Perspectivas para as legislativas de França dos dias 11 e 18 de Junho

Quanto à sua ideologia, no France-Inter, em Dezembro de 2014, Macron afirmou «Eu sou socialista». Em Agosto de 2016 afirmaria, no decurso de uma visita a Puy du Fou, «A honestidade obriga-me a dizer-vos que não sou socialista». Já na segunda volta disse que não era de esquerda nem de direita e que o seu programa era de uma economia liberal.

CréditosYoan Valat/EPA / Agência Lusa

A França tem um presidente liberal, que na tomada de posse recriou o lema da Revolução Francesa à sua maneira, e um primeiro-ministro, saído da «maioria» presidencial, que formará governo também à sua maneira, e que procurará uma idêntica maioria parlamentar em Junho.

Muita gente em França está convicta de que seria importante que se constituísse, na futura Assembleia Nacional, uma maioria que contrabalançasse o liberalismo de Macron, e viabilizasse uma maioria com tons de esquerda.

Porém não se estão a esboçar acordos nesse sentido. Na 4.ª feira, a «France insoumise», de Mélenchon, em conferência de imprensa de Martine Billard, Manuel Bompard e Bastien Lachand, continuava a defender ser albergue para militantes de outros partidos, negando estar em curso uma «pesca à linha» de personalidades nomeadamente do PCF, querendo transpor os resultados que teve na primeira volta das presidenciais para a primeira volta das legislativas. E tencionando continuar nas legislativas a batalha contra Marine Le Pen, mas passando do que foi uma maioria contra Marine numa maioria com um programa de esquerda.

Afirmaram que o PCF interrompera abruptamente negociações entre ambos – coisa que este refutou. Pierre Laurent, secretário nacional do PCF no mesmo dia lamentou a interrupção pela «França Insubmissa» de um acordo alargado e nacional que permitisse uma concorrência conjunta às legislativas no maior número possível de circunscrições, acordo com que a França insubmissa só concordaria se fosse tutelada por ela, debaixo do seu programa com a diluição nele dos comunistas…

A ausência de acordos à esquerda poderá levar a uma Assembleia dominada pelo «En Marche!», de Macron e pela FN, de Marine, atendendo ao perverso sistema uninominal eleitoral francês que nas 577 circunscrições, só permitirá a passagem à segunda volta dos partidos que na primeira atingiram 12,5%.

No Partido Socialista, que sofreu nas presidenciais uma pesada derrota resultante da política de Hollande e Macron, ambos como projecto de destruição do PS, também perfilhado por Emmanuel Valls, a situação é de debilidade tanto maior quanto ainda se mantem no seu seio um resto dessa corrente de direita, em torno de Didier Guillaume, que quer apoiar sem condições «a maioria presidencial», a que se opõe uma corrente de esquerda que quer o PS na oposição. No passado dia 9, o PS aprovou um compromisso entre ambas as correntes, definindo uma linha de «autonomia construtiva», anunciada pelo secretário nacional M Cambadélis.

Não são conhecidos contactos consistentes para acordos do PS quer com a «France Insoumise», de Jean-Luc Mélenchon, quer com o Partido Comunista Francês.

Por outro lado, a maioria presidencial que o «En Marche!» prepara, agora em torno da «Republique en Marche», é albergue de boa parte da direita do PS, de restos dos republicanos (alguns dos quais resistem) e de outros partidos e movimentos de direita, mas com Francis Bayrou e o seu MoDEM a queixarem-se de ter poucos candidatos. Ao ex-primeiro-ministro de Valls, foi recusada candidatura como deputado. Caíriam a Torre Eiffel e o Arco de la Défense se tivesse sido aceite e lá se ia o estado de graça de Macron. A République poderá dar-lhe qualquer coisa mais à frente…

Na Frente Nacional (FN), o ex-presidente Jean Marie Le Pen, depois de ter deserdado Marine, criticou a deputada-neta Marion (sobrinha de Marine) por ter suspenso sine die a actividade política, classificando o acto como uma «deserção». O velho Le Pen sonhava contar com ela para se opor à reforma da FN, que está em curso e que poderá levar à sua transformação num novo partido, eventualmente com novo nome e com uma imagem que não seja de extrema-direita, projecto que o pai, há muito afastado pela filha de funções dirigentes, classificou de inaceitável «viragem à esquerda».

Sobre a crítica à Marine Le Pen da extrema-direita e à sua suposta aproximação da esquerda

Que a FN de Marine comporta todos os riscos previsíveis para um partido de extrema-direita, é uma consideração que muitos (não todos) partilhamos mas com pressupostos e alcances diferentes. Mas a crítica feita por Macron para capitalizar a reacção ao Medo atingiu níveis pré-escatológicos… Para o sociólogo francês Jean-Claude Paye, na campanha presidencial francesa muitos eleitores foram bombardeados com mensagens enigmáticas que não tiveram tempo para analisar, mas de que ficam impregnados.

Refere, por exemplo, o caso do comício de Amiens, em que Emmanuel Macron acusou Marine Le Pen de se refugiar junto dos prussianos durante o cerco de Paris em 1870...e por compartilhar a ideologia destrutiva da Alemanha... em 1914. Exclamando exaltado: «Isso não! Isso não! Isso não!». «É claro que não ouvimos esta mensagem, mas compreendemo-la: Marine Le Pen não seria a encarnação da Nação que afirmava ser, mas da Traição. Devemos barrá-la e, portanto, votar Macron». O sociólogo Jean-Claude Paye explica por que poucos reagiram a este delírio cuidadosamente preparado e transmitido com firmeza por todos os canais de TV.

O sociólogo referiu outros casos como o da acusação a Le Pen e aos seus amigos, «de serem refugiados no castelo de Montretout» de compartilharem a mesma ideologia que o agressor e de quererem empurrar a França para uma guerra idêntica. E exclamando veementemente: «Isso não! Isso não! Isso não!». O castelo de Montretout, onde Marine Le Pen foi educada, tinha sido tomado pelos prussianos durante o cerco de Paris em 1870... O termo «refugiados do castelo de Montretout» evoca, assim, uma ligação entre a Marine Le Pen, criança com o rei da Prússia e o imperador alemão Guilherme I… E assim se inventa um nexo de causalidade entre a guerra de 1870, a Primeira Guerra Mundial e a Frente Nacional. Ora Marine Le Pen nasceu em 1968...

Muitos dos eleitores que acabaram por votar Macron fizeram-no a contragosto. Na verdade, o imperativo para votar em Macron, especialmente na segunda volta, não era, geralmente, nem um verdadeiro «sim» nem um verdadeiro «não». Isto mais parece corresponder a uma estrutura psicótica em que nenhuma objecção pode defrontar esse apelo.

Dito isto, importa que fique claro que a identificação expressa de Marine Le Pen com reivindicações dos trabalhadores e com a saída do euro têm, de facto, um carácter populista, por serem alheias a uma perspectiva de diferenciados interesses de classe, que não encontrámos agora nem encontraremos na FN «reformada». Mas esses apoios de trabalhadores e agricultores à FN têm que abalar as esquerdas quanto ao que podem não ter feito até aqui em defesa dos seus interesses eventualmente em benefício de uma clientela cosmopolita mais atraída por «causas fracturantes».

Macron: o candidato que disse tudo e o seu contrário

Apontemos só 3 casos.

Quanto à sua ideologia, no France-Inter, em Dezembro de 2014, afirmou «Eu sou socialista». Em Agosto de 2016 afirmaria, no decurso de uma visita a Puy du Fou, «A honestidade obriga-me a dizer-vos que não sou socialista». Já na segunda volta disse que não era de esquerda nem de direita e que o seu programa era de uma economia liberal.

Em matéria de política fiscal, em entrevista à revista Risques, em Maio de 2016, afirmou sobre o IFS «é preciso preferir taxar a sucessão do que aumentar impostos do tipo do IFS»  mas em 2 de Fevereiro deste ano já dizia «Vou suprimir a parte do IFS que financia a economia», precisando que visava «a posse de acções e o financiamento das empresas».

Quanto à duração da jornada de trabalho, em entrevista ao Obs, em Novembro passado disse «Quando se é jovem, 35 horas não é muito. É necessário maleabilidade e flexibilidade», já num comício em Novembro passado afirmou «A duração legal do tempo de trabalho vai manter-se nas 35 horas», remetendo, porém, para acordos de empresa o seu eventual aumento.

Quanto ao que realmente quer Macron fazer

Procuramos reter aquilo que, de facto, lhe sentimos, como mais importante para ele, no pulsar dos entusiasmos.

Defensor da União Europeia, não está de acordo com a mutualização da dívida passada mas quanto à futura até poderá estar se houver reformas estruturais na UE como a criação de um Ministério Economia e das Finanças para todos os países…

Macron aposta ainda em mudanças na zona euro, como um orçamento próprio para os 19, a criação de um Parlamento dos países da moeda única e do cargo de ministro da Economia e das Finanças do euro atrás referido. O Presidente eleito aposta ainda na coesão, querendo trabalhar para uma harmonização dos direitos sociais – nomeadamente as regras do subsídio de desemprego e salário mínimo. O que, em termos práticos, quer dizer nivelar por baixo

Quer reforçar o eixo franco-alemão, o que, traduzido, quer dizer aceitar a liderança alemã da UE e continuar a isentar a França das consequências por déficite excessivo e saldos negativos, prerrogativas que não aceita para outros países como Portugal, porque diz que desta vez vai reduzir a despesa pública na ordem dos 60 mil milhões de euros durante o seu mandato, comprometendo-se a conseguir o défice de três por cento exigido pelas autoridades europeias.

Macron defende a manutenção do acordo CETA de livre-comércio com o Canadá, cavalo de Troia do TTIP que está a ser discutido pela UE com os Estados Unidos, que beneficia as multinacionais e não os cidadãos, desregulamenta o comércio, fazendo baixar os padrões sanitários e de qualidade na Europa.

Um aspecto também muito grave é o da arbitragem dos denominados tribunais de investimento, sistema privado de administração da justiça entre os investidores e os Estados com que se pretende uniformizar interpretações e acelerar decisões, ultrapassando os tribunais nacionais e mesmo comunitários.

Quanto à legislação laboral, quer ir mais longe do que fizeram Hollande e Valls, introduzindo as «ordonnances», mecanismo através do qual o Parlamento atribui ao Governo competência para legislar em matérias que são da responsabilidade da Assembleia da República.

O diploma é depois votado no Parlamento, mas não é discutido nem pode ser alterado pelos deputados… O que revela um completo desrespeito pela democracia representativa. Já a mudança anterior da lei laboral, altamente contestada nas empresas e nas ruas, foi aprovada sem voto no Parlamento, com o Governo a recorrer ao já famoso artigo 49.3, que permite aprovar um diploma sem voto no Parlamento.

Propõe-se, por outro lado, alargar os acordos de empresa, a que defende dever ser dada primazia, em detrimento da contratação colectiva, que também seria prejudicada.

Quanto à segurança social, Macron quer reduzir as contribuições pagas pelos trabalhadores de forma que quem ganhe 2200 euros brutos consiga… mais 500 euros ao fim do ano, grande truque para dar a ilusão de um aumento salarial sem revelar as consequências que isso terá nas prestações sociais.

Até 2022 quer reduzir em 120 mil os trabalhadores da função pública

O Estado Social vai ser reduzido, aguardando-se intenções quanto a como serão afectados a Educação e a Saúde Pública.

Mas já em matéria de Defesa, quer que os gastos sejam aumentados, com o objetivo de chegar aos dois por cento do Produto Interno Bruto, como reclama o amigo americano.

Pretende reduzir em um terço o número de deputados e senadores, o que irá distorcer ainda mais a proporcionalidade do apuramento de eleitos, já hoje distorcida por uma segunda volta que favorece a «governabilidade» em detrimento do pluralismo. Se bem que também fale ao regresso à proporcionalidade.

Macron pretende centralizar a administração local, reduzindo em um quarto o número de departamentos franceses (estrutura administrativa que se encontra entre as cidades e as regiões). O objectivo é juntá-los às grandes metrópoles.

Quanto à guerra contra a Síria, repescando o requentado dossier das armas químicas que não seriam dos terroristas mas sim da Síria, é categórico: Com ou sem mandato da ONU, no quadro da coligação existente, tomará medidas para neutralizar as capacidades químicas de Bachar al-Assad…

Quanto à Rússia, não tenciona alterar o quadro de isolamento, sanções e diabolização praticado pelo amigo Holland.

O «todos com Macron!» e alguma manipulação rasteira de dados cá por casa

A comunicação social portuguesa, como outras de outros países, teve a pouco digna tarefa de impor a votação em Macron contra a «ameaça fascista» de Le Pen.

E levaram a festa até aos resultados como o director do Público, David Dinis, que afirmou na edição do passado dia 8 que «dois terços dos franceses elegeram Macron Presidente».

Das duas, uma: ou David Dinis é ignorante ao ponto de não saber fazer contas básicas (e não deveria ser director do jornal) ou não é, sabe que está a faltar à verdade (será por isso que é director do Público?).

Ora os resultados finais dizem o seguinte: no cômputo apenas dos votos em ambos, Emmanuel Macron recolheu 66,10% e Marine Le Pen 33,90%.

Descontados que sejam a Abstenção de 25,44% (os que não se deslocaram às urnas para votar) e os 11,47% de Brancos e Nulos (os que foram às urnas, manifestando o seu desacordo com qualquer dos dois candidatos) dos 47 448 929 franceses inscritos nos cadernos eleitorais votaram, nos dois candidatos na segunda volta, 31 340 814, isto é, apenas 66,05 % dos inscritos.

Assim, em Macron votaram na segunda volta 20 703 694 eleitores, ou seja, 43,63% dos inscritos (2 em cada 5 franceses) e em Le Pen votaram 10 637 120, ou seja, 22,42% (1 em cada 5 franceses).

Os eleitores que votaram na primeira volta e se passaram a abster na segunda volta foram 1 463 741. Na primeira volta, o voto de protesto (branco ou nulo) que era de 944 733 votantes, passou a ser na segunda volta 4 066 802.

A título de curiosidade, em Portugal, 13 121 franceses estão inscritos como eleitores em Lisboa e no Porto. Desses votaram 26,5% em Macron (1 em cada 4) e 4,44% (1 em cada 23) em Le Pen.

Estas eleições, outras eleições seguintes e o futuro da União Europeia

O PCP afirmou que «Emmanuel Macron não representa qualquer "virar de página", mas sim a intensificação do programa de exploração e de retrocesso social em França».

Estes resultados, para além de terem derrotado a extrema-direita, vão ser negativos para o povo francês, para os povos da União Europeia, que verão acentuar-se os seus traços mais negativos, e contrários à Paz.

Tal como prevíramos há uns meses, a ameaça da extrema-direita na Europa, que tem, de facto, ficado em minoria, foi o mote para que os governos de «entendimento ao centro» tivessem mais um fôlego. Isso vai confirmar-se com as eleições na Alemanha e na Itália. Depois de isso se ter confirmado até hoje na Áustria, Holanda e agora na França.

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