É urgente ouvi-los

«150 milhões de escravos» no Teatro da Trindade

Maria João Luís e o Teatro da Terra levam à cena uma peça que denuncia a nova escravatura infantil «de que todos acabam por ser cúmplices, mesmo sem que se apercebam», como a própria declarou à Lusa. A estreia é nesta quinta-feira, dia 11 de Janeiro, às 21h30.

Rapaz carregador de carvão na mina Turkey Knob, em Macdonald, Virgínia Ocidental, EUA (1908). Detalhe da fotografia original de Lewis Hine (1874-1940)
Créditos / Teatro da Trindade

Denunciar a nova escravatura infantil foi o objectivo de Maria João Luís para a montagem da peça 150 Milhões de Escravos, que encena no Teatro da Trindade, em Lisboa, com estreia na próxima quinta-feira. Partindo dos números oficiais da Amnistia Internacional, que cifra em 153 milhões o total de crianças escravas no planeta, Maria João Luís construiu um espectáculo para denunciar esta «dura realidade», «de que todos acabam por ser cúmplices, mesmo sem que se apercebam», como a própria disse à agência Lusa.

A pertinência de revisitar o neo-realismo

Maria João Luís e o Teatro da Terra prosseguem um ciclo de revisitação do movimento neo-realista português: iniciado com O Cravo Espanhol, de Romeu Correia; continuado com Finisterra, de Carlos de Oliveira; incide agora  sobre as crianças trabalhadoras descritas por Soeiro Pereira Gomes nos Esteiros. A construção do drama da peça partiu desta obra e dos textos Em Homenagem aos Nossos Empregados, de Mickael de Oliveira, e A Gaivota, de Anton Tchekov, além de fragmentos de Arthur Rimbaud – afirmou a actriz e encenadora.

«Quem são hoje os filhos dos homens que nunca foram meninos?»

Maria João Luís, Actriz e encenadora

A partir da necessidade de «voltar à terra, à infância e adolescência», numa viagem de retorno em que se cruzou com «a luta dos pobres», Maria João Luís constrói em 150 Milhões de Escravos uma peça densa e dura, que obriga o espectador a interrogar-se, frequentemente, sobre a sua pertença a um mundo burguês no qual se é capaz de tudo para obter um fim.

O objectivo é trazer a obra de Soeiro Pereira Gomes para a contemporaneidade, transportar para a actualidade as crianças trabalhadoras dos telhais e os jovens operários, procurando ver quem são hoje «os filhos dos homens que nunca foram meninos».

Uma experiência criativa dura, para os artistas e para o público

Este trabalho foi ainda, segundo a encenadora, muito duro, já que todos os dias os actores diziam «eu não posso estar a dizer isto, eu não sou isto». «Daí que fosse preciso que esta posição dos actores também estivesse na peça. Por isso fui buscar o Rimbaud», precisou, sublinhando que «era preciso – era vital para mim – trazer essa zona sanguínea ao espectáculo». Ao utilizar a inquietude característica do escritor francês para pôr os actores a expressarem as suas opiniões pessoais sobre a escravatura infantil, Maria João Luís acaba por admitir que, a «determinada altura, sentiu que ninguém se iliba de culpa desta coisa medonha».

«Aquilo que tentei foi libertar-me da culpa», disse a actriz, sublinhando que, embora não comungue da mentalidade burguesa que perpassa pela maioria das personagens da peça, também se vê cúmplice da realidade «atroz» que é a escravatura infantil. «Sou cúmplice, porque sou aquela que compra a camisola em que miúdos trabalharam e que compra chocolate cuja apanha de cacau é quase toda feita por miúdos», afirmou.

153 milhões

vítimas de trabalho infantil, segundo a Amnistia Internacional

A peça pretende pôr as pessoas a pensar além da sua zona de conforto, referiu, «porque enquanto o nosso conforto lá estiver, nós quase não pensamos nisso», acrescentou. Levar as pessoas a questionarem-se sobre a cumplicidade que têm para com esta realidade violentíssima dos tempos modernos foi um dos eixos que norteou o trabalho de Maria João Luís.

Breve ficha técnica

Num espaço marcado apenas por uma rampa e por uma paisagem lateral em plástico insuflável, Maria João Luís põe em cena um drama que muitas vezes se socorre do movimento corporal, secundarizando a palavra sem que com isso suspenda a mensagem.

A interpretação está a cargo de Beatriz Godinho, Catarina Rôlo Salgueiro, Emanuel Arada, Ivo Alexandre, João Saboga, José Leite, Hélder Agapito, Lígia Soares e Teresa Sobral.

A cenografia é de Ângela Rocha, o vídeo de Inês Oliveira, o movimento de Paula Careto e o desenho de som e de luz de José Peixoto e Pedro Domingos, respectivamente.

Co-produzida pelo Teatro da Trindade INATEL e pelo Teatro da Terra, em parceria com a Câmara Municipal de Ponte de Sor e o Museu do Neo-realismo, a peça vai estar em cena a partir de quinta-feira, dia 11 de Janeiro, e prolonga-se até 28 de janeiro, com espectáculos de quarta-feira a sábado, às 21h30, e aos domingos, às 16h30.


Com Agência Lusa

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