|Restauração

A questão salarial na restauração: uma perspetiva marxista

Como trabalhadores da restauração, marxistas ou não, é nosso dever consciencializar os colegas e amigos da exploração de que somos vítimas, quebrar ciclos de abuso e estabelecer relações de cooperação e camaradagem.

The Kitchen at Delmonico's, 1902 
Créditos / pt.wikipedia.org

Por vezes é importante olhar para os textos antigos para refletir sobre problemas atuais. Com este ensaio pretendo fazer uma breve análise das características inerentes ao trabalho em cozinhas profissionais à la carte de restaurante e hotel, cruzadas com pontos-chave da obra Trabalho assalariado e capital, de Karl Marx. Sem pretensões académicas nem científicas, esta é uma série de anotações que parte da minha própria experiência, como cozinheira e chefe de cozinha em vários restaurantes de referência da cidade de Lisboa, e dos relatos dos meus amigos e colegas, que trabalharam também noutras cozinhas.

O texto de base encontra-se disponível online em:

https://www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm

       «O servo pertence à terra e rende frutos ao dono da terra. O operário livre, pelo contrário, vende-se a si mesmo, e além disso por partes. Vende em leilão oito, dez, doze, quinze horas da sua vida, dia após dia, a quem melhor pagar, ao proprietário das matérias-primas, dos instrumentos de trabalho e dos meios de vida, isto é, ao capitalista. O operário não pertence nem a um proprietário nem à terra, mas oito, dez, doze, quinze horas da sua vida diária pertencem a quem as compra. O operário, quando quer, deixa o capitalista ao qual se alugou, e o capitalista despede-o quando acha conveniente, quando já não tira dele proveito ou o proveito que esperava. Mas o operário, cuja única fonte de rendimentos é a venda da força de trabalho, não pode deixar toda a classe dos compradores, isto é, a classe dos capitalistas, sem renunciar à existência. Ele não pertence a este ou àquele capitalista, mas à classe dos capitalistas, e compete-lhe a ele encontrar quem o queira, isto é, encontrar um comprador dentro dessa classe dos capitalistas.»

As características e organização do trabalho

O cozinheiro, tal como qualquer operário, vende a sua força de trabalho a troco de um salário. Nas cozinhas, contudo, ao contrário das fábricas, não são produzidas mercadorias, mas sim bens de consumo imediato, intrinsecamente ligados ao serviço que é prestado ao cliente. De forma muito redutora e simplista, dentro de um restaurante temos duas categorias profissionais muito distintas: a do serviço e das vendas, da qual consta o pessoal do atendimento; e a do fabrico, da qual constam os cozinheiros. Se numa fábrica a mercadoria produzida ainda será embalada, distribuída, vendida numa superfície comercial, e só aí atinge o cliente final; num restaurante esta viagem da mercadoria encontra-se à distância do soar de uma campainha. Um pedido é feito, confecionado por um ou mais cozinheiros, empratado, levado até ao cliente pelo empregado de mesa, ingerido e, com sorte, apreciado.

O trabalho em cozinha por norma, ainda que muito dependente da dimensão da cozinha, divide-se em categorias profissionais (e salariais) que dependem da experiência do trabalhador. Como categorias temos o chefe executivo, chefe de cozinha, sub-chefe, cozinheiro de 1.ª (chef de partie), 2.ª (demi chef de partie), 3.ª (commis), ajudante de cozinha e copeiro. Já as secções são divisões que facilitam a organização do serviço através de uma linha de montagem. Estas dependem mais do tipo de serviço, carta e tamanho das cozinhas. Alguns exemplos são: produção/garde-manger, entradas e frios, quentes (fogão ou grelha), proteínas, guarnições, sobremesas. Em cozinhas mais pequenas estas funções são cumulativas.

«O trabalho em cozinha por norma, ainda que muito dependente da dimensão da cozinha, divide-se em categorias profissionais (e salariais) que dependem da experiência do trabalhador.»

O trabalho ao longo do dia divide-se em três segmentos: a preparação – ou mise en place –, o serviço, e a limpeza. Quase todos os pratos exigem preparações prévias ao seu serviço: desde os legumes que são cortados previamente aos molhos e caldos, carnes e peixes limpos e doseados, arrozes e massas que devem ser pré-cozidos. Estas preparações são feitas nas primeiras horas de trabalho, que por vezes também incluem a receção e armazenamento de mercadorias. É geralmente a parte do trabalho mais repetitiva, onde se utiliza bastante a faca e onde se carregam as coisas mais pesadas.

De seguida faz-se uma pausa, geralmente de meia hora, para almoçar ou jantar, antes de o restaurante ser aberto ao público. Depois de aberto o restaurante, começam a ser enviados pedidos para a cozinha, e preparados os pratos que vão sair para os clientes. Dado o fluxo constante, é a parte que exige mais concentração, e é geralmente marcada por altos níveis de stress e temperaturas mais elevadas, devido ao uso constante do fogão, da grelha, fritadeira, e luzes de infravermelhos que servem para manter os pratos quentes.

No final, após o fecho da cozinha (que não marca de todo o fim do dia de trabalho), é necessário limpar as bancadas e equipamentos, muitas vezes com produtos altamente abrasivos, organizar frigoríficos, fazer as listas da mise en place para o dia seguinte, encomendas, etc.

O food cost

Por se trabalhar com produtos relativamente perecíveis, e com oscilações imprevisíveis na ocupação do estabelecimento, faz parte da ocupação de um chefe de cozinha determinar qual será o custo de cada prato, considerando as manipulações dos vários ingredientes e aplicações no produto final. É absolutamente necessário ter atenção a desperdício, rotação de stocks, técnicas de confeção e armazenamento que prolonguem o tempo de vida de cada elemento que constitui a carta. Uma batata frita não é frita ao momento, mas sim preparada na sua mise en place: é descascada, cortada, deixada de molho em água fria, pré-frita a 150 graus, e só durante o serviço frita finalmente a 180 graus. Entre a pré-fritura e a fritura final existe a possibilidade de congelar, por exemplo. Um puré de batata-doce pode ser feito em grandes quantidades, embalado a vácuo, pasteurizado a uma temperatura relativamente baixa que não altere as suas características, e ligeiramente aquecido durante o serviço. Todas estas técnicas de maximização do potencial dos ingredientes exigem investimento de tempo e dinheiro por parte do cozinheiro, seja pela formação profissional em escolas, tempo de experiência noutros restaurantes, estágios, ou leitura de livros de especialidade (estes que, pela abundância de imagens, são naturalmente caros).

Também é na escola de cozinha que se ensina a regra dos 30%. Para gerir um restaurante, as despesas devem ser divididas em: 30% para os custos com ingredientes, 30% para os custos com pessoal, 30% para os custos fixos (renda, energia, investimentos no material, etc.), e, finalmente, 10% de margem, que pode ou não ser lucro. Sim, também estas proporções são simplistas e completamente desfasadas do que é praticado. Poucos food costs que elaborei no meu último trabalho como chefe de cozinha superaram os 20%. Por regra, quanto mais elevado for o nível do restaurante, mais cuidado o serviço, mais bem trabalhada a comida, mais baixos serão os food costs. Exemplificando:

«Através das suas competências, força de trabalho e capacidade de gestão, um cozinheiro consegue manter o preço da comida baixo relativamente ao preço de venda. Tal não é para o beneficiar a si próprio, muito menos ao cliente (que, se soubesse, se sentiria muito defraudado), mas sim para beneficiar o patrão.»

Ainda que existam variações anuais e sazonais nos preços das matérias-primas (neste caso, ingredientes), os preços do grossista não variam de um restaurante para o outro. A mesma peça do lombo de novilho tanto pode ser fornecida a uma taverna como a um restaurante mais requintado. Da mesma peça conseguimos obter diferentes produtos: um prego no pão, que é vendido a 3,50 euros, ou um bife da casa, vendido por 25. Provavelmente terão capitações diferentes, tendo o prego por norma uns 100 gramas de carne e o bife 200; se considerarmos então um prego duplo a sete euros, temos uma diferença de 18 euros. Estes 18 euros não dependem em nada do custo da matéria-prima, mas sim do valor acrescentado que lhe foi atribuído.

Através das suas competências, força de trabalho e capacidade de gestão, um cozinheiro consegue manter o preço da comida baixo relativamente ao preço de venda. Tal não é para o beneficiar a si próprio, muito menos ao cliente (que, se soubesse, se sentiria muito defraudado), mas sim para beneficiar o patrão. Também esta força de trabalho, do cozinheiro, é vendida a troco de um salário. A questão é que, tanto na taverna como no restaurante, os salários são os mesmos. Este valor acrescentado que o cozinheiro produz não é diretamente refletido no salário pago. Existem ligeiras diferenças, claro; há patrões que apenas pagam o salário mínimo e outros que pagam 900 euros. Ambos são insuficientes para o trabalho que é executado, quer pelo tempo despendido na aprendizagem, quer pelo desgaste físico inerente à profissão.

Mesmo na subida de categoria profissional, por se adquirir mais experiência ou assumir mais responsabilidades, os aumentos são na casa dos 50 euros brutos. Números redondinhos que assumem percentagens cada vez mais baixas quanto mais se sobe na escala profissional. E também o assumir das responsabilidades tem tendência a vir antes da subida do salário, porque primeiro é preciso dar provas da competência ao patrão. Tal tanto pode durar um mês ou dois, meio ano (como aconteceu no meu caso), ou até nunca vir a acontecer. Nesta fase também as mais pequenas falhas assumem uma gravidade desproporcional, funcionando como chantagem, e arrastando cada vez mais o aumento do salário.

A paixão pela cozinha

       «A força de trabalho é pois uma mercadoria que o seu proprietário, o operário assalariado, vende ao capital. Porque a vende ele? Para viver.

Mas a força de trabalho em ação, o trabalho, é a própria atividade vital do operário, a própria manifestação da sua vida. E é essa atividade vital que ele vende a um terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários. A sua atividade vital é para ele, portanto, apenas um meio para poder existir. Trabalha para viver. Ele nem sequer considera o trabalho como parte da sua vida, é antes um sacrifício da sua vida. É uma mercadoria que adjudicou a um terceiro. Por isso, o produto da sua atividade tão-pouco é o objetivo da sua atividade.»

«A questão da paixão pela cozinha é central para perpetuar a precariedade neste ramo de trabalho. Tendo o serviço de restaurante já sofrido tantas mudanças ao longo da história, podemos concordar que as últimas décadas foram marcadas pela fortíssima propaganda televisiva do chefe estrela, mauzão, workaholic, rockstar»

É neste ponto que o trabalho em restauração começa a ficar esquisito. Aos cozinheiros (e trabalhadores da restauração no geral) é exigida uma disponibilidade total e imediata que não é comum em muitas profissões. Ainda que todos nós, como trabalhadores, trabalhemos essencialmente para ter comida e casa, o trabalho em restauração não é de todo visto apenas como uma mera parte da nossa rotina, muito menos como sacrifício, mas sim como parte integrante da nossa vida e identidade. Somos cozinheiros porque gostamos; e por isso é-nos sempre exigido mais, pelo simples facto de ousarmos ter paixão pela cozinha.

A questão da paixão pela cozinha é central para perpetuar a precariedade neste ramo de trabalho. Tendo o serviço de restaurante já sofrido tantas mudanças ao longo da história, podemos concordar que as últimas décadas foram marcadas pela fortíssima propaganda televisiva do chefe estrela, mauzão, workaholic, rockstar, de um mundo de emoções fortes sem filtros. É natural que apele ao mais incauto jovem com aspirações culinárias. Esta imagem leva a uma sobreposição da identidade pessoal com a profissional, culminando num indivíduo com uma esfera social e familiar enfraquecida, acabando por encontrar conforto nas relações do trabalho. Aliás, é com os nossos colegas que passamos os serões, e muitas vezes até o Natal, a passagem de ano, os aniversários.

Através desta propaganda e pressão psicológica por parte dos superiores e pares, o trabalhador acaba por deixar que o trabalho invada a sua esfera pessoal, e abre mão dos seus direitos como indivíduo. O salário que deveria comprar a força de trabalho de uma jornada de oito horas (40 horas semanais é o previsto na lei portuguesa) estende-se e dilui-se ao longo das 24 horas do dia, nas noites mal dormidas, nas folgas sem energia a recuperar das dores da semana, nas chamadas e reuniões fora de horas.

É também é certo e fulcral que as oito horas são apenas uma referência. O que muitos noutros ramos profissionais têm por garantido na restauração é tido como um bónus. Só trabalhar oito horas! As horas extra não se contam nos restaurantes, abundam os horários repartidos (serviços de almoço e jantar), as pausas de 11 horas entre turnos não são cumpridas. Não existem subsídios de turno, nem de trabalho noturno, e muitas vezes trabalha-se seis dias por semana, ou oito dias seguidos até à mudança de folgas. Trabalha-se doente ou é-se considerado fraco, tem de se estar contactável sempre, ser sempre o primeiro a voluntariar-se para ficar mais umas horas.

A dicotomia da escassez

       «O que o operário produz para si próprio não é a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. O que ele produz para si próprio é o salário; e a seda, o ouro, o palácio, reduzem-se para ele a uma determinada quantidade de meios de vida, talvez a uma camisola de algodão, a uns cobres, a um quarto numa cave.»

Também quanto mais se sobe na escala da qualidade e do requinte (outra falácia muito bem vendida pelos meios de comunicação), também mais desfasado é o salário recebido do preço final dos pratos que se preparam.

«Nunca trabalhei num restaurante onde tivesse capacidade financeira para lá ir jantar. As trufas e o foie gras não pertencem à classe operária, por muito que lhes passem pelas mãos.»

Nunca trabalhei num restaurante onde tivesse capacidade financeira para lá ir jantar. As trufas e o foie gras não pertencem à classe operária, por muito que lhes passem pelas mãos. A comida do staff é geralmente pobre, repetitiva, e, se for carne, certamente será de qualidade duvidosa. Eu própria tive um patrão que me impediu de encomendar bananas (um euro o quilo!) para staff porque era «um pequeno abuso». Trabalhei em restaurantes que preferiam mandar certos alimentos em fim de prazo fora a passá-los para consumo do pessoal, não fossem os funcionários ficar mal-habituados. É parte da disciplina que nos incutem: trabalhar muito, muitas horas, provar tudo mas não comer nada.

As relações interpessoais

       «Na produção os homens não atuam só sobre a natureza mas também uns sobre os outros. Produzem apenas atuando conjuntamente dum modo determinado e trocando as suas atividades umas pelas outras. Para produzirem entram em determinadas ligações e relações uns com os outros, e só no seio destas ligações e relações sociais se efetua a sua ação sobre a natureza, se efetua a produção.»

Na restauração, a parte relacional é tão importante quanto a produtiva: só se consegue produzir existindo comunicação entre os diversos sectores: entre a equipa de sala e a de cozinha, entre as várias secções da cozinha, entre as várias secções da sala. Tudo tem de ser muito rápido, preciso, por vezes em código, e sem espaço nem tempo para as formalidades do por favor e obrigada. Esta atmosfera de constante urgência, ainda que seja uma urgência fabricada, aliada à questão da paixão pela profissão e à da disciplina, fomenta um ambiente propício aos mais diversos tipos de abuso. Funcionários de hierarquias superiores têm carta branca para insultar os que se encontram abaixo deles, conflitos entre sala e cozinha são muitas vezes estimuladas por esses próprios superiores, competição e até sabotagem ocorrem entre colegas do mesmo grau. Um chefe de cozinha, ou gerente, terá sempre de procurar o balanço entre satisfazer o patrão e satisfazer a equipa. A prioridade da maioria dos chefes com quem trabalhei geralmente é satisfazer o patrão, pois só assim o chefe consegue mostrar sinais da sua competência.

«O secretismo dentro da indústria e o desinteresse dos meios de comunicação social também fazem com que as verdadeiras condições de trabalho dos cozinheiros não tenham qualquer representação. A menos que seja em reality shows, onde o abuso é, por sua vez, glorificado.»

Por exemplo, poucos ramos de atividade devem ter praxes de iniciação como têm algumas cozinhas. Ainda que seja estranho, não é totalmente descontextualizado tendo em conta a influência militar na organização do trabalho nas cozinhas profissionais. Se muitos acreditam que Auguste Escoffier revolucionou as cozinhas com o seu sistema de brigada, e valorizou a profissão do cozinheiro, eu prefiro acreditar que precisamos de uma nova revolução culinária, onde as pessoas sejam mais do que peças numa grande máquina, e onde não se sintam ainda os fantasmas do totalitarismo século e meio depois. O secretismo dentro da indústria e o desinteresse dos meios de comunicação social também fazem com que as verdadeiras condições de trabalho dos cozinheiros não tenham qualquer representação. A menos que seja em reality shows, onde o abuso é, por sua vez, glorificado.

       «A maior divisão do trabalho capacita um operário a fazer o trabalho de cinco, dez, vinte: ela aumenta, portanto, cinco, dez, vinte vezes a concorrência entre os operários. Os operários não fazem concorrência uns aos outros apenas quando um se vende mais barato do que o outro; fazem concorrência uns aos outros quando um executa o trabalho de cinco, dez, vinte; e a divisão do trabalho introduzida e constantemente aumentada pelo capital obriga os operários a fazer uns aos outros esta espécie de concorrência.»

Enquanto na brigada de Escoffier cada trabalhador tinha uma função hiper-específica, hoje em dia as funções sobrepõem-se. É exigido aos trabalhadores cada vez mais conhecimentos nas mais diversas áreas da cozinha. A consequência não é diretamente uma competitividade entre trabalhadores pelo mesmo posto de trabalho, mas sim uma exigência cada vez maior por parte dos patrões, que procuram alguém com múltiplas competências, com a capacidade de cinco funcionários, mas apenas com o interesse de pagar a um. Para quê ter um ajudante de cozinha a descascar as batatas se o copeiro também o pode fazer?

«patrões, que procuram alguém com múltiplas competências, com a capacidade de cinco funcionários, mas apenas com o interesse de pagar a um. Para quê ter um ajudante de cozinha a descascar as batatas se o copeiro também o pode fazer?»

Nesse tempo, o copeiro poderia estar a fazer uma limpeza a fundo a um armário, mas isso não é uma prioridade, pois faz parte de um leque de tarefas não produtivas. Ao atribuir um número maior de funções ao mesmo, ou menor grupo de pessoas, algumas tarefas não produtivas são postas de lado. Eu própria, como chefe de cozinha, tive de descurar parte das tarefas administrativas para poder estar agarrada às frigideiras durante o serviço. A prioridade para o patrão é sempre o serviço, pois é o serviço que se converte em faturação. Nunca será a higiene e segurança alimentar, a segurança no trabalho, ou o bem-estar do pessoal.

Ninguém quer trabalhar!

Nunca trabalhei num restaurante que não tivesse falta de pessoal. Esta falta de pessoal é absolutamente falsa e fabricada pois não existe um verdadeiro interesse ou esforço por parte do patrão em alargar a equipa. Ninguém quer trabalhar! Também é algo que soa muito familiar nos últimos anos. É difícil querer trabalhar quando não há transparência nas ofertas de emprego e entrevistas, quando os salários são baixos para o investimento feito, quando os horários são incompatíveis com a vida pessoal e familiar e em caso algum são feitas cedências, muito menos para os funcionários mais recentes. É sempre o recém-chegado que fica com as piores folgas (uma terça e quarta por exemplo). Há uma perpétua incompatibilidade entre o que o trabalhador tem para vender e o que o patrão quer efetivamente comprar.

       «Ora, quais são os custos de produção da força de trabalho?

São os custos que são exigidos para manter o operário como operário e para fazer dele um operário.»

Na questão da remuneração, o trabalho altamente qualificado e exigente do cozinheiro é posto no mesmo patamar de um trabalho não qualificado. Se o trabalhador, como mercadoria, vende as suas competências tendo em conta o tempo que as demorou a adquirir, o seu trabalho deveria ser remunerado tendo em conta o valor e o tempo que o próprio investiu na sua formação. Mesmo com a automatização de certos processos, o trabalho em cozinha continua a requerer conhecimento específico, talento e resiliência.

       «O salário do trabalho subirá ou baixará consoante a relação de procura e fornecimento, consoante a forma que tomar a concorrência entre os compradores da força de trabalho, os capitalistas, e os vendedores da força de trabalho, os operários.»

Esta relação de mercado entre o trabalhador e o patrão capitalista encontra-se completamente fragilizada. Quem decide os salários na restauração são apenas os patrões capitalistas, aproveitando-se da alienação social dos seus trabalhadores, que não lutam (ou nem têm oportunidade de lutar) pelos seus direitos, aliados aos seus subordinados que perpetuam o sistema por acreditarem que a exploração e sacrifício são condições essenciais para o exercício da profissão. Também estes patrões se aproveitam da necessidade dos trabalhadores imigrantes em terem um contrato, e oferecem o contrato em troca de um salário mais baixo. Porque, ainda que seja à margem da lei, perpetuam-se irregularidades contratuais e falsos recibos verdes.

       «Vemos, portanto, que mesmo quando ficamos no seio da relação de capital e trabalho assalariado, os interesses do capital e os interesses do trabalho assalariado estão directamente contrapostos.

Um rápido aumento do capital é igual a um rápido aumento do lucro. O lucro só pode aumentar rapidamente se o preço do trabalho, se o salário relativo diminuir com a mesma rapidez. O salário relativo pode descer, embora o salário real suba simultaneamente com o salário nominal, com o valor em dinheiro do trabalho, desde que, porém, não suba na mesma proporção que o lucro. Se, por exemplo, o salário subir 5% num bom período de negócios, e o lucro, pelo contrário, subir 30%, então o salário comparativo, o salário relativo não aumentou, mas diminuiu

Ao mesmo tempo que os preços aumentam, incluindo os das refeições nos restaurantes, os salários em restauração mantêm-se ou baixam.

«Ao mesmo tempo que os preços aumentam, incluindo os das refeições nos restaurantes, os salários em restauração mantêm-se ou baixam.»

A percentagem despendida para os custos com o pessoal é cada vez menor, e, quanto menor, mais engordam os bolsos dos patrões capitalistas. A perspetiva de crescimento infinito do capitalismo não é compatível com o funcionamento de um restaurante, especialmente no sentido em que este modelo de negócio depende inteiramente das capacidades da finita força de trabalho dos seus trabalhadores. A única forma de obter lucro, num restaurante, é explorando os trabalhadores. E sem verdadeiros limites legais para combater esta exploração, sem real fiscalização ou ação coletiva, os trabalhadores sairão sempre prejudicados.

Juntos somos mais fortes

Como trabalhadores da restauração, marxistas ou não, é nosso dever consciencializar os colegas e amigos da exploração de que somos vítimas, quebrar ciclos de abuso, quer por parte das chefias quer dos pares, e estabelecer relações de cooperação e camaradagem. Existem canais de denúncia, sindicatos, e plataformas independentes dispostos a aconselhar e ajudar.

E, por fim, não devemos perder a paixão pela cozinha, pois é com ela que vamos conseguir construir alternativas, e outras formas de alimentar a nossa paixão por alimentar pessoas onde possamos prosperar como trabalhadores e indivíduos.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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