A recente discussão sobre a cobertura que o jornal Público fez das manifestações dos colégios privados e da marcha pela Escola Pública colocou em evidência um facto inelutável: os jornalistas e os media já não detêm o privilégio e o monopólio da intervenção no espaço público, ainda que a desigualdade de armas seja manifesta e a desproporção de forças e de meios seja gritante.
Sem querer insistir demasiado na tónica dos números, que conduz ao risco de um enviesamento estéril do debate sobre as práticas jornalísticas, vale a pena reflectir um pouco sobre alguns elementos essenciais comparados das narrações em causa.
Na reportagem sobre a manifestação dos colégios (29 de Maio), para cuja mobilização o Público e outros órgãos de informação muito contribuíram, ressalta, logo no primeiro parágrafo, a valoração qualitativa do factor quantitativo, com recurso a notas impressivas: um «mar de gente» que «inunda o largo da Assembleia da República» a tal ponto que os organizadores tiveram de «clamar para que os manifestantes se espremessem».
Foram 40 mil, segundo a organização, «que a PSP não desmente». E teria confirmado? Seria o suficiente para proclamar, em post-título: «Foi a maior manifestação de sempre dos colégios privados e uma das maiores dos últimos anos na área da educação».
No trabalho sobre a marcha pela Escola Pública (versão actualizada às 18h45 de 18 de Junho), o jornal investe título e post-título na desvalorização da iniciativa: «Manifestação pela escola pública junta alguns milhares de pessoas em Lisboa» e «Secretário-geral da Fenprof diz que estiveram mais de 80 mil na rua, mas segundo a PSP participaram na manifestação cerca de 15 mil pessoas». Ao quinto parágrafo, faz o contraponto com os 40 mil da manifestação amarela.
A obsessão com os números vai ao ponto de a reportagem de 18 de Junho não conceder a palavra ao secretário-geral da Fenprof, senão para Mário Nogueira saudar a «massa de gente» e a «grande manifestação», negando-lha quanto às questões de fundo abordadas na sua intervenção. Não há uma palavra sobre o seu conteúdo.
Além da desvalorização da importância da marcha de 18 de Junho e de outros aspectos, há um elemento distintivo das duas reportagens que deve ser realçado: o tratamento dado à presença – e ao significado desta – de dirigentes partidários em ambas as iniciativas.
Na primeira, surgem, no correr do texto, os nomes da presidente do CDS, Assunção Cristas, e dos deputados Pedro Mota Soares (CDS) e Duarte Pacheco (PSD) – todos com direito natural a integrar a manifestação, bem como a produzir e a ver reproduzidas declarações contra o governo e contra a Fenprof.
«Apesar do poderoso aparelho mediático que influencia e comanda muitos aspectos das nossas vidas há uma frente de resistência e de combate a ganhar terreno»
Na segunda, que o Público classifica como «uma manifestação de apoio ao governo», o jornal não deixa o leitor sem dúvidas. «Marcha apoiada por partidos», escreve em entretítulo, esclarecendo depois que se tratava do PS, do PCP e do BE e colocando Jerónimo de Sousa e Catarina Martins «no palco», «ao lado» de Mário Nogueira (o que é falso e que o jornal só corrigiu na edição electrónica na noite do dia seguinte). A nenhum concedeu uma sílaba que fosse para reprodução de declarações aos jornalistas.
Bem sabemos que o pluralismo dos media não se afere ao centímetro quadrado de jornal, nem ao segundo em rádio ou televisão. Mas talvez tenha algum interesse a estatística das duas reportagens: a dos colégios utilizou 1186 palavras e 7198 caracteres de texto; a da Escola Pública teve 855 palavras e 5052 caracteres (versão em linha).
Mais: a primeira reportagem electrónica apresenta uma foto-galeria de 21 imagens: a segunda reduz a cobertura a seis fotografias, com planos fechados, impedindo uma leitura visual do conjunto e da real dimensão da marcha.
Ora, nesse mesmo dia e especialmente de forma instantânea ao longo da iniciativa, largos milhares de fotografias e de vídeos foram sendo distribuídos por participantes nas redes sociais e por activistas de meios alternativos digitais.
Com mais ou menos recursos e cuidados técnicos, maior ou menor requinte estético, eles foram mostrando o seu modo de observar o acontecimento, disponibilizando no espaço público um conjunto de elementos imediatamente contrastáveis com a informação oferecida pelos media jornalísticos e permitindo aos leitores confrontar o jornal com os dados que veiculava.
A primeira ilação a extrair deste episódio – exemplar entre muitos outros das práticas dos órgãos de comunicação social – é a de que a ampliação do acesso e da utilização de tecnologias de captação e transmissão de imagens e dados, bem como a sua disponibilização no espaço público, corresponde a um expressivo aumento da capacidade de escrutínio das práticas jornalísticas pelos cidadãos.
A segunda e muito importante conclusão é a de que os cidadãos, tendo ao seu alcance cada vez mais meios para cruzar, verificar e comparar as informações veiculadas pelos grandes meios, mas também de partilhar as suas críticas e informação alternativa, estão a tomar maior consciência das omissões, entorses e manipulações a que são sujeitos – e a reagir.
Apesar do poderoso aparelho mediático que influencia e comanda muitos aspectos das nossas vidas, subordinado a um indisfarçável consenso ideológico e a uma agenda inseparável dos grandes interesses das classes dominantes comum aos grandes meios de informação, há uma frente de resistência e de combate a ganhar terreno.
Das formas individuais de participação cívica e discussão nas redes sociais, produzindo, agregando e distribuindo informações, à intervenção colectiva no espaço público através de blogues e de sítios de reflexão, crítica, denúncia, intervenção e mesmo de informação alternativa, os cidadãos estão a furar o cerco de silenciamentos e deturpações.
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