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'tamos safos!!!

E foi ouvir falar de «vitória», de que «vale a pena bater o pé», de que «a crise já havia ficado para trás», de que se tratava apenas de «ver, lá mais para a frente, se os possíveis cortes nos ‘fundos estruturais’ iriam ou não por diante»... Será que ouvi bem?

Fotograma do documentário «Bruxelles, le vrai pouvoir»
Créditos

São 14h53, de quarta-feira, 27 de Julho, e, num movimento rotineiro, acabo de me sentar ao computador, para dar umas voltas. Bem vistas as coisas, não era, afinal, verdadeiramente, a rotina do costume. Alguma coisa me impelia talvez a escrever umas linhas. Seria o Jornal da Tarde, que acabara de ver, há minutos, na SIC Notícias, e que me parecera ter começado em verdadeiro alvoroço, ao estilo do título acima?

É que já não era apenas a certeza quase peremptória da primeira manchete escolhida — qualquer coisa do género: «Afinal, não haverá sanções para Portugal!» —, mas também (e continuando a citar livremente) o tom escolhido pela pivot de serviço e, ainda, em geral, com mais ou menos jeito ou trejeito, as declarações quase tornadas unânimes (com uma única excepção) dos partidos logo ouvidos a propósito daquela decisão matutina de Bruxelas.

E foi ouvir falar de «vitória», de que «vale a pena bater o pé», de que «a crise já havia ficado para trás», de que se tratava apenas de «ver, lá mais para a frente, se os possíveis cortes nos ‘fundos estruturais’ iriam ou não por diante»...

Será que ouvi bem?

Até o ministro Santos Silva, que, estranhamente, já na véspera, na entrevista com a «excitadíssima» Cristina Esteves, no Telejornal da RTP, me soara (como dizer?) um pouco «ao antigamente», falava agora, de forma solene, de qualquer coisa como «uma vitória para Portugal e para a Europa». E até já se anunciava uma comunicação ao país (pois claro!) do Presidente da República, para meio da tarde (e repetição em todos os Telejornais) acerca da citada resolução.

«E o filme é ainda sumamente interessante por desvendar e antecipar o percurso posteriormente (ou anteriormente) percorrido nas altas esferas do poder económico e empresarial»

Não é que eu seja, por natureza, desconfiado (sou lá agora!) ou que tenha estranhas tendências para o «quanto pior melhor» ou que não reconheça o esforço sincero do Governo nas sucessivas e trabalhosas acareações com Bruxelas, acabadas (?) de acontecer, ou que padeça mesmo de outros vícios de raciocínio de que tantas vezes acusam os mais cépticos e realistas.

É que me pus a pensar, sobretudo, se não andava tudo a ficar um pouco distraído — pior ainda, se não andava tudo a querer distrair-nos! —, ao sobrevalorizar em demasia e de forma tão unânime uma decisão sem dúvida positiva no seu imediatismo e aparência (mas enviesada na formulação), para afinal melhor se esconderem ou disfarçarem outras decisões futuras, porventura mais gravosas, relacionadas ou não com renovadas e insistentes chantagens a propósito do Orçamento do Estado para 2017, as quais não deixaram, aliás, de ser referidas, com toda a «clareza» (excepto para quem não as quis ouvir), pelos mesmos burocratas-porta-vozes-de-Bruxelas...

Foi ainda cogitando nisto que pensei na coincidência de ter passado muito recentemente na televisão um extraordinário e elucidativo documentário, a não perder de forma alguma e para o qual gostaria de chamar a vossa particular atenção, alinhavando meia dúzia de comentários em jeito de aperitivo. Sim, porque, embora já transmitido no canal TVCine2 (da TV Cabo) na passada segunda-feira, 25, e, pelos vistos, sem repetição anunciada, ainda podem vê-lo com olhos de ver, aqui, antes que desapareça!

Concebido por Christophe Deloire e Christophe Dubois, e realizado por este último, permito-me dar-vos, antecipadamente, algumas pistas, para aguçar o apetite. Embora datado já de 2013, mas, no fundo, actualíssimo no que aqui mais nos interessa, ele revela-se, acima de tudo, implacável na avaliação do cinismo, da hipocrisia, da sobranceria com que se funciona em Bruxelas, no achincalhamento infligido, quando necessário, a representantes de governos eleitos ou no vergonhoso desprezo pela independência e soberania dos países.

E o filme é ainda sumamente interessante por desvendar e antecipar o percurso posteriormente (ou anteriormente) percorrido nas altas esferas do poder económico e empresarial por algumas das personagens mais sinistras que, palmadinhas nas costas, por ali vemos a deambular, conspirar e decidir pelos meandros da Comissão, do Conselho e de outros organismos superiores da União Europeia.

Realizado de forma escorreita, com um texto ao mesmo tempo secamente informativo e tocado por um humor q.b., ao melhor estilo de um verdadeiro documentário de investigação jornalística, tudo começa em 28 de Junho de 2012, com a chegada ao aeroporto de Bruxelas das delegações dos (então) 27 Chefes de Estado e de Governo europeus, com o cortejo das limusinas, as rigorosas medidas de segurança e a pompa e circunstância de que se reveste mais uma das quatro cimeiras que, no mínimo, todos os anos reúne esta gente na capital belga.

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De origem francesa, o documentário segue, sobretudo e naturalmente, François Hollande e outros dignitários franceses. Hollande, essa risível esperança pós-eleitoral francesa, o socialista que finalmente iria bater o pé e pôr em causa tudo e todos, pela primeira vez presente em semelhantes assados, sorrindo à esquerda e à direita!

E ei-lo que é antecedido, nas declarações de circunstância, à entrada do edifício, por Angela Merkel, tal como todos os outros assertoando antes o casaco da farda do costume, que jamais abandona, antes de se dirigir aos jornalistas: «A questão importante é o reforço do Pacto Fiscal.» Já David Cameron (sempre com um pé dentro e outro fora) admite, sem vergonha: «Compreendo perfeitamente (e em muitos aspectos partilho) a opinião dos que pensam que Bruxelas tem demasiado poder.» Por último, nesta primeira e simbólica amostragem, o próprio Hollande mostra-se definitivo: «Venho aqui com o espírito de dar à Europa a força, a coerência, a solidariedade necessária! Obrigado!» Como prometera durante a campanha eleitoral, ele vinha, coitado, exigir a criação de um Pacto de Crescimento para a Europa... e vê-lo-íamos pouco depois em bolandas pelos vários corredores, em busca de poiso e gabinete para receber as primeiras informações (talvez melhor dizendo: as primeiras instruções!)

Entretanto, na grande sala de reuniões, arranjando as respectivas figuras para que as câmaras os surpreendessem na melhor das disposições, íamos (re)conhecendo-os a todos: o belga, sempre de papillon e com ar meio apatetado, a loira dinamarquesa (que uma vez tínhamos vislumbrado, no funeral de Mandela, a trocar olhares, sorrisos e selfies com Obama, perante o sobrolho reprovador de Michelle...), e, claro, o inefável Barroso, mestre de cerimónias, já então ansiando, porventura, pela chegada do «período de nojo» que lhe tornasse menos vergonhoso o recente pulinho para o Goldman & Sachs.

Recordemos que estamos em Junho de 2012 — eram ainda também os primeiros tempos de Passos Coelho (também ele captado em meio de uma panorâmica) — e que em quatro anos muita água passou sob as pontes, muito foi acordado e discordado, dito e redito, prometido e depois recusado, combinado e depois traído, tão amigos que eles eram, tão amigos que eles são...

Corridos os jornalistas para a grande sala de imprensa onde 700 deles irão esperar horas, até de madrugada, pela saída das decisões, é tempo de começar a tratar delas a sério! A 27!

E a câmara, expulsa do antro, vai agora, na medida do possível, descobrindo o que é mostrado e o que é escondido. São sobretudo dois, os patrões que tudo manobram e mandam vir, jamais se envergonhando do que dizem:

Primeiro, Barroso (então Presidente da Comissão Europeia): «Não pode haver nem complacência, nem sinais negativos, porque os mercados estão ainda tensos e voláteis.»  «(...) É importante pôr a nossa casa em ordem (...).»

«Ouvimos a seráfica e transitória vice-presidente da Comissão Europeia, Vivienne Reding, proferir com voz pausada asserções ou enormidades definitivas como estas: "(...) Se a Europa quer existir e sair da crise, as nações devem obedecer a Bruxelas".»

Quanto a Van Rompuy (então Presidente do Conselho Europeu): «(...) É verdadeiramente importante comunicar de maneira positiva sobre todos estes elementos e não criar quaisquer dúvidas sobre a nossa determinação: alguns quereriam ir mais longe mas temos a necessidade de uma mensagem unificada e coordenada sobre este pacote (...).»

Perante esta «operação de comunicação política», sem dúvida destinada a esconder a crise, o único a destoar e a enfrentar a realidade parece ser Jean-Claude Trichet (presidente do Banco Europeu), do qual, pelo menos, é citada a seguinte passagem: «(...) Estamos muito atrasados. Os 440 mil milhões continuam a não estar disponíveis. Eu percebo que devemos comunicar de maneira positiva mas, entre nós, sejamos lúcidos: já levámos 15 meses para realizar a nossa promessa (...)».

E é então que o documentário começa verdadeiramente a levar-se a sério e a investigar a enormidade do Monstro. E já nem sabemos o que mais nos vai espantar.

Chegada a hora de uma das habituais reuniões do chamado Colégio de Comissários, começamos a vê-los desfilar. Acompanhamos, por exemplo, o francês Michel Barnier, antigo ministro de Jacques Chirac e de Nicolas Sarkozy (o que, desde logo, lhe dá as máximas credenciais), à época do documentário comissário europeu encarregado do Mercado Interno, funções pelas quais arrecada 20.667€/mês. Seguem-se, por ordem de entrada em cena, o irredutível e arrogante Joaquín Almunia, o espanhol homem de mão dos grandes monopólios, comissário para a Concorrência; ou ainda a dissimulada luxemburguesa Vivienne Reding, vice-presidente da Comissão Europeia e comissária da Justiça.

Um pouco mais à frente, completando a ronda pela ampla mesa redonda da reunião, a câmara demora-se um pouco mais sobre Karel de Gurt (?), não por acaso comissário do Comércio, descrito como ultra-liberal e detentor do poder de proteger ou não a produção nacional dos vários países, taxando ou não os produtos da concorrência extra-europeia, cuja pose imponente e frieza das declarações contrasta com a aparente insignificância e mediania de outros figurões menos conhecidos do espectador comum mas também eles habituais frequentadores dos gabinetes da Banca, das grandes Corporações ou das Trilaterais, com passagem por Bilderberg.

Entretanto, o verdadeiro salto qualitativo do filme — o momento em que o visionamento do documentário mais impressionante se torna — é aquele em que a câmara mergulha no interior de um gigantesco edifício de fachada em vidro, percorrendo infindáveis corredores repletos de gabinetes relativamente modestos e até espartanos, e não muito grandes mas suficientemente aquecidos e alcatifados para que centenas e centenas de jovens funcionários na ordem dos 30/40, todos eles formatados nas fábricas de economistas e estatísticos do «pensamento único» e da ideologia «ultra-liberal» que pululam um pouco por todo o mundo — de Lisboa a Liubliana, de Paris a Chicago, de Budapeste a Frankfurt — e que ali espiolham as contas públicas dos 27 estados europeus, perpetrando, entre um snack e um Starbuck, dezenas de relatórios implacáveis que servem de alento e inspiração aos 27 comissários.

Mas agora, cala-te boca! Não querendo privá-los do espanto e do surreal que poderão ouvir, com a maior das canduras, da meia dúzia desses burocratas que o documentário segue no seu trabalho insano e fora deste mundo, deixem-me terminar simbolicamente estes apontamentos com a referência a duas reuniões que o filme documenta com o maior pudor e rigor, eximindo-se até ao comentário off, tal a dimensão quase demencial do que é mostrado.

Numa primeira delas, o espectador pode assistir, verdadeiramente atónito, como Bruno Le Roux, chefe do Grupo Parlamentar do PS na Assembleia Nacional Francesa — enquanto representante de um think tank socialista europeu em deslocação expressamente marcada para Bruxelas — é tratado com os pés, de uma forma verdadeiramente estarrecedora, num frente a frente com o sinistro e já citado Almunia.

Numa segunda reunião, vemos outra comissária já citada, Vivienne Reding, agora em Paris, numa audição e troca de impressões para a qual havia sido convocada, perante uma Comissão Parlamentar da Assembleia Nacional Francesa, na qual passam pela câmara rostos conhecidos, então deputados, como Bernard Cazeneuve (hoje ministro do Interior) ou Pierre Moscovici (hoje, por ironia ou não, destacado comissário europeu para os Assuntos Económicos), uma reunião destinada à discussão dos «métodos de controlo das finanças públicas francesas».

Numa sequência de antologia, em que a montagem se processa numa cadência progressivamente inquietante, mostrando em sucessivos «planos de corte» os rostos de espanto, o desconforto nas cadeiras, as trocas de olhares estarrecidos e a mais completa sensação de vergonha por parte de tão ilustres deputados, ouvimos a seráfica e transitória vice-presidente da Comissão Europeia, Vivienne Reding, proferir com voz pausada asserções ou enormidades definitivas como estas: «(...) Se a Europa quer existir e sair da crise, as nações devem obedecer a Bruxelas (!). (...) Perdemos muito tempo, perdemos dez anos durante os quais não agimos, porque não vimos a necessidade de o fazer em comum e é mais do que tempo de recuperar esta oportunidade perdida porque já vimos o que nos custou não ter criado os instrumentos necessários para poder intervir. É necessário, lentamente mas seguramente, compreender que deixou de haver políticas internas nacionais, nada mais há do que políticas europeias que são partilhadas numa soberania comum (...).»

E é assim que as coisas se passam com a França! Como é que o leitor julgará que elas funcionam em relação ao nosso periférico «jardim, à beira-mar plantado»?

Veja, veja o filme e, sobretudo, pense sobre ele e aconselhe-o aos amigos. Que é o que eu acabei de fazer.


Bruxelles, le vrai pouvoir
(Bruxelas, o Verdadeiro Poder)

Ano: 2013

Concepção: Christophe Deloire e Christophe Dubois

Documentalista: Sharon Hamonou

Edição: Pascal Ariel e Alexis Grillet

Realização: Christophe Dubois

Uma produção Elephant Doc com o apoio do Centro Nacional de Cinema e Imagem Animada e a participação de France Télévisions

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