|Balanço do ano – 2016

Os balanços em arte

O balanço aí fica, cheio de buracos negros, do muito que aconteceu e não se viu. Buracos negros por se fazer o varrimento das prateleiras da memória, com anotações em cadernos dispersos pelos dias do ano, todas contaminadas por Baudelaire: «a crítica deve ser parcial, política e apaixonada.»

Obra de Joaquim Rodrigo incluída na exposição «Vanguardas e Neovanguardas na Arte Portuguesa – séculos XX e XXI» (Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado)
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Os balanços em arte, qualquer que seja a área, têm uma particularidade que os distingue dos contabilísticos: não há défice. A coluna do haver fica cheia, a do deve só muito excepcionalmente terá algo inscrito. Ninguém espera que, num balanço musical, inscrevesse o Tony Carreira ou, no de literatura, o José Rodrigues dos Santos, nas colunas do deve, só para as preencher com algo de muito peso, porque ninguém teria algum aguardo de ter ouvido ou lido um ou o outro. Isso é extensível ao cinema, ao teatro, às artes visuais, embora, com alguma dose de masoquismo, sem a mais bruxuleante esperança, tenha ido a Serralves assistir a uma maratona de fim-de-semana de performances que acabaram por confirmar o expectável. Alma calcificada de preconceitos que ocultam a validade dessas pesquisas formais, dirão alguns apontando para a pegada do pé-atrás. Não tenho o optimismo cosmopolita da liberdade sem limites de a poesia, a música ou as artes visuais poderem ser feitas a partir da matéria verbal imediata (Schwitters), sínteses aditivas e aleatórias de ondas senoidais (Stockhausen), recorrerem aos detritos da vida prática (Duchamp). Embora, apoiado em Walter Benjamin, subscreva «que as extravagâncias e as cruezas da arte que daí resultam, sobretudo nas chamadas épocas de decadência, têm, de facto, a sua origem no centro de forças históricas mais ricas». Só que a linha de horizonte era um traço de luz nos tempos negros em que Walter Benjamin fabricava as asas do Anjo da História mesmo quando verificava com lúcido alarme que «a humanidade que no tempo de Homero era um objecto de contemplação dos deuses do Olimpo é agora objecto de contemplação de si-mesma. A sua auto-alienação alcançou tal grau que pode experimentar da sua própria destruição um prazer estético de primeira ordem». O que assombra é, aparentemente, não haver hoje a generalizada percepção de que se anda a aprofundar essa auto-alienação com a alienação das artes e das ideias destruindo, com alguma leviandade, os universos do pensamento e das criações artísticas e intelectuais, banalizando os actos de ver, ouvir, ler. Um universo em que o conhecimento se filtra pelo googlar, se revê em tweets, engolfa na multiplicação de fotogramas iludindo o essencial, nos excessos de ruído que submergem e acabam por apagar o som, sem que ninguém, mais correctamente só uma minoria, se insurja contra a redução da reflexão a não sei quantos caracteres, peça que se baixe o volume ou reduza a velocidade e quantidade das imagens.

A fragmentação de notícias e bytes trivializando e manipulando a informação, os contentores de toneladas de conversas inúteis que se despejam nas lixeiras das pantalhas televisivas, nas ondas radiofónicas, no papel de jornais e revistas, nas redes sociais, são a lava de vulcões que procuram sepultar a aprendizagem da revolta que tudo isso deveria provocar por cobrir de cinzas a opinião informada e elaborada, um perigo para o estado das coisas em que a decadência moral, política e económica se apoderou do universo como um cancro que cresce sem cessar com múltiplas e novas metástases. Não é ser Cassandra, como as que em todas épocas surgem para as fustigar. É acreditar que um Perseu, bem ancorado num movimento colectivo e humanista, irá ressuscitar para cortar as cabeças a essa Medusa pós-moderna do capital e dos mercados que intoxicam o mundo, procurando reduzir-nos a controlados consumidores de resíduos. É acreditar que haverá um sobressalto para as grandes questões da arte voltarem a responder aos problemas que a História em cada momento coloca à sociedade como um todo e a cada homem individualmente, sem serem redutíveis a ela. Quer dizer, distanciando-nos completamente de Joyce, que, quando lhe falavam da Europa incendiada pela guerra, dizia «não me fale de política, só me interessa o estilo», mas ficando iluminados pelo Ulisses, pelo Dublinenses. E, mais uma vez recorrendo a Walter Benjamin, acreditar extensivamente que «uma das principais tarefas da arte sempre foi criar um interesse que ainda não conseguiu satisfazer totalmente».

E o balanço? O balanço aí fica, cheio de buracos negros. Buracos negros do muito que aconteceu e não se viu. Buracos negros por se fazer o varrimento das prateleiras da memória, com anotações, perdidas umas, recuperadas outras, em cadernos dispersos pelos dias do ano, todas contaminadas por Baudelaire: «a crítica deve ser parcial, política e apaixonada.»

Cinco exposições colectivas: O Círculo Delaunay – Centro de Arte Moderna Artes José Azeredo Perdição/Fundação Gulbenkian; Artes Incoerentes – O Cabinet de Alvess, na Fundação de Serralves/Museu de Arte Contemporânea; Vanguardas e Neovanguardas na Arte Portuguesa – séculos XX e XXI, no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado; Gente, no Centro de Arte Manuel Brito, e a Festa de Ilustração – É Preciso Fazer um Desenho?, em várias galerias de Setúbal.

O Círculo Delaunay reuniu pinturas de Robert e Sónia Delaunay, do seu período pós-cubista, uma parte substancial realizada em Portugal, onde viveram durante a I Guerra Mundial, e dos seus amigos portugueses Amadeo de Souza-Cardozo, Eduardo Viana e Almada Negreiros. Foi por cá, Vila do Conde, que essa sua deriva original do cubismo para a abstracção se afirmou e obliquamente teve cruzamentos com as dos artistas portugueses seus amigos, que, sem se inscreverem nas pesquisas formais do casal Delaunay, a elas estiveram atentos. A exposição, inaugurada nos finais de 2015 e encerrada em Fevereiro de 2016, com obras da colecção do CAM, do Centro Pompidou, entre outras instituições e colecções privadas, foi um excelente mostruário dessa aventura também colectiva, das particularidades do projecto estético dos Delaunay e da importância da sua estadia em Portugal. Sónia e Robert ficaram fascinados pela região minhota, a sua pintura foi bastante influenciada pela cultura popular, as cores dos lenços minhotos, aprofundando as pesquisas sobre o viria a chamar «Simultaneismo».

Artes Incoerentes – O Cabinet de Alvess, uma exposição surpreendente. Manuel Alvess (Viseu, 1939-Paris, 2009) foi um artista praticamente desconhecido do público até 2008, ano em que o Museu de Arte Contemporânea de Serralves lhe dedicou aquela que foi a sua primeira exposição antológica, recuperando-o de um isolamento auto-imposto. Essa mostra abrangeu cerca de 40 anos de carreira, dando a conhecer uma obra diversificada e complexa, composta por pinturas, desenhos, fotografias, filmes, objectos, arte postal e performance. Na sequência dessa exposição, foi incorporado na Colecção de Serralves um conjunto muito significativo de obras de Alvess, que permite desvendar o «artista secreto», como lhe chamaram.

A exposição «Artes Incoerentes: O Cabinet de Alvess», um projecto de Serralves que entrou em itinerância, apresenta um núcleo considerável desses trabalhos, a que agregaram um grupo de artistas também da Colecção de Serralves – Fernando Aguiar, John Baldessari, António Barros, James Lee Byars, Manuel Casimiro, Mauro Cerqueira, Guy de Cointet, Robert Filliou, Ana Hatherly, Alex Hay, Rita McBride, E.M. de Melo e Castro, Jorge Pinheiro, António Sena –, que de algum modo têm visões partilhadas sobre a arte, os processos artísticos, de legitimação da obra de arte, das relações entre a arte e a vida. Uma exposição de certo modo surpreendente organizada por Paula Fernandes e Ricardo Nicolau.

Vanguardas e Neovanguardas na Arte Portuguesa – séculos XX e XXI, exposição organizada pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado (MNAC), nos novos pólos do museu, depois de ocupar os espaços do Governo Civil e da PSP, adjacentes ao seu núcleo inicial. Uma notável exposição, bem representativa de todos os movimentos na arte portuguesa contemporânea, do advento do modernismo, nos primórdios do século XX, às instalações e performances do século XXI, que deu a ver o fundamental da arte contemporânea portuguesa, onde se destacavam as obras de alguns artistas, como Fernando Lanhas, Joaquim Rodrigo ou Lourdes Castro. Um trabalho a sublinhar, realizado pelo MNAC, que desde 2007 não tem dinheiro para efectuar aquisições e que recorreu a coleccionadores privados, a galerias de arte e à Colecção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), que continua controversamente depositada em Serralves.

Gente, no Centro de Arte Manuel Brito, mostrou cem anos de representação humana, de Amadeo de Souza-Cardoso a Pedro A. H. Paixão, na colecção Manuel Brito, um marchand culto e informado.

Uma exposição que sublinhava a centralidade da representação da figura humana, dominante na pintura e na escultura desde que a arte começou a ser reconhecida como arte, até aos dias de hoje, registando os últimos anos, pródigos na radicalização dos modos de ver e de como os artistas dão a ver o corpo humano.

Em Setúbal, a 2.ª edição da Festa da Ilustração – É Preciso Fazer um Desenho?, um projecto de José Teófilo Duarte e João Paulo Cotrim que mobilizou todos os espaços expositivos do concelho e até inventou outros. Dezassete exposições, várias colectivas de ilustradores de nome firmado, com destaque para Desenhar em Cima da Conserva (Nuno Saraiva, que desenhou ao vivo, Susana Carvalhinhos, Lord Mantraste, João Maio Pinto, Pedro Brito, Pedro Pratt, Cristina Sampaio, Dileydi Florez, Pedro Lourenço, Alberto Faria e André Carrilho), Daqui e de Agora – Lugar do Desenho, de ilustradores residentes em Setúbal (Ana Curto, André Antunes, Eurico Coelho, Francisco Vaz da Silva, Helder Oliveira, Paulo Buchinho, Samuel Malaia, Zé Nova), alunos das Escolas Superiores de Arte, de alunos de artes das escolas de Setúbal e até do Estabelecimento Prisional, exposições individuais de Luís Filipe Abreu – Ilustração; Luís Afonso – Bartoon; Nuno Saraiva – Fónix; João Azevedo – É Preciso Sobreviver; João Martins – Resumo da Matéria Dada; Neil Fischer – Cadernos de Viagem.

É Preciso Fazer um Desenho? celebra essa arte que resiste à extinção a que parecia condenada pelas novas tecnologias de reprodução e produção das artes e, contraditoriamente ou não, lhe deram uma respiração que se continua a multiplicar pelos mais diversos suportes. Uma óptima iniciativa que, durante um mês (não será de a prolongar temporalmente?) tornam Setúbal na capital da ilustração, percorrendo extensiva e qualitativamente os trabalhos de artistas ilustradores que a praticam com os mais diferentes objectivos e fins.

Exposições individuais em grande destaque, três: Amadeo de Souza-Cardozo, José Escada, Pedro Chorão.

«Amadeo de Souza Cardoso, Porto-Lisboa, 2016-1916» é a recriação, no Museu Nacional Soares dos Reis, da primeira exposição individual de Amadeo em Portugal, no Porto, faz cem anos agora. Foi uma exposição que deu brado na cidade, entre reacções agressivas e de aplauso, despertando a atenção da imprensa e que antecedeu a realizada um mês depois em Lisboa, recebida com entusiasmo pelos modernistas do grupo de «Orpheu», com Almada Negreiros, no seu estilo tonitruante e superlativo a declarar num manifesto que «a Descoberta do Caminho Marítimo p'rá Índia é menos importante do que a Exposição de Amadeo de Souza Cardoso na Liga Naval de Lisboa».

Não era, nem nunca será, mas é o primeiro grande marco da pintura contemporânea portuguesa desse genial artista atento a todos os ismos da época e que é um dos grandes pintores universais do século XX. A exposição foi organizada por Raquel Henriques da Silva e Marta Soares com um trabalho de grande rigor histórico e estético. A exposição, depois de ter estado do Porto, segue para Lisboa, onde será inaugurada a 12 de Janeiro de 2017, no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado.

José Escada – Eu não Evoluo, Viajo, curadoria de Rita Fabiana, na Fundação Gulbenkian, apresentou a primeira exposição retrospectiva dedicada ao pintor, dando a conhecer um artista que desenvolveu uma obra singular, num vai e vem constante entre abstracção e figuração, e que atravessa a pintura, o desenho, as colagens e os relevos recortados, a ilustração e a realização de murais, pintados e esgrafitados. Eu não Evoluo, Viajo foi, como escreveu José Luís Porfírio, «desejo formulado vai para cinco anos e que encontrou agora uma cabal resposta na exposição do Museu Gulbenkian acrescentado com o acervo do extinto Centro de Arte Moderna. Temos uma exposição e um catálogo preocupado em ir ao encontro da história de José Escada (1934-1980), da sua obra em 205 exemplos entre 1951 e 1980 – praticamente do mesmo tamanho da antologia improvisada no ano da sua morte, mas com outra organização – dos seus escritos e entrevistas, bem como do modo como a crítica sua contemporânea o recebeu com textos fundamentais de José-Augusto França, Rui Mário Gonçalves, Fernando Pernes e Nelson Di Maggio, num catálogo que é um excelente prolongamento da exposição.

A mostra organiza-se em cinco tramos onde a cronologia passa, mas nem sempre manda porque não deve mandar, a não ser nas singulares obras do final da vida do pintor, já que vista no seu conjunto há uma grande unidade na investigação plástica onde uma figuração constante é dissimulada, obliterada, ou transformada no correr dos tempos desde a figurações sacras dos anos cinquenta aos nós que são corpos enlaçados de setenta.»

Exposição igualmente importante foi a retrospectiva de Pedro Chorão, O Que Diz a Pintura, em Lisboa, e que ainda pode ver. São mais de 40 anos de trabalho de um pintor que explorou e pensou a pintura com uma persistência e um saber raros. Pedro Chorão têm um percurso original de pesquisa sobre a pintura e o lugar que ocupa num tempo de hibridização dos géneros nas artes visuais, tornando-a um acto de resistência e de afirmação, seja em formato papel ou em tela. Com trabalhos de 1971 até hoje, tem primeira vez, pela mão de José Luís Porfírio, a retrospectiva que tardava em duas exposições: na Galeria do Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até 19 Fevereiro, na Fundação Carmona e Costa, os desenhos, até 7 de Janeiro.

Num balanço relativo a 2016, deve ser referido o trabalho que tem sido desenvolvido pelo Atelier-Museu Júlio Pomar, actualmente integrado nos equipamentos culturais do município de Lisboa geridos pela EGEAC, com a direcção de Sara Antónia Matos (SAM), também curadora de grande parte das exposições que aí se realizam. A base naturalmente é o acervo doado ao Atelier-Museu Júlio Pomar pelo artista e o objectivo obviamente é a divulgação da vasta e plural produção artística de Júlio Pomar, pelo que é recorrente a utilização de obras emprestadas por coleccionadores públicos e privados, bem como a organização de exposições com base nas obras em depósito noutros espaços, como este ano aconteceu na exposição O Mundo Habitado, no Museu do Vinho da Bairrada, Anadia, comissariada por SAM e Pedro Faro, ou nos desenhos do poeta Bocage que Pomar efectuou para seleccionar os que figuram na estação do Metropolitano dos Altos Moinhos e que foram expostos em Setúbal, na Galeria 11. Curadoria de SAM e Maria Francisca Ribeiro na oportunidade das Comemorações dos 250 Anos do Nascimento do poeta. As programações das exposições no espaço do Atelier-Museu Júlio Pomar têm uma estrutura dinâmica que se deve sublinhar. Este ano começou com a continuação da exposição Júlio Pomar e Rui Chafes: Desenhar, inaugurada em Outubro de 2015, e fecha com Void: Júlio Pomar & Julião Sarmento, que pode ser vista até 29 de Janeiro, ambas com curadoria da directora do Atelier-Museu. São confrontos entre artistas contemporâneos mais jovens e um velho, mas sempre jovem mestre, que desde a inauguração desse espaço tem sido uma constante, com excelentes surpresas. Além dessas exposições, realizaram-se outras duas de muito interesse. Já Reparaste como um Ponto de Interrogação Parece uma Orelha e, como a Interrogação se Faz Escuta, organizada por Maria do Mar Fazenda, e Decorativo, Apenas?, sobre a intervenção de Júlio Pomar nas artes decorativas, as colaborações com a indústria e em projectos de arquitectura, comissariada por Graça Rosendo, onde se explorou a dimensão utilitária da arte disseminando-a pelo quotidiano das pessoas. A completar o programa do Atelier-Museu, o arquitecto José Neves organizou uma exposição e quatro conversas em que participaram 12 artistas e quatro arquitectos: António Bolota, Eduardo Batarda, Fernanda Fragateiro, Francisco Tropa, João Queiroz, José Pedro Croft, Leonor Antunes, Paulo Nozolino, Pedro Costa, Ricardo Jacinto, Rui Chafes, Vera Mantero, Camilo Rebelo, Manuel Aires Mateus, Manuel Graça Dias e Pedro Maurício Borges, com o tema A Arquitectura dos Artistas, sobre a convergência entre as diferentes disciplinas praticadas por esses autores, dentro de um espaço museológico desenhado por Siza Vieira, que fez a reconversão do edifício pré-existente o que por si só é motivo de interesse.

Neste balanço com buracos negros e sem coluna Deve, refira-se as exposições de artistas centrais da arte contemporânea portuguesa, três já desaparecidos: Álvaro Lapa, no Museu da Electricidade, Galeria Quadrado Azul e Casa das Artes de Tavira; António Charrua, na Galeria São Mamede, e Michael Biberstein, na Fundação Eugénio de Andrade; Nikias Skapinakis, na galeria Fernando Santos e nos Artistas Unidos/Teatro da Politécnica; Rui Chafes, na Galeria Filomena Santos, Lourdes Castro, na Culturgest; Eduardo Batarda, no Pavilhão Branco do Museu da Cidade.

Uma nota para a exposição Reencontros na Casa das Artes de Tavira, em que figurava Álvaro Lapa com Joaquim Bravo e Vincent Baldassano, por ser uma exposição com história. Esteve para acontecer nos anos 70 e não sucedeu pela vertigem do pós-25 de Abril, em que, logicamente, as prioridades eram outras. Três pintores encontraram-se no Algarve, em Lagos. Ano 1972, dois artistas portugueses, Álvaro Lapa e Joaquim Bravo, estavam por lá estacionados, o terceiro, o norte-americano Vincent Baldassano, foi lá parar em ano sabático. Firmaram sólida amizade e projectaram realizar exposição conjunta na Galeria Judith da Cruz. Os ventos da Revolução adiaram o projecto. O tempo corre contra esse propósito. Baldassano regressa aos EUA abandonando uma série de telas na galeria. Álvaro Lapa e Joaquim Bravo morrem. A Galeria Judith da Cruz extingue-se. O que se tinha tornado improvável, mesmo impossível, acontece mais de quarenta anos depois na Casa das Artes de Tavira, por iniciativa e empenho de José Delgado Martins e David Evans. Recuperam-se as telas esquecidas de Baldassano. Contacta-se o pintor e as famílias de Lapa e Bravo. Baldassano, volta a Portugal, a Tavira, à Casa das Artes, que realizou a exposição condenada a nunca acontecer. Não é a mesma. É outra, mas tem o mesmo fulgor criativo, celebra a amizade entre os três artistas. Um acontecimento no nosso mundo artístico não tão celebrado nem apoiado como deveria ser, mas isso são malhas com que se tecem as artes neste Portugal, sete letras de plástico para ser mais barato (Alexandre O'Neill).

A quase finalizar referência à fotografia. O destaque vai para a exposição organizada por Pedro Lapa, Fernando Lemos: Para um Retrato Coletivo em Portugal, no fim dos anos 40, no Museu Berardo/Centro Cultural de Belém. São fotografias feitas por Fernando Lemos entre 1949 e 1952. Um impressionante trabalho fotográfico em assumiu que múltiplas direcções, retratando, a preto e branco, a solidão colectiva de uma geração, muitos deles intelectuais marcantes, encerrada num país de costas viradas para o mundo e os ventos da história. Um universo fantasmagórico, recorrendo a várias técnicas fotográficas, sobretudo a da múltipla exposição, o que desdobra gestos e poses. Foi inaugurada em Outubro e é visitável até Abril.

Valter Vinagre é nome com trabalho notável e sólido na história da fotografia portuguesa. Em 2015 apresentou uma série de fotografias, realizadas em três anos de trabalho, intitulada «Posto de Trabalho», que registava construções improvisadas que abrigavam e ocultavam a actividade laboral subterrânea da prostituição à beira das estradas. Não mostravam gente, revelavam gente. Eram registos fotográficos que transformavam esses abrigos em altares profanos. Este ano apresentou-se em duas exposições. Uma é uma variação desse trabalho, fotografando, de 1999 a 2003, um colchão abandonado com um lençol, uma almofada rasgada, a fronha que se foi degradando até desaparecer da paisagem onde era um elemento intrigante e integrante. Seis fotografias de formato quadrado, num preto e branco perfeito que dramatiza a decomposição daquele insólito conjunto a que chamou «A Natureza das Coisas» e esteve na Ermida de Nossa Senhora da Conceição, Belém/Lisboa. Barra das Almas, no Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha, uma série de fotografias que se referem a um tempo onde a máquina não determinava ainda a vida dos homens e as horas e os dias se sucediam não sujeitos ao andar dos ponteiros dos relógios. Os figurantes, um casal de idosos e uma criança enfeitada de frutos como um jovem deus pagão, dão vida a uma vida sem futuro.

Jorge Molder, com um olhar fotográfico sobre o corpo humano que inquieta e é inquietante, apresentou em Lisboa, no Chiado Arte Contemporânea a série Anatomia e Boxe, que em 1997 inaugurou o Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação do Porto. É uma série charneira no trabalho de Molder, com a exposição do corpo submetido à violência da manipulação e da transformação no ringue de boxe e no teatro anatómico.

Em Coimbra, no Centro de Artes da Universidade, Dar a Volta ao Sul, um conjunto de 12 fotografias de José Manuel Rodrigues e 12 textos de Jorge Calado, ficando a pairar a propositada ambiguidade de quem antecedeu a tão íntima relação entre os temas das fotografias e dos textos, ultrapassando a realidade dos factos.

A exposição dos três artistas nomeados para o prémio Photo 2016/Novo Banco – Félix Mula, Mónica de Miranda e Pauliana Valente Pimentel – deu origem a um catálogo com textos e entrevistas aos artistas que complementavam a exposição com reproduções de trabalhos realizados anteriormente e os três dossiers de imagens dos trabalhos concebidos especificamente para o prémio, que foi ganho pelo moçambicano Félix Mula. A fotografia está e recomenda-se, como o comprovam tanto a exposição como o catálogo.

A finalizar, há que anotar mais um filme de Jorge Silva Melo sobre um artista, no caso Sofia Areal, em exposição na Galeria João Esteves da Silva, que intitulou Gabinete Anti-Dor. Jorge Silva Melo, além do teatro e outras artes, tem um grande fascínio pelas artes plásticas e já realizou vários filmes que são documentários sem nunca serem documentários sobre Álvaro Lapa, Ângelo de Sousa, Joaquim Bravo, António Sena, Palolo, Bartolomeu Cid dos Santos, Nikias Skapinakis, Ana Vieira, José Guimarães, um sobre a Gravura, Cooperativa de Gravadores Portugueses. A vez de Sofia Areal estava anunciada, como está anunciado outro em construção sobre Fernando Lemos. Filmes que a partir de Janeiro se poderão ver ou rever no Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva.

Ainda tive a tentação de incluir aqui uma exposição, que teria uma inscrição na coluna do haver e outra na do deve. Não a designarei, deixo isso à perspicácia dos eventuais leitores deste balanço esburacado, por isso aberto, sobre o ano 2016 nas Artes Visuais.

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