|Manuel Gouveia

O preço justo da água ou o pseudo-radicalismo de fachada ecologista

O Governo do PSD/CDS prepara uma alteração à política da água. Sendo o Governo que é, as conclusões de todos os estudos estão tiradas à partida: liberalizar, mercantilizar, privatizar.

Vítor Proença vai focar o seu discurso nos avanços e riscos da água pública e saneamento em Portugal
Créditos / fotospublicas.com

A água é seguramente um dos bens mais preciosos para a nossa espécie. E para todas as espécies com quem compartilhamos o ecossistema. É, pois, natural e naturalmente importante que a discutamos.

A água é mais do que social, na medida em que devemos ter consciência que ela não só é indispensável à sobrevivência da única espécie auto-consciente conhecida no Universo – nós – como é indispensável à generalidade das formas de vida no planeta Terra.

Este carácter ultra-social deveria conduzir à sua declaração como património colectivo não titulável, objecto de políticas públicas que promovam o seu bom uso, circular como circular é o seu ciclo de vida original, assente em políticas racionais e sociais, sociais na medida em que garantam não só a preservação do recurso como o seu uso equitativo por todos.

O Governo do PSD/CDS prepara uma alteração à política da água. Sendo o Governo que é, as conclusões de todos os estudos estão tiradas à partida: liberalizar, mercantilizar, privatizar. As políticas dos governos anteriores, incluindo os do PS, deixaram a porta aberta à privatização do sector, para o que falta um elemento central: é preciso aumentar o preço da água. A «devolução» pelo Governo à ERSAR (o «regulador») do poder de impor aumentos de tarifas (para 2026, depois das autárquicas, que estas medidas são sempre pensadas a pensar no mesmo) destina-se a provocar esse aumento.

O «regulador» assim o tem exigido, ou seja, assim o tem exigido a entidade encarregue de colocar o sector público da água a funcionar como se fosse privado, gerando lucros, para assim poder ser privatizado. E de facto, para o sector poder gerar lucros é preciso aumentar o preço da água. E aumentar em todo o lado. Apesar das privatizações anteriores da água se terem revelado um desastre completo – veja-se o caso de autarquias que tiveram de atolar-se em dívidas para sair dos buracos para onde tinham saltado – a receita não se altera, só muda a forma. E, neste caso, a solução é simples: se colocarem os utentes da água a pagar por esta ao nível do que pagam pela energia, este sector torna-se altamente «lucrativo».1 E, portanto, passível de ser entregue à gestão privada para exploração. 

«É claro que, no dia em que um copo de água da torneira custar dez cêntimos, muitas famílias irão medir bem quantas vezes abrem a torneira. Mas as piscinas dos ricos continuarão cheias, pois eles podem pagar esse preço, e os investimentos das empresas serão para procurar vender água para piscinas e não copos a dez cêntimos.»

E agora aparecem os pseudo-radicais de fachada ecologista a exigir o mesmo: um preço justo. Mas nesta reivindicação violam a palavra «justo», pois no seu liberalismo «justo» é o valor no mercado que imponha uma determinada relação de oferta/procura. Neste caso, «justo» é aumentar o preço da água para lhe reduzir o consumo. Como se o «consumo» sustentado de água destruísse água e não fizesse parte do ciclo natural da água. Como se o condicionamento através do preço do acesso aos bens essenciais pudesse – nesta sociedade capitalista assente na desigualdade crescente – ser alguma vez justo. É claro que, no dia em que um copo de água da torneira custar dez cêntimos, muitas famílias irão medir bem quantas vezes abrem a torneira. Mas as piscinas dos ricos continuarão cheias, pois eles podem pagar esse preço, e os investimentos das empresas serão para procurar vender água para piscinas e não copos a dez cêntimos.   

O preço «justo» destes «ecologistas» e o preço «não subsidiado» da ERSAR são, neste como em tantos casos, a mesma coisa: a mercantilização da água, para que esta possa ser colocada a gerar lucros ao capital. Mesmo que à custa do acesso das famílias a este bem essencial, mesmo que à custa de uma gestão realizada a pensar na maximização do lucro a curto e médio prazo, e não da preservação do recurso. 

E terminariam ambos da mesma forma: a facilitar a privatização do sector da água. Ambos instrumentos – mais ou menos conscientes – do capital, cujas pulsões insanas e insanáveis são o verdadeiro motor da delapidação de recursos à escala global e nacional.

Não há um preço justo para a água. Ela é demasiado preciosa para ser mercantilizada.  

  • 1. Estas aspas servem para sublinhar que este «lucro» é cada vez menos lucro e cada vez mais uma forma de extração de rendas.

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui