|50 Anos de Futuro

As conquistas de Abril e o desenvolvimento das crianças

As relações e os ambientes familiares são preponderantes nos primeiros anos de vida e muito salientes nos anos que caracterizam a segunda infância e adolescência.

Crianças de várias escolas básicas de Coimbra manifestam-se, em frente à Câmara Municipal, contra o trabalho infantil
CréditosPaulo Novais / Agência Lusa

Induzido pela frescura da recente celebração 25 de Abril e pela coincidência de, em conjunto com os alunos de Mestrado de Psicologia e Psicopatologia do Desenvolvimento, ter realizado recentemente uma revisão do estado da arte sobre adversidade, pobreza, resiliência, e o delineamento de trajectórias de desenvolvimento socioemocional, ajustamento e saúde mental, pareceu útil partilhar algumas ideias que procurarei relacionar com as conquistas de Abril e a outras que, na senda de Abril, continuam ainda por concretizar, cabendo às nossas gerações esse desígnio.

1) Se os modelos clássicos de psicopatologia davam a ideia de que a resiliência era uma característica dos indivíduos, as últimas quatro décadas de psicopatologia do desenvolvimento, (valendo-se de estudos longitudinais focados na complexidade multideterministica do desenvolvimento das pessoas, tendo em conta o tempo e o contexto), revelam bem outro panorama. O que a evidência acumulada sugere é que a maturação de estruturas, capacidades e competências, em diversos domínios do desenvolvimento (ex.: neurológicos, psicomotores, emocionais, cognitivos, personalidade, socialização, etc.), deve-se mais ao balanço entre experiências adversas e favoráveis a que as pessoas estão sujeitas no decurso da sua vida (de acordo com o grau de maturação evolutiva), e aos períodos do desenvolvimento em que as adversidades ocorrem, que a qualquer essência constitutiva dos indivíduos.

Assim, à luz da evidência empírica, os fenómenos caracterizados como resilientes não se ficam a dever a uma característica individual misteriosa ou a uma eventual vigorosa vontade subjectiva de alguns.

«a visão da comunidade científica sobre o conceito de resiliência mudou significativamente. Hoje em dia é bastante aceite que são os processos desenvolvimentais, as ecologias e os contextos relacionais dos indivíduos que probabilisticamente favorecem, ou não, as trajectórias de desenvolvimento que conduzem a resultados mais ou menos resilientes face às adversidades vivenciadas»

É certo que os resultados positivos de ajustamento face à adversidade, isto é, resilientes, resultam em benefícios para os indivíduos. Mas estes resultados de ajustamento social (avaliados maioritariamente com medidas gerais e globais de sucesso académico, popularidade na rede de pares, escolaridade, medidas gerais de bem-estar, etc.) são melhor explicados pela interacção entre a idade, intensidade, durabilidade dos efeitos directos (interacções onde o sujeito participa) ou indirectos, dos factores de risco e factores protectores nos indivíduos e seus contextos. Por outro lado, os estudos sobre resiliência ensinam-nos que, mesmo quando os sujeitos obtêm valores de ajustamento nestas medidas gerais de adopção, tal não deve ser interpretado como se esses resultados excluíssem a presença de sofrimento psicológico significativo, ou mesmo perturbações psicoafectivas que tendem a permanecer encobertas a este tipo de medidas (ex. problemas internalizados, baixa auto-estima, sintomas depressivos ou ansiosos).

As características individuais dos sujeitos (genéticas, neurológicas, fisiológicas, comportamentais, emocionais e cognitivas, etc.) e a «susceptibilidade estatística» para determinados resultados, são mediadas ou moderadas pelo encaixe dinâmico com as vicissitudes dos contextos relacionais mais próximos e pela ecologia social e cultural em que estes se inscrevem. É esta interacção conjunta de factores que determina, por um lado, os estímulos disponíveis e as experiências em que os sujeitos participam e, por outro, o modo como são individual e/ou colectivamente subjectivadas.

Por esse motivo, a visão da comunidade científica sobre o conceito de resiliência mudou significativamente. Hoje em dia é bastante aceite que são os processos desenvolvimentais, as ecologias e os contextos relacionais dos indivíduos que probabilisticamente favorecem, ou não, as trajectórias de desenvolvimento que conduzem a resultados mais ou menos resilientes face às adversidades vivenciadas.

2) O efeito da pobreza nas trajectórias desenvolvimentais dos indivíduos, quando estudada na sua complexidade, vai muito para além do que é evidenciado pelos estudos que se limitam a definir a pobreza como uma variável sócio-demográfica (ex: estatuto sócio-económico). A pobreza, como fenómeno extenso e complexo, social, familiar e individual, envolve um amplo conjunto de factores e múltiplos domínios da existência que interagem com os processos psicológicos e sociais. Nas situações de pobreza, estes factores estão associados cumulativamente à experiência que os indivíduos fazem das suas frágeis ecologias. O acesso limitado a recursos de segurança, proteção, saúde, educação e cultura prevalece. Os contextos relacionais são com frequência adversos, com elevados índices de desafios e instabilidade, a presença de stress e o stress nocivo, caracterizam muitas das relações próximas. É comum a ruptura de redes sociais de suporte e, por vezes, a violência domina as relações.

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Crianças e trabalhadores estão entre os mais pobres em Portugal

Há mais de 330 mil crianças em risco de pobreza, segundo o relatório «Portugal, Balanço Social 2021», que mostra também que 11,2% das pessoas empregadas em Portugal são pobres.

A crise afectou especialmente os mais pobres
Créditos

De acordo com o relatório, apresentado esta terça-feira, e da autoria dos investigadores Susana Peralta, Bruno Carvalho e Mariana Esteves, da Nova School of Business & Economics, uma das faculdades da Universidade Nova de Lisboa, «as crianças [0 aos 17 anos] são um dos grupos da população mais vulnerável a situações de pobreza e exclusão social».

«A taxa de risco de pobreza entre as crianças aumentou entre 2018 e 2019 (de 18,5% para 19,1%). Isto significa que há, em 2019, mais de 330 mil menores pobres em Portugal», lê-se no relatório.

Por outro lado, a pobreza afetava 25,5% das famílias monoparentais, ou seja, cerca de um quarto de todos os agregados familiares, tendo esse valor diminuído 8,4 pontos percentuais em relação a 2018, apesar de estas famílias continuarem a ser o tipo de agregado com maior taxa de risco de pobreza.

No que diz respeito a carências habitacionais e alimentares, e já em relação a 2020, «mais de uma em cada quatro crianças vivia em casas com telhado, paredes, janelas e chão permeáveis à água ou apodrecidos», enquanto 11% das habitações não tinha aquecimento adequado.

«A incapacidade de comer, pelo menos de dois em dois dias, uma refeição de carne, peixe (ou equivalente vegetariano), manteve-se estável nos últimos três anos, com uma ligeira melhoria em 2020 (de 1,9% para 1,8%)», referem os investigadores.

Já no que diz respeito à escolaridade, o documento salienta o «papel importante» que esta tem na mitigação da transmissão intergeracional da pobreza, salientando que nos anos anteriores à escolaridade obrigatória, o rendimento das famílias está relacionado com a frequência da creche e do ensino pré-escolar e revelando que «quase sete em cada 10 crianças pobres não tem acesso a creche e, entre os 4 e os 7 anos, as mais pobres são as que menos frequentam o pré-escolar».

«No ensino obrigatório, são estas crianças que tiveram piores resultados do que as de meios socioeconómicos menos desfavorecidos, no Estudo Diagnóstico para os alunos do 3.º ano, realizado pelo Instituto de Avaliação Educativa em janeiro de 2021, para apurar os atrasos na aquisição de competências em virtude da crise pandémica», destaca.

As crianças são também uma das faces mais preocupantes quando se fala da taxa de risco da pobreza persistente, ou seja, «percentagem de pessoas que está em risco de pobreza num ano e também o esteve na maioria dos três anos anteriores», já que em 2019 essa taxa era de 9,8%, mas o valor entre as crianças chegava aos 30,3%.

Quer isto dizer que praticamente três crianças em cada 10 estiveram numa situação de pobreza em pelo menos um dos anos do período em análise, ou seja, entre 2016 e 2019, valor que baixa para 10,5% se só for considerado um ano, ainda que 8,9% das crianças tenham sido pobres nos quatro anos.

Ter emprego não impede de ser pobre

Estar empregado não é suficiente para afastar uma pessoa da situação de pobreza. Em 2020, mais de uma em cada dez pessoas (11,2%) empregadas em Portugal eram pobres, uma subida em relação aos 9,6% registados no ano anterior. A crise sanitária também aumentou em 2,2 pontos percentuais (p.p.) a taxa de risco de pobreza, que passou para 18,4% em 2020, atingindo particularmente as mulheres, pessoas acima dos 65 anos e famílias monoparentais, revela o relatório anual. Em 2020 havia mais 228 mil pessoas em situação de pobreza.

Mariana Esteves, uma das investigadoras autoras do relatório, apontou, ao site Eco, a «precariedade laboral» e os «salários baixos» que não conseguem suportar «custos de vida elevados» como causas para esta situação. Agravadas pela pandemia que tornou ainda mais evidentes as desigualdades sociais.

Por seu lado, a investigadora Susana Peralta, na apresentação do relatório anual, salientou que as políticas públicas desenhadas pelo Governo durante o início da pandemia «não foram suficientes» para evitar este aumento de pessoas em situação de pobreza.

«É muita gente que vai parar à pobreza. Obviamente que os apoios sociais não foram capazes de neutralizar o suficiente os efeitos da crise», referiu. «Temos políticas sociais que deixam franjas da população desprotegidas. A nossa manta social está um bocado esburacada.»

É preciso taxar o capital e ter políticas que promovam a igualdade

Já em Março deste ano, Susana Peralta tinha sublinhado ao AbrilAbril outro dado importante: «os sectores mais afectados pela crise são aqueles que as pessoas não puderam fazer a migração para o teletrabalho e têm comparativamente os salários mais baixos».

Um resultado que confere com outro dado presente nas conclusões do relatório: «estudos não representativos mostram que as pessoas que se identificam com os mais pobres são as que reportam maior perda de rendimento».

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«As novas formas de trabalho têm de impedir a perda de direitos»

Carlos Farinha Rodrigues, do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), é um dos maiores especialistas na investigação da pobreza e das desigualdades em Portugal. Em conversa com o AbrilAbril sublinha que é preciso ir além das políticas sociais e envolver todas as políticas públicas no combate a esses flagelos.

Carlos Farinha Rodrigues é professor no ISEG.
Dá aulas no ISEG e é especialista em pobreza e desigualdade.CréditosDR / DR

É possível dizer-se que existe um crescimento das desigualdades e da pobreza durante a pandemia?

Usamos certas metodologias e certos dados para avaliar oficialmente a pobreza. E esses dados geralmente têm um leque temporal de um ou dois anos. O Instituto Nacional de Estatística (INE) libertou, há pouco tempo, os dados mais recentes sobre a pobreza, mas esses números referem-se a 2019. O que esses indicadores mostravam era que a tendência decrescente das desigualdades e da pobreza se mantinham. Os dados de 2019, em muitos sectores, são os melhores dos últimos anos, alguns até os melhores desde que há estatísticas. Agora todos nós temos a sensação que isso não corresponde à situação actual. Temos um conjunto de indicadores indirectos e não oficiais que nos permitem dizer que, indiscutivelmente, a desigualdade e a pobreza estão a aumentar durante a pandemia. Nós temos indicadores do recurso às instituições de solidariedade social, como a Caritas e o Banco Alimentar, que evidenciam um aumento da pobreza e da procura crescente a estas instituições. Por outro lado, em termos de desigualdades, basta vermos que esta crise não está a atingir de igual forma todos os sectores: por exemplo, os funcionários públicos e os pensionistas não têm sofrido cortes em termos de rendimento, mas há outros sectores que viram praticamente os seus rendimentos destruídos. Por isso, apesar de não haver dados oficiais, não tenho dúvidas em afirmar que a pobreza e as desigualdades aumentaram muito com a pandemia. Conhecendo as relações entre pobreza e desemprego é possível prever que isso se verifique, apesar de parte dos impactos negativos ter sido absorvido pelas políticas públicas.

Falou que havia sectores de trabalhadores que não foram tocados. Mas talvez mais desigual que isso tem sido o facto de, enquanto o trabalho continua a ser muito afectado pelas crises, haver valorizações dos activos de capital mesmo em plena crise, que não tem correspondido a igual valorização dos rendimentos de quem trabalha. Pode dizer-se que isso aumenta as desigualdades?

Claro que sim. Assistimos, a nível europeu e nos países desenvolvidos, a uma desvalorização progressiva do factor trabalho. Em Portugal, mesmo num período em que houve uma diminuição das desigualdades até 2019, vê-se que mesmo assim a parte do trabalho nos rendimentos tem vindo a diminuir. Há outro aspecto importante, há hoje formas de precarização novas do trabalho que levam à desvalorização dos salários, como é o caso da uberização em vários sectores da economia.

Como é que seria possível, em termos de políticas públicas, contrariar isso de uma forma estrutural e não apenas com subsídios sociais que são necessários para acudir as pessoas e as famílias a curto prazo?

Neste momento ainda estamos muito ocupados com as medidas de emergência para acudir às consequências sociais da pandemia. Mas a partir daqui, temos de pensar num modelo de recuperação económica que seja inclusiva e que não deixe ninguém de fora. Em crises anteriores, em que houve austeridade, corte de salários e aumento de impostos, vimos que um dos factores que servia de amortecimento a esta perda acentuada de rendimentos foi novas formas informais de trabalho. O que aconteceu nesta pandemia é que parou tudo e esses sectores foram fortemente afectados.

«Um dos desafios que temos de conseguir é trazer essas pessoas para o mercado trabalho normal, dando-lhe direitos e deveres»

Há ainda um aspecto adicional que é extremamente negativo, é que são sectores que têm uma relação muito frágil com o mercado de trabalho ou simplesmente inexistente, e como consequência disso não têm sistemas de protecção social. Um dos desafios que temos de conseguir é trazer essas pessoas para o mercado trabalho normal, dando-lhe direitos e deveres. Assegurando que têm as suas contrapartidas. Há um segundo aspecto, que acho muito importante, que é as mutações que estão a existir no mercado de trabalho. Essas mudanças não começaram hoje, vinham de antes da pandemia, mas o que esta fez foi acelerar de uma forma radical certas formas que eram atípicas de trabalho. Se há dois anos me perguntassem o que eu achava do teletrabalho, eu não teria dúvidas em dizer que era algo que iria crescer na nossa economia, mas nunca me passaria pela cabeça que, em pouco tempo, seria maioritária em determinados sectores. É preciso perceber estas novas formas emergentes do mercado de trabalho, e elas exigem políticas públicas que tenham a flexibilidade suficiente para não deixar essas pessoas de fora.

Mas não são necessárias políticas públicas que regulamentem essas novas formas, como a uberização, e não permitam essa total precarização e exploração das pessoas? Políticas que tenham a coragem de contrariar estes gigantes das novas tecnologias que exploram milhões de pessoas sem assumir nenhuma relação e responsabilidade laboral em relação a elas?

Estas novas formas de trabalho têm de ser regulamentadas em termos de protecção social e em sede fiscal. O que acontece, é que estas novas formas têm conseguido fugir às suas contrapartidas em termos de impostos. Há que garantir direitos e deveres a todos os que participam no mercado de trabalho e impedir a existência de abusos. Muitos dos problemas que decorrem da uberização passam pela inactividade das políticas públicas ou não impedirem determinadas situações. Não estando regulamentadas, não impedem as formas abusivas de trabalho.

Afirma muitas vezes que os apoios sociais, como o Rendimento Social de Inserção (RSI), são muito importantes e que infelizmente foram denegridos por parte da população. Diz ainda que o principal problema é que cumpram a sua função, o que significa que, num segundo momento, as pessoas conseguem refazer a sua vida e não ter a necessidade de receber ajudas sociais. O que falhou?

Isso exige uma resposta em várias partes. Sou da opinião que as políticas sociais são fundamentais para responder a situações de crise e de empobrecimento de determinados sectores da população. Acho que temos muito que fazer ao nível das políticas sociais. É preciso dizer que as políticas sociais só por si não resolvem o problema da pobreza ou das desigualdades de uma forma estrutural. Isto implica a actuação das políticas públicas no seu todo, englobando as políticas económicas. Se queremos combater estruturalmente as desigualdades temos de ir às fontes, e isso implica políticas públicas que não são só políticas sociais. É preciso reconhecer a importância das políticas sociais, mas saber que elas só por si não conseguem resolver todos os desequilíbrios.

«as políticas sociais só por si não resolvem o problema da pobreza ou das desigualdades de uma forma estrutural»

As políticas económicas devem promover o crescimento inclusivo e defender o trabalho nas suas várias formas. Uma segunda questão refere-se à forma como a nossa arquitectura de protecção social tem sido construída, e aí podemos ver duas coisas, a crise que estamos a passar demonstrou a importância das políticas públicas. A crise da Covid-19 fez com que largos sectores da população e do pensamento económico, que tinham barafustado contra o Estado Social, vão agora, durante algum tempo, estar calados. Se não fosse o Estado Social e as políticas públicas as consequências desta crise teriam sido trágicas. Se há uma diferença entre esta crise e a anterior (da Troika) é que, desta vez, houve uma atitude pró-activa das políticas públicas, tentando minorar os seus impactos, o que da outra vez não aconteceu, até pelo contrário. Não significa isso que as políticas que foram implementadas foram suficientes. Não foram. Mas de qualquer forma elas tentaram atenuar e, em alguns casos, terão conseguido adiar alguns dos piores desenvolvimentos. Agora, uma das características da nossa política social é que ela é muito fragmentada e devíamos ter políticas integradas que fossem mais eficientes no combate à pobreza e na afectação dos recursos. Temos uma miríade de políticas, a maioria delas com valores muito baixos que não permitem uma resposta eficaz. Nesse sentido, tenho defendido que precisamos de coordenar as políticas sociais dando-lhe consistência e integrando-as.


Não podemos pensar que a política social vem só do Ministério da Segurança Social. É necessário que haja uma coordenação que tenham em conta a parte da Economia, Fiscalidade e Segurança Social. Em relação ao RSI, consiste numa medida que correspondia, há 20 anos, a uma nova forma de pensar as políticas sociais, conjugando os apoios financeiros às famílias com processos efectivos de inclusão social. Usando uma conhecida parábola: era preciso dar peixes porque as pessoas precisavam de comer, mas simultaneamente ensinar-lhes a pescar. Claramente, esta medida foi pensada com essas duas componentes e eu sempre defendi que se tirarmos esta componente de inclusão social, o RSI não passaria de um «subsidiozeco». O que aconteceu, é que ao longo dos anos houve vários ataques a esta medida, muitos deles da parte governamental, e a forma mais simples de combater este apoio social é desvalorizando esta segunda componente. E isso é feito de duas formas: ou deixando-a a navegar sem nenhum apoio efectivo ou dizendo que a inclusão na sociedade é a inclusão no mercado de trabalho. Aquilo que acontece é que para muitos isso será assim, mas para muitos outros isso passa sobretudo por outro tipo de medidas. Uma forma de valorizar esta medida é fazer com que ela se articule com outras políticas sociais dando-lhe meios. E também combater o estigma, que toda a direita e muitos governos fizeram, que foi associar esta medida a um apoio a quem supostamente não quer trabalhar ou, pior ainda, uma medida para os ciganos que não quereriam, alegadamente, trabalhar. Isso é desmentido pelos números e pela realidade, mas infelizmente esta ideia passou.

Uma pergunta final. Estamos num momento de desenvolvimento tecnológico em que há previsões, e já começa a verificar-se em alguns sectores, de uma diminuição do trabalho devido à automação e à inteligência artificial. Não terão de ser pensadas políticas sociais independentemente do trabalho? E estudadas formas de rendimentos mínimos universais? Se se concretizar, o que alguns prevêem, uma diminuição abruta e generalizada dos postos de trabalho?

Essa é uma questão que dava para estarmos quatro ou cinco dias a falar. Estamos a assistir ao desenvolvimento de sectores com a necessidade de utilização de menos recursos de trabalho. Mas a história mostra-nos que grande parte das inovações tecnológicas o que fizeram foi substituir certos tipos de trabalho por outros tipos de trabalho. Vejo com alguma desconfiança essa visão mais pessimista de perda abrupta do trabalho e do emprego. O que temos de perceber é que o trabalho vai existir de formas muito diferentes. Temos muita dificuldade em lidar com isso, tanto as políticas públicas, como até os sindicatos, não estão ainda preparados para isso.

«Em vez de trabalharmos as mesmas horas e deitarmos parte dos trabalhadores para fora do mercado de trabalho, temos de trabalhar menos horas para que todos possam trabalhar»

Nós temos de pugnar para que as novas formas signifiquem um reforço de direitos e não uma perda de direitos das pessoas que estão a trabalhar. Se olharmos para um horizonte de tempo maior, provavelmente as novas tecnologias vão permitir que trabalhemos menos horas por dia. Em vez de trabalharmos as mesmas horas e deitarmos parte dos trabalhadores para fora do mercado de trabalho, temos de trabalhar menos horas para que todos possam trabalhar. Temos de ter uma visão aberta para os novos desafios que as tecnologias nos colocam. Não poderemos parar a maré com um balde. É preciso uma transição que garanta que o surgimento dessas novas tecnologias seja acompanhado pelo reforço dos direitos das pessoas. Isso é essencial. Há um aspecto que ultimamente está na moda, a questão do Rendimento Básico Universal. Acompanhei isso desde os anos 90, quando estava em Inglaterra. Conheço alguns dos estudiosos e proponentes iniciais da ideia. Não tenho dúvidas que a formulação inicial era extremamente generosa. Agora o desenvolvimento que tem tido essa ideia leva-me a ter muitas reticências. Primeiro, grande parte dessas propostas tem implícito que isso substituiria o Estado Social. Acho que, como esta crise demonstrou, seria um gigantesco erro. Também tem exigências de financiamento que ainda ninguém é capaz ainda de quantificar. E esse é o outro problema. Terceiro, eu próprio tenho algumas questões éticas em relação a alguns dos princípios, como a ideia que todos nós devemos ter a liberdade de decidir se queremos trabalhar ou não trabalhar. É uma ideia atraente, mas é uma ideia perigosa. Parte de um conceito de liberdade que é exclusivamente individual. Para mim, a liberdade é algo que se constrói na relação com os outros. Acho que muitas pessoas que defendem o Rendimento Básico Universal acabam por defender a ideia que a sua liberdade é um valor supremo mesmo contra os outros. Claramente que aí não alinho. Um último aspecto, quando falamos no surgimento de novas formas de trabalho conjugado com o aparecimento de novas tecnologias, há um aspecto que é importante referir: tem de se pensar que muito do trabalho que é socialmente útil, não é valorizado pelo mercado e não é recompensado. Refiro-me a trabalhos como o de criar crianças, o doméstico e o de cuidar. Essa é uma fronteira que as políticas sociais têm de pensar em valorizar.

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É essa reforma sempre adiada de taxar devidamente o capital, que o professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais João Rodrigues afirmou, também nessa data, ao AbrilAbril, ser cada vez mais necessária. Para isso é preciso conhecimento social e acção política. «O problema da esquerda é que conhece razoavelmente a pobreza, mas muito mal a riqueza para saber como são as formas mais eficientes de a taxar», ironiza. O investigador do CES sublinha a necessidade de uma política justa que possa minimizar os efeitos da crise pandémica.

«Vivemos numa sociedade brutalmente desigual, em que há ricos a aforrar e a ver os seus activos valorizarem à boleia da política monetária europeia, que não tem tido direcção orçamental no sentido de aumentar o investimento público e, no fundo, acaba sobretudo por valorizar os activos financeiros. Tudo isto fazendo com que as desigualdades de riqueza estejam a crescer», afirmou, juntando que para além de tudo isso, os sucessivos governos têm sido alérgicos a taxar a riqueza e o capital. «O PCP e o BE insistem e bem que é necessário o englobamento de todos os rendimentos, em pé de igualdade, para efeitos de IRS. Para além disso, é preciso pensar na criação de outras formas de impostos que possam onerar aqueles que têm muito património», defendeu o economista de Coimbra.


Com agência Lusa

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As situações de pobreza duradoura são caracterizadas por um desequilíbrio entre a presença mais vincada de factores de risco e reduzida de factores protectores. Nestas ecologias e contextos relacionais, os processos desenvolvimentais das crianças e jovens estão sujeitos à presença de múltiplas experiências desfavoráveis ou pouco favoráveis, com negativos efeitos cumulativos em múltiplos níveis: orgânicos, comportamentais, emocionais, cognitivos, relacionais e sociais. Mais ainda, estes efeitos têm tendência para escalar entre si.

Quando situações de vulnerabilidade como a pobreza são duradouras e intensas, tendem a estar fortemente associadas ao desenvolvimento de stress familiar, que por sua vez, pode estar associada a baixa disponibilidade psicológica e afectiva nas relações parentais (ex: os cuidadores têm que manter vários trabalhos tendencialmente precários e actividades instáveis como fonte de rendimento; é frequente o conflito relacional no casal e a degradação da comunicação no sistema de relações familiar, entre outros). Estas circunstâncias podem conduzir alguns cuidadores a adoptar estratégias parentais mais coercivas ou indulgentes, podendo nas situações mais graves gerar fenómenos de negligência e maus-tratos.

«A pobreza, como fenómeno extenso e complexo, social, familiar e individual, envolve um amplo conjunto de factores e múltiplos domínios da existência que interagem com os processos psicológicos e sociais. Nas situações de pobreza, estes factores estão associados cumulativamente à experiência que os indivíduos fazem das suas frágeis ecologias. O acesso limitado a recursos de segurança, proteção, saúde, educação e cultura prevalece»

A presença destes factores de risco no contexto familiar está associada à emergência nas crianças de sintomas e problemas internalizados (ansiedade, depressão, etc.) e/ou externalizados (agitação, problemas de conduta, de oposição, etc.), que se associam, no curso do seu desenvolvimento, a dificuldades de integração nas relações com os pares ou ao baixo rendimento escolar. Estes, por sua vez, associam-se também à emergência de problemas de ansiedade e depressão ou a comportamentos de risco, condutas delinquentes, consumos de substâncias, precocidade de condutas sexuais e gravidez na adolescência, entre outros problemas sociais e de saúde.

Ainda que os efeitos «compensadores» de experiências favoráveis e factores protectores tenham um papel a desempenhar na probabilidade com que certos processos conduzem a resultados negativos no desenvolvimento, a interacção em escalada dos factores de risco que caracterizam a complexidade fenomenológica das situações de pobreza, tende a atingir diversos domínios do desenvolvimento individual, da personalidade e diversas áreas do funcionamento das famílias. Adicionalmente, o acesso reduzido a diferentes estruturas e recursos formais das comunidades, à cultura e dinâmicas relacionais na vizinhança e comunidade mais alargada, canalizam trajectórias de vida que em parte tendem a perpetuar-se por gerações.

3) As relações e os ambientes familiares são preponderantes nos primeiros anos de vida e muito salientes nos anos que caracterizam a segunda infância e adolescência. A qualidade afectiva das relações familiares, por um lado, e o amplo impacto das funções da parentalidade, por outro, são factores cuja função reguladora face às experiências favoráveis ou adversas é central.

No entanto, as famílias existem em ecologias precisas e contextos sociais com dinâmicas específicas. A qualidade e o efeito positivo do contexto familiar é mediada, por vezes moderada, pela maior ou menor presença, maior ou menor durabilidade de factores de risco e stressores. O acesso a recursos de saúde, educação, protecção social, apoio à gravidez e à parentalidade durante as idades de desenvolvimento, não são abstracções e meras sensibilidades humanistas, têm efeitos concretos positivos nos processos desenvolvimento das crianças, mas também, no funcionamento das famílias, rotinas e práticas parentais, constituindo-se como factores protectores de experiências favoráveis. O desemprego, a precariedade, os baixos salários, a mobilidade laboral, a desregulação dos horários e dias de trabalho, por sua vez, são fonte efectiva de stress e de redução da disponibilidade psicológica e emocional dos cuidadores das crianças.

Posto isto, torna-se então evidente que as conquistas de Abril, no seu enquadramento histórico, foram bem mais extensas e não se esgotaram naquelas que dizem respeito à liberdade de expressão e associação política. Colocando fim a 48 anos de regime fascista, tempo de obscurantismo, opressão e esmagamento da liberdade, o 25 de Abril pôs fim à marginalização dos trabalhadores e do povo da vida política activa do país. Não podemos esquecer, que é somente com o papel activo do povo a influir nas escolhas de novas políticas que se perspectivaram os caminhos do desenvolvimento do país e a construção de uma sociedade mais livre e democrática, porque mais justa na redistribuição da riqueza. Modificou-se a subordinação do país e do povo aos interesses de uma minoria de grandes monopolistas e latifundiários, aliados do grande capital e do imperialismo.

Essencialmente, a subordinação do poder económico ao poder político democrático, assente no controlo social dos sectores básicos e estratégicos da economia, com o Estado a ter o papel essencial na dinamização do desenvolvimento económico, permitiu o investimento público na defesa e promoção da produção nacional, garantindo direitos aos trabalhadores e às famílias. O direito ao trabalho com direitos, indissociável de justa remuneração, o direito a dignas condições de vida, à rede de saneamento, aos transportes públicos, à valorização dos serviços e funções sociais do Estado, em particular à Educação, Saúde e Segurança Social, pública e universal. Estas mudanças tiveram forte impacto na melhoria e reforço dos factores protectores. do desenvolvimento da generalidade das crianças em Portugal.

«é importante continuar não só a defender as conquistas de Abril, como a lutar pelas que ainda hoje são alvo de ameaça. Como os direitos das crianças a brincar livremente, a usufruir de espaços e contextos informais de interacção e socialização entre pares e outras figuras da comunidade, hoje em dia postos em causa pela combinação de vários factores desfavoráveis ao desenvolvimento e funcionamento das famílias»

A revolução de Abril representou, neste respeito, um passo de gigante na transformação das ecologias e contextos de desenvolvimento das crianças. Não só incrementou factores protectores como reduziu factores de risco para as trajectórias desenvolvimentais. Disso são exemplos a melhoria muito significativa de indicadores como o analfabetismo, a mortalidade infantil, o trabalho infantil, a quase eliminação da fome, a redução dos índices de pobreza, o aumento da escolaridade obrigatória, o aumento de jovens com formação superior, etc. Não se tratou somente de nivelar as oportunidades, como se costuma dizer, mas sim, de aumentar e generalizar oportunidades de experiências favoráveis.

As conquistas políticas do 25 de Abril foram também conquistas para as crianças e jovens de Portugal, uma vez que tiveram um forte impacto à escala nacional em efectivar direitos e contribuir para contextos de desenvolvimento mais favoráveis a trajectórias de vida positivas mais generalizadas na população.

Não obstante, é importante continuar não só a defender as conquistas de Abril, como a lutar pelas que ainda hoje são alvo de ameaça. Como os direitos das crianças a brincar livremente, a usufruir de espaços e contextos informais de interacção e socialização entre pares e outras figuras da comunidade, hoje em dia postos em causa pela combinação de vários factores desfavoráveis ao desenvolvimento e funcionamento das famílias. Neste respeito, pensamos com preocupação nas condições de vida que, fruto de escolhas políticas e das crises económicas que marcam o nosso século, afectam muitas famílias e crianças em Portugal. É exemplo o flagelo da pobreza a aumentar de novo, fruto de políticas que conduzem ao aumento de factores de risco nas famílias: o desemprego, a precariedade, os baixos salários, a mobilidade e desregulação dos horários e dias de trabalho. Factores, que combinados, fazem perigar os tempos de qualidade em família e colocam em risco a capacidade para o desempenho da parentalidade.

A estes aspectos, acrescem outras assimetrias ecológicas resultantes das políticas dominantes. Por exemplo, associado à mudanças nas actividades produtivas e a fenómenos de gentrificação, nas sociedades ocidentalizadas e nos centros urbanos cosmopolitas, assiste-se à progressiva deterioração das redes informais de suporte social e das comunidades em vizinhança, com a descaracterização dos espaços urbanos e com o não planeamento de espaços e «estruturas» urbanas fundamentais ao desenvolvimento das crianças, à brincadeira e socialização livre e espontânea, à convivência entre famílias e na comunidade.

Neste sentido, hoje ainda é importante lutar e defender as alterações de política que visem a promoção de ambientes familiares, diríamos, «suficientemente bons». Políticas que alterem o balanço entre factores de risco e protectores em sentido favorável. Políticas que, para além das respostas reparadoras face à vulnerabilidade, cumpram a função preventiva e promotora do desenvolvimento, que proporcionem experiências adequadas, favoráveis e estimulantes. Políticas que favoreçam trajectórias de desenvolvimento às gerações futuras, que correspondam à oportunidade de desenvolverem melhores capacidades sociais, emocionais, cognitivas e com menos problemas ao nível da saúde mental. Políticas que fomentem ecologias e contextos característicos dos processos desenvolvimentais resilientes face à vulnerabilidade e adversidade que a vida sempre comporta.

Bruno Raposo Ferreira é Psicólogo Clínico, Psicanalista, Docente de Psicologia e Psicopatologia do Desenvolvimento no Mestrado Psicologia e Psicopatologia do Desenvolvimento e Investigador no William James Center for Research | ISPA-IU.

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