de serem peões da Rússia, porque em algum momento decidiram mostrar um outro lado da história. E é por isso que hoje, na escalada da guerra na Faixa de Gaza, esse maniqueísmo e essa polarização assume um papel determinante como ferramenta de propaganda de guerra.
Sob a capa do combate ao terrorismo, que tenta legitimar o genocídio na Palestina, os que pregam que só se chega à paz com a capitulação total do adversário através das armas expandem de tal forma a teia do «cancelamento», que foi com absoluta estupefação que assistimos, por estes dias, à tentativa de derrubar o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Guterres, que se limitou a lembrar o incumprimento histórico de Israel no plano do Direito Internacional, com ataques de que a própria ONU tem sido alvo, pouco depois de fazer estas declarações no Conselho de Segurança, não foi apenas criticado pela máquina de propaganda israelita. Foi pedida a sua cabeça e anunciado um corte de relações com a ONU.
Quando pensávamos que organizações que se dedicam à procura da paz entre os povos não seriam atiradas para esta lama formada por vários agentes ocidentais, eis que o inofensivo Guterres passa a ser alvo destas dinâmicas censórias, promovidas pelos Apaziguadores*, como lhes chamou Sidónio Muralha, num poema que hoje recupera especial oportunidade e que já não serve apenas para caracterizar os senhores da guerra, mas também todos os que seguem em turba, de archote em riste, para calar os que se atrevem a apelar ao cessar-fogo. Seguem, como loucos, convencidos de que só o afastamento de certas personalidades do espaço público e político lhes dará a razão e o triunfo, numa espécie de demonstração de força, de domínio sobre um poder mediático que tudo apaga, até não haver mais ninguém.
É esta loucura que Natali tenta mostrar em Nothing, a fúria de quem já não conhece outra forma de encarar o mundo que não seja destruir os outros. Mas tal como em Nothing, esse vacuum pode ser só um reflexo de uma profunda solidão em que tantas destas pessoas mergulham e agravam a cada nova tentativa de destruição. Não são elas que irão apagar o mundo, é o mundo que se esquecerá delas.
*Os Apaziguadores
A tribo é indócil.
Os apaziguadores são boas pessoas.
Eles cantam a paz
na boca das armas.
Eles desarmam as bocas
quando cantam a paz.
Só não desarmam as armas
porque a paz desarmada
passaria a ser paz
e eles ficariam desempregados
porque não há apaziguadores
em tempo de paz.
O medo tocou os apaziguadores,
o medo tocou o gatilho das armas,
e os indóceis ficaram apaziguados,
definitivamente apaziguados,
horizontalmente apaziguados.
E os apaziguadores voltaram aos lares
e com gestos medidos e apaziguados
guardaram as armas, lavaram as mãos,
e distribuíram beijos pacificamente
a toda a família.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui