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Cavalgando a crise no acesso à habitação garante-se mais especulação

Os processos sem financiamento PRR, não o têm por falta de solo urbano, mas tão somente porque as verbas são escassas para responder ao elevado número de famílias a viver em situação habitacional indigna. 

Créditos Szabolcs Molnar / Pixabay

Tentativa de explicação para a «entorse». 

Com data de 30 de dezembro, foi publicado o Decreto Lei n.º 117/2024 que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão do Território/RJIGT (Decreto Lei n.º 80/2015). Com este Decreto Lei (DL), vem o Governo, cavalgando a crise no acesso à habitação, liberalizar a alteração de uso de solo de rústico para urbano.

 «Apesar de constituir um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local, atendendo (…)  à urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção da habitação, o Presidente da República promulgou o diploma» (Página da Presidência da República, 26 de dezembro de 2024). 

A analogia do Sr. Presidente peca por diminuta. De facto, um DL que choca com a Lei de Bases da Habitação/LBH (Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro), com a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo/ LBPPSOTU (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio), com o Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional/ RJREN (DL n.º 166/2008, de 22 de agosto) e com o Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional/RJRAN (DL n.º 73/2009, de 31 de março), muito mais do que uma «entorse» merecerá a classificação de acidente grave.

Vejamos primeiro, ainda que sucintamente, a dimensão da «entorse».

O DL 117/2024 choca com a LBH, entre outros, quando ignora o papel das Cartas Municipais de Habitação, aliás ainda por regulamentar, na definição das opções de planeamento, destinadas à promoção de habitação; quando aponta para soluções de periferização, com inerentes riscos de segregação social; quando esquece a promoção do uso efetivo de habitações devolutas; quando, nas situações em que comprovadamente se justifique, o alargamento de perímetros deixa de ser destinado a propriedade pública e à regulação do mercado da habitação e passa a ser oferecido à especulação imobiliária.

O DL 117/2024 choca com a LBPPSOTU, entre outros, quando despreza o aproveitamento racional e eficiente do solo; quando, para não contrariar valores de mercado especulativos, ignora disponibilidade de solo urbano; quando esquece a avaliação ambiental de monitorização na reclassificação do solo; quando ignora que as alterações de uso de solo deverão ser sustentadas em relatório de monitorização à execução dos planos territoriais de âmbito municipal; quando os processos de reclassificação ignoram a concertação de interesses, incluindo o público, baseando-se em mero «parecer técnico dos serviços municipais ou de outra entidade contratada». 

O DL 117/2024 choca com RJREN, quando subalterniza e dispensa avaliação do risco em áreas de infiltração e de proteção e recarga de aquíferos, em áreas de elevada possibilidade de erosão do solo e em áreas de instabilidade de vertentes.  

O DL 117/2024 choca com o RJRAN quando ignora que a RAN corresponde a uma servidão pública que restringe o uso de solo, para fins não agrícolas, não passível de ser alterada sem a definição de nova delimitação.

Vejamos, agora, as «urgências».

Não é verdade que existam riscos de perda de fundos europeus, entenda-se do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), por falta de solo urbano. Todos os municípios que, através de Estratégias Locais de Habitação, apresentaram candidaturas ao Programa 1.º Direito, tenham ou não sido considerados no PRR, candidataram construções em solo urbano ou reabilitação de fogos devolutos em tecido urbano consolidado. Os processos sem financiamento PRR, não o têm por falta de solo urbano, mas tão somente porque as verbas são escassas para responder ao elevado número de famílias a viver em situação habitacional indigna. 

«Não é verdade que existam riscos de perda de fundos europeus, entenda-se do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), por falta de solo urbano.»

Quanto ao fomento da construção da habitação, parece entrar no argumentário do surreal. Estamos num país onde existem mais de 700 000 habitações devolutas, sendo mais de 45 000 em Lisboa. Onde um estudo recente mostra que «uma em cada quatro casas construídas desde 2006 está vazia e a razão por detrás do fenómeno é a especulação imobiliária», calando os argumentos dos que afirmam que só estão devolutas habitações antigas e degradadas. Onde existem municípios que desenvolvem programas de realojamento de famílias em situação de habitação indigna, recorrendo, em exclusivo ou maioritariamente, à aquisição e reabilitação de fogos devolutos existentes na sua área1. Onde vastas áreas urbanas degradadas poderão com programas de regeneração do território e de requalificação urbana, oferecer soluções de habitação digna em zonas consolidadas das cidades. 

A realidade, para além das «entorses».

 Não há falta de solos urbanos. O que há é uma vontade política de favorecer a especulação imobiliária, alicerçada no capital financeiro que domina o imobiliário. Este pode continuar a manter ativos/devolutos à espera de mais elevada renda fundiária e tem, com o DL 117/2024, a possibilidade de obter gordas mais-valias na transformação de solo rústico em urbano. E, se me permitem a futurologia, não estará longe o dia em que veremos o Estado a transferir dinheiros públicos para a banca, através de bonificações de juros para apoiar a compra das tais habitações de «valor moderado».

O favorecimento à especulação imobiliária, com a mobilização de mais e mais solo rústico, constitui um atentado ambiental pelos riscos ao nível da conservação da natureza e da qualidade paisagística.

 Constitui um atentado social, ao contribuir para uma maior hierarquização da cidade, com os centros e as periferias mais próximas devolutas a aguardarem aumentos dos valores venais; as novas periferias, para as ditas classes médias, da propriedade moderada ou da renda acessível; e, quiçá, uns guetos para os encostáveis às paredes.

«O favorecimento à especulação imobiliária, com a mobilização de mais e mais solo rústico, constitui um atentado ambiental pelos riscos ao nível da conservação da natureza e da qualidade paisagística.»

Constitui um atentado à soberania nacional, ao aumentar a dependência alimentar do país, mercê da degradação de solo agrícola – num país onde apenas uma pequena parcela é de elevado potencial agrícola – e pelas expectativas criadas de que não compensa investir na agricultura, na floresta, na pecuária, pois mais tarde ou mais cedo, aquele solo será «rentabilizado» para construção.

Constitui um atentado de carácter económico-financeiro por via do sistemático agravamento e subversão do quadro de investimentos nacional – aposta continuada na construção de habitação de gama média/alta, hotelaria e comércio – esquecendo áreas essenciais para a produção e levando ao empobrecimento do perfil de especialização nacional.

A realidade é esta, mas, para o Governo PSD-CDS/Montenegro – tal como já havia sido para o Governo PS/Costa que, recordemos, lançou o «Simplex» urbanístico e destruiu partes importantes do RJUE/ Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação – há vozes que falam mais alto. Senão, veja-se a sintonia entre as propostas do Governo e as propostas da Confederação Portuguesa da Construção e Imobiliário.

A terminar, lembro que, no próximo dia 24, a Assembleia da República irá votar o Projeto de Lei n.º 407/XVI/1.ª, do PCP, que propõe a revogação do Decreto Lei, n.º 117/2024, de 30 de dezembro.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

  • 1. Seixal será o caso mais notável.

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