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Não deixar esquecer a luta dos operários conserveiros

A União dos Sindicatos de Setúbal (USS/CGTP-IN) e a URAP realizam, a 13 de Março, em Setúbal, um acto público conjunto para assinalar a luta de 1911 e «os fuzilamentos de Setúbal».

Estátua dedicada a Mariana Torres, no Largo da Fonte Nova, Bairro do Troino, em Setúbal. 
CréditosOrlando Almeida / Evasões

A acção vai evocar a memória de um momento fundamental da história dos trabalhadores portugueses, em que «os trabalhadores conserveiros lutavam pelo aumento do salário e viram a sua luta reprimida pela recém-criada GNR, tendo originado a morte dos operários António Mendes e Mariana Torres», refere o comunicado da União dos Sindicatos de Setúbal (USS/CGTP-IN), enviado ao AbrilAbril.

A greve de Setúbal arrancou no final de Fevereiro, pela mão das mulheres empregadas nas fábricas de conservas da região, que pretendiam passar a auferir 50 réis independentemente de se tratar de trabalho diurno ou nocturno. A República tinha sido declarada apenas cinco meses antes.

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Quando a República começou a matar trabalhadores em luta

A repressão e a propaganda contra esta greve em Setúbal foi um momento especialmente marcante. E não foi um episódio isolado. Pelo contrário, inaugurou um padrão que se repetiu com certa frequência.

Trabalhadores à frente de fábrica de conservas em Setúbal. Foto de artigo da revista «Ilustração Portuguesa» (1910)
Créditos / Museu Digital da Indústria Conserveira

I.

Há 110 anos atrás, em Março de 1911, a cidade de Setúbal foi o epicentro das contradições de classe da jovem República portuguesa.

Dois operários (Mariana Torres e António Mendes) foram mortos a tiro pela novel Guarda Nacional Republicana.

O então secretário-geral da União de Sindicatos de Setúbal, Carlos Rates, foi preso político.

Pelo menos seis civis ficaram feridos, à coronhada e a tiro.

Assim se respondeu a uma greve de mulheres operárias (da indústria de conservas de peixe), que reclamavam um pequeno aumento salarial. E às quais se tinham associado outros trabalhadores.

Do lado da GNR, três militares foram feridos à pedrada.

II.

Como é que isto aconteceu?

Realizou-se na altura um inquérito oficial, pelo qual foi responsável um destacado republicano, José de Castro, que até viria a ser primeiro-ministro (em 1915).1

«Pois quê?! O tribuno, que nos ensinou a palavra de revolta contra todas as prepotências, cobre com o seu silêncio, senão com o seu incitamento, o espingardeamento do povo, por banda dos soldados da Guarda Republicana, que devem ter sido educados (?) na mesma escola dos da extinta Guarda Municipal, que tantos protestos suscitaram antes do 5 de Outubro?!»

Rui Forsado, sindicalista, 1911

Ele tocou no problema de fundo, ao apontar que a classe operária vivia «uma existência miserável». Mencionou a intransigência patronal, na recusa do aumento salarial reivindicado. E até reconheceu uma certa falha por parte da força da ordem, dizendo em concreto que «não cumpriu as disposições regulamentares no carregamento das armas, na falta dos três avisos que deixou de fazer e nas vozes de ordenança».2

Mas o seu dedo acusador apontou para a organização sindical...

Nas palavras de José de Castro, uma das causas «próximas» dos «acontecimentos» foi «ter havido promotores da greve ou antes perturbadores da ordem pública como José Carlos Rates, Artur, de profissão soldador, e Vitória de Oliveira, presidente da associação de classe [sindicato] das operárias, que recebe 12$000 réis mensais, das suas companheiras, deixando de trabalhar na fábrica para o efeito de se entregar à defesa dos interesses destas».3

III.

Munido deste relatório, o então ministro do interior, António José de Almeida, foi mais eloquente, como era seu timbre.

A seu ver, «os operários, verdadeiros e autênticos trabalhadores», esses eram «bons» e «dóceis». Tinham um «espírito de resignação». E pela sua «alma cândida» era «raro passar uma nuvem de revolta».4

O problema era haver uns «perturbadores da paz social», que eram uns «degenerados representantes de antigos fadistas, escória humana» e «canalha de aluguer, que andava a soldo dos agentes monárquicos».5

Para este governante, futuro presidente da República (em 1919/23), «os operários, desnorteados por proclamações incendiárias», tinham-se lançado num «movimento irrefletido e sem razão de ser», pervertido pela intervenção desses «miseráveis»...6

Esta propaganda anti-sindical da Primeira República somou-se à que já vinha da monarquia e à que se seguiu depois, sob longos anos de ditadura. Dos sindicalistas daquele tempo ficou difundida uma imagem turva, de que eram uns extremistas pouco reflectidos, senão mesmo terroristas. Imagem essa que algumas abordagens superficiais tendem a reproduzir. E que não corresponde à realidade.

IV.

Um dos sindicalistas mais prestigiados nesse período histórico, no sector dos empregados do comércio, foi o alentejano Rui Forsado, natural de Elvas. Em 1911, ele era um jovem democrata republicano. Alguns anos depois é que aderiu ao velho Partido Socialista Português (de cariz operário e marxista). E fê-lo certamente com um travo de desilusão face ao novo regime.

Em 1911, Rui Forsado foi outro republicano que na altura analisou a repressão contra esta greve em Setúbal. E sobre ela deixou um documento histórico que bem merece aqui ser reproduzido:

«Sobre os morticínios de Setúbal – Chega-me pelos periódicos a nova – e bem dolorosa que ela é! – que, durante um protesto do operariado setubalense, a Guarda Republicana fuzilou uns tantos protestantes.

Sem querer indagar das razões do protesto operário – e elas devem existir com certeza, visto que os trabalhadores não se queixam sem motivo poderoso – naturalmente o meu coração sofre com tal notícia, lamentando que a poucos meses da implantação da República, a massa popular já comece a descrer dos princípios democráticos e a apontar a traição dos tribunos.

Oficina de mulheres, em fábrica de conservas em Setúbal. Foto de artigo da revista «Ilustração Portuguesa» (1910) Créditos / Museu Digital da Indústria Conserveira

Com efeito, os tribunos, ao trovejarem indignados protestos, justamente, contra a monarquia dos Braganças e os seus partidos políticos, pondo a nu o sofrimento dos humildes, tomaram o formal compromisso de, uma vez proclamado o regime republicano, atenderem às reivindicações das classes obreiras, garantindo uma maior liberdade, sobretudo quando calhe de reclamar um pouco do muito que tanta falta faz a quem trabalha.

Afinal, bem cedo acabou a lua de mel da República nas suas bodas com a massa popular!

E é ministro do interior o sr. António José de Almeida, que escutei há menos dum ano […] a quem ouvi fazer a apologia da violência, quando o exemplo parta de cima, no tocante ao esmagamento do povo, que sofre, trabalha e se sacrifica pelo bem estar da comunidade!

E é ministro do interior, o director da «Alma Nacional», o rubro panfleto que, qual bíblia dos princípios democráticos, nos ensinou o evangelho redentor dos escravos!

Tenho-a aqui, na minha frente. Folheio-a, ao acaso. E chego a duvidar da normalidade das minhas faculdades mentais...

Pois quê?! O homem, que traçou estas linhas, é o mesmo que, agora instalado no Terreiro do Paço, ordena ou consente o fuzilamento dos operários de Setúbal, porque, decerto, reclamavam mais pão e liberdade?!

Pois quê?! O tribuno, que nos ensinou a palavra de revolta contra todas as prepotências, cobre com o seu silêncio, senão com o seu incitamento, o espingardeamento do povo, por banda dos soldados da Guarda Republicana, que devem ter sido educados (?) na mesma escola dos da extinta Guarda Municipal, que tantos protestos suscitaram antes do 5 de Outubro?!

Pois quê?! O democrata, que conheceu as prisões do rei, por gritar a rebelião contra as prepotências da monarquia, bandeia-se com os janízaros, autores dos fuzilamentos de Setúbal?!

Não! Não pode ser!

A menos de um semestre da República, ainda quando se vivia a rósea hora do romantismo político, não tinha o direito de tingir as suas mãos no sangue do povo, que por ela se bateu e que por ela se sacrificou!

Enquanto poupa os inimigos, aqueles que ainda a hão de fazer passar maus bocados, aperra as escopetas e vá de fuzilar os trabalhadores, aqueles a quem um dia disseram que a República lhe proporcionaria melhor viver!

Quiméricamente quereria a massa proletariana, que no dia seguinte expropriassem campos, minas, fábricas e oficinas, dando-lhes tudo de mão beijada, sem organização técnica e sem medidas de garantia de vida aos possivelmente expropriados, a trouxe-mouxe, como soe dizer-se?

Creio bem que não. Por motivos de vária ordem, bem conhecidos, mesmo até dos beneficiados, que têm o toutiço no seu lugar, tal não era concebível.

Mas, o que poderia vir – e já era tempo de ter vindo – era uma série de medidas, que atendessem às justas aspirações do proletariado, de facto provando que a República era essencialmente democrática, e não um regime burguês, ao cabo, a monarquia virada do avesso, sem o D. Manuel de Bragança no paço das Necessidades, mas com outros reisinhos no Terreiro do Paço, dando visos de verdade àquele popular dito, que nos manda fugir a sete pés da justiça nova e da rameira velha...

Pelos menos, nesta hora lúgubre, o operariado setubalense assim deve cuidar, dando ao diabo o entusiasmo com que saudou o advento da República, naquela manhã de Outubro, ainda não hã um semestre, maldizendo umas bodas, que foram tão curtas!...»7

V.

As contradições de classe da Primeira República já tinham começado a vir à superfície anteriormente, com as restrições colocadas pela lei da greve (em Dezembro de 1910), e com as resistências à aprovação de uma lei que limitasse o horário de trabalho no comércio.

Mas a repressão e a propaganda contra esta greve em Setúbal foi um momento especialmente marcante. E não foi um episódio isolado. Pelo contrário, inaugurou um padrão que se repetiu com certa frequência. E que constitui um factor fundamental para se analisar a história do sindicalismo e do movimento operário em Portugal nesse período. A par da falta de melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora.

E sem esquecer o pior que veio depois, sob ditadura...


Investigador

  • 1. À época, sob a Primeira República e depois sob o «Estado Novo» até ao 25 de Abril de 1974, a função de primeiro-ministro em Portugal tinha uma designação diferente, dizia-se «presidente do conselho de ministros». Mas era a mesma função, como chefe de governo.
  • 2. República, Lisboa, 23 de Março de 1911, p. 1/2
  • 3. ibidem, p. 1
  • 4. República, Lisboa, 22 de Março de 1991, p.1
  • 5. ibidem
  • 6. ibidem
  • 7. Forsado, Rui (1934), Para o calvário (jornadas dum caixeiro), Caldas da Rainha: Edições Solidariedade, p. 33/35
Tipo de Artigo: 
Opinião
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Autor de Artigo Livre: 
Luís Carvalho

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Esta luta foi mobilizando cada vez mais sectores do operariado, culminando no dia 13 de Março, quando os patrões de duas conserveiras da cidade procuram contornar os efeitos da greve substituindo os trabalhadores ausentes. Os confrontos que se verificaram entre as largas centenas de grevistas, aglomerados na Avenida Luísa Todi, e agentes da GNR que escoltavam os patrões, culminou no assassinato dos operários António Mendes e Mariana Torres.

Em resposta à acção criminosa por parte das forças policiais da recém-formada República, os trabalhadores da Região de Lisboa e Alentejo convocam a primeira greve geral em Portugal, que se realizou dias mais tarde, a 20 de Março de 1911. Dezenas de milhares de trabalhadores abandonam os seus postos de trabalho em solidariedade com os operários de Setúbal.

Por tudo isto, «lembrar a luta dos operários conserveiros é lembrar a actual luta pelo aumento de salários, pela redução do horário de trabalho e por melhores condições de trabalho».

A iniciativa terá lugar às 10h, no Largo da Fonte Nova, no Bairro do Troino, em Setúbal. No dia 8 de Março de 2016, a Câmara Municipal de Setúbal, no contexto das comemorações do Dia Internacional da Mulher, inaugurou uma estátua dedicada a Mariana Torres, operária conserveira assassinada em 1911 durante uma manifestação em defesa dos direitos dos trabalhadores. 

Maria das Dores Meira, então presidente da autarquia sadina, valorizou, na cerimónia de inauguração da estátua da autoria de Jorge Pé-Curto, a firmeza e o exemplo dos trabalhadores, representados nesta «mulher, que não se vergou à pobreza, que não receou a opressão, que fez da coragem a única arma».

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