|E o mundo é a nossa tarefa

Queixa das almas jovens censuradas

E o mundo é a nossa tarefa é uma escolha semanal de Manuel Augusto Araújo.

Santauro, João Abel Manta, 1989
CréditosJoão Abel Manta

Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete

e uma alma para ir à escola

mais um letreiro que promete

raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário

que tem a forma de uma cidade

mais um relógio e um calendário

onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim

para dar corda à nossa ausência.

Dão-nos um prémio de ser assim

sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu

para tirarmos o retrato.

Dão-nos bilhetes para o céu

levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos

com as cabeleiras das avós

para jamais nos parecermos

connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história

da nossa história sem enredo

e não nos soa na memória

outra palavra que o medo.

Temos fantasmas tão educados

que adormecemos no seu ombro

somos vazios despovoados

de personagens de assombro.

Dão-nos a capa do evangelho

e um pacote de tabaco.

Dão-nos um pente e um espelho

pra pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça

e uma cabeça presa à cintura

para que o corpo não pareça

a forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro

com embutidos de diamante

para organizar já o enterro

do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,

um avião e um violino.

Mas não nos dão o animal

que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão

com carimbo no passaporte.

Por isso a nossa dimensão

não é a vida. Nem é a morte.

Natália Correia, Dimensão Encontrada

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