Luz Eléctrica
Salvo de vela coagulado, enfarruscado pelo pavio…
A unha do polegar esmagada
Daquele vetusto polegar aleijado era pérola franzida,
Quartzo rigoroso, detritos em Cumas,
Na primeira casa onde vi luz eléctrica
Ela sentava-se de pantufas de feltro desapertadas
O ano inteiro, na mesma cadeira, e sussurrava
Numa voz que no seu máximo não fazia
Que sussurrar. Ficámos ambos desesperados
Na noite em que lá me deixaram para dormir, quando chorei
E chorei sobre as cobertas, sob o esbanjamento da luz
Que deixaram acesa no quarto. “Que te molesta, menino,
Que te molesta, valha-te Deus?” Urgente, sibilante,
Aquele molesta remoto e antigo. Águas de caverna assustadoras
Batendo num embarcadouro. E o desamparo dela sem me amparar.
Ceceio e relapsia. Redemoinho de inglês sibilino,
Embates de água entre barco e doca, para os quais,
Animula, eu despertava a tempo
Enquanto os barcos rumorejavam pelo Belfast Lough ao encontro
Do letargo de cabeça contra-o-vidro próprio de um comboio matinal,
Do cerne de “ora-aqui-estás-e-onde-estás-tu'”
Da própria poesia. Traseiras de casas
Como a de casa dela, despensas e calandas
Nos quintais junto à linha de uma Inglaterra fugidia.
Um espantalho banal por entre parcelas de pousio,
Depois um campo de futebol de arrabalde, a estranha distância,
Searas como o Campo de Pano de Ouro.
E eu também vim a Southwark,
saindo da boca do metro para a luz do sol,
Sopro do Moyola junto à “plaga distante” do Tamisa.
De pé na cadeira de costas em arco, eu conseguia
Chegar ao interruptor. Deixavam-me e ficavam a ver-me,
Um toque na pequena pevide esperava a magia
Rodando o botão da telefonia acendia-se a luz
No mostrador. Deixavam-me e ficavam a ver-me
Percorrer à vontade as estações do mundo.
Depois elas desapareceram e o Big Bem e as notícias
Acabaram. O aparelho tinha sido desligado,
Tudo em silêncio por detrás do blackout a não ser
O clique-clique das agulhas de tricot, o vento na chaminé,
Ela sentava-se de pantufas de feltro desapertadas
A luz eléctrica brilhava sobre nós, eu receava
O veio e a unha enegrecida da unha dela,
Com tal dureza de plectro, de tal brilho furta-cor, que ainda deve
Subsistir por entre as contas e vértebras no solo de Derry.
Seamus Heaney/ tradução de Rui Carvalho Homem
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