|José Maria Pós-de-Mina

Separar as águas

Mais do que meras visões setoriais, o que necessitamos é da inserção dos recursos hídricos no modelo de desenvolvimento económico e social que se impõe tomar para o País.

Créditos / APA

Dois dias antes de ir por água baixo, o Governo apresentou em Coimbra, a 9 de março, uma suposta Estratégia para a água que batizou como «Água que Une». Entretanto, já em gestão, voltou a realizar iniciativa pública sobre o assunto. Em 19 de Março repetiu em Beja a apresentação, numa ação que mais parece virada para o período eleitoral do que para a solução dos problemas da gestão dos recursos hídricos. 

No momento em que escrevo estas linhas, o que se conhece sobre esta estratégia é apenas o Power Point de 40 páginas que foi apresentado. Os fundamentos, a identificação concreta das medidas, a sua calendarização objetiva, as razões que lhe estão subjacentes não são ainda do domínio público. Por isso, uma apreciação só pode ser feita com base no que se conhece. E o que se conhece já permite tirar a conclusão de que não estamos perante opções de política de recursos hídricos que tenham como objetivo central uma gestão hídrica eficiente, a utilização de água ao serviço do desenvolvimento.

Mais do que meras visões setoriais, o que necessitamos é da inserção dos recursos hídricos no modelo de desenvolvimento económico e social que se impõe tomar para o País, com destaque para a sua relação com a agricultura, cujas opções devem assentar no seu contributo para a soberania e segurança alimentar.

O que se vislumbra de mais evidente numa estratégia que não é cristalina, é o reforço da utilização da água como instrumento a favor da agricultura superintensiva, o que quer dizer, a servir como meio de drenagem de recursos do setor público para o setor privado de que o exemplo do Alqueva é já um comprovante inquestionável. De braço dado com os baixos salários, a precariedade e condições de trabalho e de vida inadequadas.

O que se descortina é a utilização de água como matéria-prima para a produção de energia, a aposta em setores da economia que são simultaneamente energívoros e elevados consumidores de água como são os casos da produção de hidrogénio, das fábricas de bateria e das centrais de dados.

O atual momento que vivemos, em que a chuva nos tem visitado de forma constante permitindo o enchimento de albufeiras, com a capacidade de armazenamento nalguns casos, como o do Alqueva, perto do limite, não pode fazer esquecer as dificuldades que temos com a ocorrência de secas e a questão mais funda da forma como se lida com a escassez da água e a necessidade de se definirem prioridades no seu uso.

A questão central, seja para esta estratégia que apresenta 294 medidas, seja para a política de investimento, é a identificação de qual a forma como se obtêm os recursos que são necessários para garantir a melhoria da eficiência hídrica. Esta intenção apresentada pelo Governo que caiu, apresenta como principal possível de financiamento a categoria «a determinar» e o que surge com fonte identificada são questões que estão em curso, já comprometidas no âmbito, sobretudo, do Portugal 2030 e do PEPAC, ou então com orçamento próprio de entidades públicas, o que significa na prática do grupo AdP que será pago por tarifas dos utilizadores. Nesta área, e como é evidente na política do Governo AD, está presente a ideia do negócio e da abertura de oportunidades para o florescimento do capital que crescerá regado por água pública.

«O que se conhece já permite tirar a conclusão de que não estamos perante opções de política de recursos hídricos que tenham como objetivo central uma gestão hídrica eficiente, a utilização de água ao serviço do desenvolvimento.»

Num período em que assinalamos o Dia Mundial da Água é fundamental sensibilizar os cidadãos para a importância duma gestão adequada deste recurso, é importante inverter a política que tem vindo a ser seguida. E já que estamos a poucos dias de assinalar o 49.º aniversário da Constituição da República Portuguesa – Constituição de Abril – convém referir que no seu artigo 81.º no que se refere às incumbências prioritárias do estado no âmbito económico e social na sua alínea n) consta “adotar uma política nacional da água, com aproveitamento, planeamento e gestão racional dos recursos hídricos” e no artigo 80.º que elenca os princípios da organização económica e social, na sua alínea d) consta a “propriedade pública dos recursos naturais e de meios de produção, de acordo com o interesse coletivo”. Interesse coletivo que está ausente em toda a política que tem sido seguida nesta área. E propriedade pública que está sempre em ameaça com horizonte de políticas que pretendem estender a privatização a todas as atividades e que vêm negócio em toda a parte. 

Trata-se não só de no caso da agricultura apostar no setor privado à custa de fundos públicos e da utilização irracional dos recursos hídricos, como a transformação em negócio de toda a intervenção no setor, que está bem patente no que se refere à política tarifária que defendem, como na disseminação do outsourcing nas empresas públicas, ou na privatização da gestão da água em municípios do PSD e PS e na já antiga aspiração de tentar a privatização a nível da gestão em alta.

É também curioso que, em torno desta denominada «Água que Une», PS e PSD estejam unidos, pois já lemos declarações de responsáveis do PS a referir que o plano água que une reflete grande parte da visão do PS.

Importa por isso separar as águas e afirmar uma outra política de gestão de recursos hídricos, que aposte na eficiência hídrica, se baseie na sua gestão pública, na garantia da sua acessibilidade económica e social, do seu contributo para o desenvolvimento económico e social, salvaguardando o ambiente, valorizando o trabalho e envolvendo as comunidades. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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